S. Paulo: apóstolo para a vida

Termina hoje, em Fátima, a XXXI Semana Bíblia Nacional da responsabilidade dos Capuchinhos. Ao longo de mais de 30 anos, esta proposta de reflexão bíblica continua a quer ir ao encontro da actualidade, confrontando-a com a pastoral da Igreja e fortalecendo-a com a Bíblia. A XXXI edição é dedicada a “São Paulo, Apóstolo da Palavra”. Frei Lopes Morgado, chefe de redacção da revista Bíblia, aponta Paulo como “um homem honesto, corajoso e consequente” que, à luz da actualidade, impele não a uma nova evangelização, mas ao primeiro anúncio do Evangelho. Agência Ecclesia – Sendo este ano dedicado a Paulo, e havendo várias iniciativas e propostas para reflexão e aprofundamento, era incontornável dedicar-lhe também esta Semana Bíblica? Frei Lopes Morgado – A Semana Bíblica não foi organizada para cumprir calendário a pretexto do Ano Paulino ou do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, pois já realizámos mais trinta antes desta. Mas, na edição deste ano, era de facto incontornável falar de S. Paulo, uma vez que é nosso critério tratar um tema relacionado, o mais possível, com acontecimentos ou problemas da actualidade. Antecipando-os com a reflexão bíblica, damos às pessoas «ferramentas» de reflexão, análise, leitura, iluminação a partir de critérios vindos da Palavra de Deus. Isto, porque o Concílio Vaticano II disse, há 43 anos, que toda a pastoral da Igreja se deve alimentar e fortalecer com a palavra da Sagrada Escritura. [Em edições anteriores, também os temas foram motivados por acontecimentos actuais. De 1979 a 1981, os temas foram Lucas, Mateus e Marcos, por serem os evangelistas desses anos litúrgicos; em 1983, S. Paulo, o Apóstolo para uma Igreja reconciliadora, a propósito do Sínodo da Igreja sobre o Sacramento da Reconciliação; em 1988, Maria na História da Salvação, preparando o Ano Mariano seguinte; A Família, em 1992, para o Ano Internacional da Família em 1994; A Linguagem da Bíblia, em 1993, nos 100 e nos 50 anos, respectivamente, das encíclicas de Leão XIII e Pio X sobre a Sagrada Escritura; em 1994, A Mulher na Bíblia, na Igreja e na Sociedade, preparando o Ano Internacional da Mulher; entre 1996-2000, os temas de Jesus Cristo, do Espírito Santo, do Pai e da Encarnação, glorificação da SS. Trindade, com as virtudes da Fé, Esperança e Caridade, e os Sacramentos do Baptismo, Confirmação e Eucaristia, acompanhando a preparação e celebração do Jubileu da Encarnação no ano 2000; os temas da Misericórdia e do Santuário, em 2006 e 2007, por sugestão do Santuário de Fátima nos 90 anos das Aparições… E agora S. Paulo.] Agência Ecclesia – O que se pode descobrir com São Paulo? Frei Lopes Morgado – Antes de mais nada, interessa descobrir S. Paulo, ler as suas 13 Cartas e a 2ª parte do livro dos Actos dos Apóstolos centrada na sua vida e actividade missionária, para conhecer o contexto da sua vida e o conteúdo da sua mensagem. E, ao descobrir S. Paulo, descobrimos um homem honesto, corajoso e consequente. No Judaísmo, integrava o grupo dos fariseus, os mais exigentes e zelosos seguidores da Lei ou Torá: “No que toca à Lei, fui fariseu.” Uma vez iluminado e «conquistado por Cristo», fez dele a sua vida: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.” E anunciou-O a todos com o entusiasmo de um apaixonado: “Ai de mim, se eu não evangelizar!” Agência Ecclesia – Há quem julgue São Paulo um “fanático” e quem o acuse de “trair” o judaísmo. Frei Lopes Morgado – Curiosamente, no seu ADN humano, cultural e espiritual, Paulo tinha quase tudo para vir a ser um fanático fundamentalista, mas a luz nova recebida em Damasco fê-lo ultrapassar tudo e seguiu a caminhada que o judaísmo era chamado a fazer até Cristo. Para isso enfrentou os judaizantes, seus irmãos de raça, que pretendiam continuar a impor as práticas e leis antigas, nomeadamente a circuncisão. Disse, na Carta aos Gálatas: “A Lei foi nosso pedagogo até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé; uma vez, porém, chegado o tempo da fé, já não estamos sob o domínio do pedagogo”. Quer dizer: já não estamos sujeitos ao Antigo Testamento. Cristo é uma Nova Aliança e uma Nova Lei – na sequência das anteriores, mas de forma nova e plena, pois não veio abolir a Lei nem os Profetas antigos, como dirá S. Mateus, outro judeu, mas conduzi-los à perfeição, pondo espírito e amor onde antes havia demasiada letra e servilismo. De facto, os seus irmãos judeus nunca perdoaram a Paulo esta “traição”, perseguindo-o de todas as formas. Mas podemos dizer que ele foi o judeu mais fiel ao judaísmo, pois o papel “privilegiado” do povo hebreu na História era ser luz para conduzir todos os povos até Cristo. Agência Ecclesia – Que facetas do Apóstolo foram reflectidas durante esta Semana Bíblica? Frei Lopes Morgado – Tudo foi estudado profundamente por vários especialistas portugueses, da Universidade Católica de Lisboa, Porto e Braga, do Instituto Superior de Teologia de Évora e doutras frentes. Após a apresentação geral com o DVD «EU, Paulo», foram desenvolvidos oito temas, dois de cada uma destas áreas: Paulo, quem és Tu?, Cristo segundo Paulo, Viver em Cristo, Paulo e as Igrejas. A Semana termina com a Eucaristia presidida por D. António Couto, bispo auxiliar de Braga, que antes falou de uma opção apostólica de Paulo, actual para a Igreja de hoje: Cristo não me enviou a baptizar, mas a pregar o Evangelho. Agência Ecclesia – Que actualidade tem a mensagem de Paulo? Frei Lopes Morgado – Muita. Primeiro, porque interessam testemunhas como ele, e não apenas pregadores, numa hora em que a evangelização é necessária e as pessoas ouvem mais as testemunhas do que os mestres. Depois, porque a Europa – com Portugal bem incluído – é novamente um território de “pagãos” a precisarem não apenas de uma nova evangelização (palavra gasta de tão repetida, sem consequências à vista), mas de um primeiro anúncio do Evangelho. Iludimo-nos com a piedade popular e a prática religiosa no tempo da cristandade, e descurámos a formação da fé para os tempos de uma sociedade secular. Continuamos a querer que todos recebam os sacramentos, sem exigir uma catequese que dê razões à fé, inicie na prática cristã e comprometa na comunidade. E as igrejas esvaziam-se, mesmo daqueles que acabam de receber o Crisma, e a vida não é inspirada nem questionada pela fé. Agência Ecclesia – Que visão partilhava Paulo, na sua doutrina? Frei Lopes Morgado – Paulo partilhava uma visão sem fronteiras, verdadeiramente universal ou “católica”. Deus ama a todos e não apenas a um “povo eleito”. Em Cristo, somos todos irmãos, porque filhos do mesmo Pai. A aplicação deste critério elimina quais barreiras ou privilégios entre judeus e gentios, servos e senhores, homens e mulheres. Por isso, tal como não foi um fundamentalista, também não foi misógino ou esclavagista. Só quem não o leu poderá dizer isso. Teve alguns erros pontuais de visão ou estratégia pastoral, e sofreu dissabores por isso, mas, no contexto em que viveu e agiu, Paulo foi um verdadeiro cidadão do mundo, acolhendo as diferenças e respeitando os valores locais, não pretendendo dar valor universal às soluções concretas, mas apontando para o essencial – Cristo. Agência Ecclesia – Como sair da reflexão teológica para os desafios actuais? Frei Lopes Morgado – Esse é mesmo o desafio que os 350 participantes levam para casa. Lembro que nesta semana estiveram mais de 30 sacerdotes, bastantes deles jovens e quase todos com responsabilidades pastorais a vários níveis. Mas também leigos comprometidos na catequese, na dinamização bíblica, na acção sociocultural e no ensino e ainda irmãs e irmãos de diferentes comunidades religiosas e colégios. A semana deu-lhes uma fundamentação mais sólida e uma visão mais ampla. Agora, nos seus locais de vida e acção, ser-lhes-á mais fácil programar um plano consequente de formação bíblica, tendo em conta a opção e orientação de conjunto da respectiva diocese. E muitos já se reuniram aqui para reflectir e programar Grupos Bíblicos e Escolas Bíblicas paroquiais. Agência Ecclesia – Vão propor algumas conclusões, como fruto desta semana? Frei Lopes Morgado – Desde há vários anos, deixámo-nos de propor conclusões da semana, pois na prática tornavam-se inconsequentes por falta de apoio dos responsáveis locais. Esperamos, assim, obter melhor resultado, pois, conhecendo as bases da solução, cada um julgará da sua aplicabilidade concreta. Como Paulo fez, analisando a situação de cada comunidade, respondeu de um modo concreto aos seus problemas concretos, no seu tempo. A “receita” é esta. Aplicá-la, já depende das capacidades e dos limites de cada um na sua circunstância. Com esta certeza: não basta saber e repetir ou citar os textos de Paulo. É preciso, primeiro, converter-se a Cristo como ele, e depois anunciá-Lo com a mesma convicção e urgência. Para que também hoje, como então, surjam comunidades vivas que O acolham, sigam, vivam e, por sua vez, O anunciem. Com a vida e com a palavra.

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