S. Gonçalo de Amarante, da nobre família dos Pereiras, nasceu por volta de 1190, na freguesia de S. Salvador de Tagilde, no concelho de Vizela. Os pais deram-lhe uma esmerada educação moral e cristã não só pela palavra, mas sobretudo pelo exemplo da sua virtude. Tendo atingido o uso da razão, foi confiado a um douto e honesto sacerdote, sob cuja direção iniciou os estudos. Desde a adolescência, distinguiu-se na modéstia, na piedade, no esforço em se aperfeiçoar nos costumes cristãos e no progresso do trabalho escolar. Depois de cursar as ciências teológicas, foi ordenado sacerdote, iniciando o múnus pastoral como pároco da freguesia de S. Paio (ou S. Pelágio) de Riba-Vizela; logo começou a brilhar no zelo apostólico, além de se evidenciar na prática das obras de misericórdia.
Porque alimentava o desejo de visitar os túmulos de S. Pedro e de S. Paulo, em Roma, e de peregrinar a Jerusalém e aos lugares santos da Palestina, deixou os paroquianos ao cuidado dum sobrinho sacerdote e fez-se peregrino – ausência que demorou catorze anos. Tendo regressado à freguesia, o sobrinho, além de o não aceitar como pároco legítimo, rejeitou-lhe a guarida em casa.
Resignado com essa atitude, deixou S. Paio de Riba-Vizela e foi anunciar o Evangelho por aquelas terras até às margens do rio Tâmega, fixando a sua habitação num sítio quase despovoado, onde hoje é a cidade de Amarante. Construiu uma pequena ermida que dedicou a Nossa Senhora da Assunção, para nela se recolher em oração e penitência, e daí sair a pregar nos arredores. Pela sua devoção à Virgem Maria, resolveu seguir a vida conventual na Ordem dos Pregadores, recentemente fundada por S. Domingos. Consequentemente, entrou no convento de Guimarães e, uma vez concluído o noviciado, foi admitido à profissão religiosa; passado algum tempo, obteve licença de, com outro frade, voltar para o eremitério de Amarante, continuando a exercer o ministério evangélico e caritativo. Faleceu santamente em 10 de janeiro de 1262, sendo o corpo sepultado na referida ermida. Se durante a vida já se lhe atribuíam alguns milagres, mais se começaram a atribuir à sua intercessão após a morte.
Tendo-se efetuado o respetivo processo canónico, o breve pontifício da beatificação foi promulgado em 16 de setembro de 1561. A devoção ao santo mais popular dos santos portugueses, depois de Santo António de Lisboa, espalhou-se por Portugal e por muitas outras partes. Dessa veneração falou o padre António Vieira, no século XVII, no sermão que pregou no Brasil (Tomo VI, pg. 323): – «Se não têm filhos, a S. Gonçalo os pedem; e se têm muitos, a S. Gonçalo consultam se os hão de mandar à guerra, ou ao estudo, ou aplicar ao arado. Se hão de casar as filhas, S. Gonçalo é o casamenteiro, e se os próprios pais, ou não podem, ou se descuidam de lhes dar estado, a lembrança que elas por modéstia se não atrevem a lhes fazer, a fazem em segredo ao santo que, como mais poderoso e mais vigilante pai, se não descuida. A ele encomendam os pastores os gados, os lavradores as sementeiras; a ele pedem o sol, a ele a chuva; e o santo, pelo império que tem sobre os elementos, a seu tempo e fora do tempo, os alegra com o despacho das suas petições. Ele os remedeia nas pobrezas, ele os cura nas enfermidades, eles os reconcilia nas discórdias; ele, enfim, se andam desgarrados, os encaminha, e talvez os castiga também amorosamente, para que não degenerem de filhos de tal pai.»
Em Aveiro, o bairro típico da “Beira-Mar” e mesmo toda a cidade tratam carinhosamente S. Gonçalo de Amarante por S. Gonçalinho. Desde tempos imemoriais, é particularmente invocado para a cura de doenças ósseas… não recusando também o seu valimento na resolução de dificuldades matrimoniais. As ofertas consistem não apenas em pernas, braços e mãos de cera… ou em flores, azeite e velas, mas ainda em cavacas doces. O templo atual em sua honra, que sucedeu a um anterior, ostenta a data da construção – 1714.
A festa anual realiza-se no dia 10 de janeiro ou no domingo próximo. A igreja e as ruas vizinhas são engalanadas com ornamentos e luzes; nos passeios, há barraquinhas onde se vendem doces variados, cavacas e diversas recordações. Para a Eucaristia, celebrada no templo decorado com primor, o espaço torna-se exíguo. Depois, durante a tarde, acontece a parte mais caraterística do programa; a dada altura, a platibanda da ermida enche-se de pessoas, o sino repica com entusiasmo e as cavacas dos ofertantes são lançadas lá de cima sobre a multidão. Os gaiatos correm e furam sem parança, dirigem-se aos pontos mais estratégicos, empurram-se mutuamente, lançam-se ao chão à cata de alguma cavaca, enquanto o povo, em fluxos e refluxos, lhes vai facilitando a passagem ou propositadamente lhes estorva os movimentos. Até sucede que muitas pessoas usam redes colocadas em compridos paus ou abrem os guarda-chuvas que viram ao contrário; desta forma, apanham no ar as cavacas, antecipando-se assim às mãos do rapazio sôfrego, que fica a olhar com desconsolo.
As alíneas festivas vão prosseguindo, mesmo pela noite dentro, à mistura com orações balbuciadas e promessas cumpridas em frente da imagem; nos intervalos, queimam-se muitos foguetes de vistas e de dinamite. Apesar do tempo frio de janeiro – e mesmo chuvoso – não há míngua de aveirenses, que não ficariam de bem com a sua consciência se não participassem no alegre e típico convívio. No dia seguinte, ao findar da festa, novos e velhos dão as mãos e caminham com a banda musical a cantar e a dançar, enquanto os mordomos cessantes vão às casas dos mordomos do ano futuro, para os cumprimentar e lhes entregar o ramo; simultaneamente ouvem-se os derradeiros foguetes, que estralejam no ar. Mas a festa quase sempre não termina aqui, porquanto alguns populares do bairro juntam-se à noite, na capela; aí se pode então apreciar a “dança dos mancos”. Durante algum tempo, os intervenientes executam tal dança, coxeando; simultaneamente cantam quadras populares, sob o olhar complacente de S. Gonçalinho.
Mons. João Gaspar