Ruy Cinatti: O poeta nómada que encontrou Deus

«A solidão, e o que há de mais aberto:

Rosa por desfolhar,

Quero-a eu agora – e ao largo vento

A roda dos sonhos confiar»

(In: «Livro do Nómada Meu Amigo») 

Não tinha medo da solidão e não se subordinava a ninguém. Conviveu com poetas e políticos mas não fez parte de qualquer escola ou movimento. Não se casou e a descendência que deixou são poesias. Referimo-nos a Ruy Cinatti Vaz de Monteiro Gomes falecido na noite de 11 para 12 de outubro de 1986.

Passados 25 anos da morte do poeta nascido num elegante bairro eduardiano de Londres, a 8 de março de 1915, convém recordar alguns passos e traços biográficos de Ruy Cinatti que legou o seu espólio à Casa do Gaiato.

Com uma tese sobre «A Condição Humana em Ruy Cinatti», o padre Peter Stilwell refere numa entrevista ao jornal «Público» (20 de abril de 1995) que o poeta “não é o homem que está preocupado em conhecer de cor os elementos de um catecismo para os traduzir depois numa poesia. É alguém que, desafiado pelo incompreensível da fé, vai à aventura, a tentar descobrir que mais vida há por detrás dessas formulações”.

«Nós Não Somos Deste Mundo» é o primeiro livro de poesia de Ruy Cinatti que sai a público em 1941. Um ano depois publica «Anoitecendo a Vida recomeça» e lança a revista «Aventura», da qual organizará cinco números até 1944. Nos diários mais antigos, a fé não surge de “forma explícita. Quanto muito podemos identificá-la com uma sensibilidade religiosa difusa, presente na admiração que revela pela natureza e na devoção a S. Francisco”, lê-se na tese de doutoramento de Peter Stilwell (Revista Didaskalia, Volume XXII, fascículo 2, 1992, Lisboa).

Segundo o estudioso do poeta agrónomo (terminou o curso de Agronomia em 1943) à medida, porém, que se aproxima da década de 40, o sentido religioso e a fé católica “tornam-se uma referência central, primeiro dos seus escritos mais íntimos; posteriormente, da sua obra publicada”. E tudo indica que se manteve essa “a sua atitude até à morte”. “Terá havido fases de maior fervor e prática sacramental, como houve outras de claro esmorecimento; mas não há indícios de ruturas significativas”.

Em termos duma formação religiosa sistemática é possível que nos Pupilos do Exército ou no Colégio Nun´Álvares tenha recebido alguma instrução. No entanto, ele próprio caracteriza o seu estado, em 1935, como de “ignorância católico-eclesial”. Fá-lo, para justificar a curiosidade religiosa que o levava, durante o cruzeiro às colónias, a embrenhar-se na leitura da enciclopédia «Ecclesia» que pedira emprestada a Orlando Ribeiro. Ao regressar a Lisboa, surgem as “primeiras indicações de uma opção de fé consciente” – lê-se na tese «A Condição Humana em Ruy Cinatti».

Nos tempos de estudante no curso de Agronomia torna-se membro das Conferências de S. Vicente de Paulo e da recém-criada Juventude Universitária Católica (JUC). A sua atividade nestas associações revela, com o tempo, uma crescente cultura religiosa e, em simultâneo, precisão teológica no que escreve. O envolvimento é tal que a determinado momento põe em causa o seu futuro como agrónomo, e chega a levantar a hipótese de vir a ser padre: “sacerdócio”, anota, “é um caminho a seguir”. Mas acrescenta logo de seguida: “Duvido porém que este me sirva”.

Timor é outra dimensão fundamental na vida e na obra de Ruy Cinatti. Em 1946, partiu para Timor como secretário do governador Óscar Ruas e encantou-se com aquele território porque era uma ilha dos mares sul. Nas suas longas viagens pelo interior a fazer recolha de material botânico, “deu-se conta da riqueza da cultura dos timorenses e da harmonia que essa cultura tinha gerado entre eles e o meio ambiente”, revela Peter Stilwell na entrevista ao referido jornal. 

Timor ficou-lhe gravado no coração e escreveu várias obras sobre este território: «Um Cancioneiro para Timor» (Só publicada em 1997, mas recebeu o Prémio Camilo Pessanha, em 1968 por esta obra); «Uma sequência Timorense» (1971) e «Paisagens Timorenses com vultos» (1974). Em novembro de 1975 avisa, em entrevista, dos “riscos que se correm em Timor” e “fica profundamente abalado pela invasão de Timor pela Indonésia, em dezembro”, (Cf. Revista «Ler», verão/outono 1997, Nº 39)

Em 1950 apresenta, no Instituto Superior de Agronomia, a tese «Reconhecimento em Timor» que é aprovada com a classificação de 19 valores. No ano seguinte chega a Díli (Timor) para o ocupar o cargo de chefe dos Serviços de Agricultura do Governo daquele território. Nessa década visita muitos países (Filipinas, Hong Kong, Macau, Japão, Bali, Índia) e publica, em 1958, «O Livro do Nómada Meu Amigo» que lhe dá o Prémio Antero de Quental no ano posterior.

A experiência pessoal, a formação técnica e a tradição da Ação Católica não permitiam que Cinatti se ficasse pela visão simplista de uma aplicação imediata do desejo à realidade; da tradução espontânea das intuições da fé em realizações sociais e políticas. Sabe que uma coisa são os princípios, as teorias, as propostas doutrinais, outra “os problemas que o nosso estudo levanta (…) de uma realidade imediata, concreta, viva, que a todo o instante pede uma solução, por transitória que ela seja” (Cf. «A Condição Humana em Ruy Cinatti»).

Fundamenta-se em Tomás de Aquino para justificar esta exigência duma articulação da fé com a razão. “Encontra no teólogo medieval o respeito pela razão e pela pesquisa científica, ao mesmo tempo que a afirmação clara da centralidade de Deus no ordenamento harmónico da criação”, lê-se na tese de Peter Stilwell.

Luis Filipe Santos

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