Sucintamente, podemos definir imaginário como a fábrica de imagens, representações e visões, colectivas ou pessoais, que dá expressão à maneira de conceber a nossa relação com o mundo e com outrem. No plano individual, existe no homem uma dimensão intrínseca da função imaginária: a força do símbolo, o peso da imagem, constituem uma espécie de fantástico transcendental sem o qual não podemos passar; no plano colectivo, e segundo M. Eliade, a criação de mitos fornece aos homens modelos de comportamento, e dá à existência o seu verdadeiro sentido. Esta penetrante interpretação de Eliade, segundo Julien Ries, pôs em relevo um facto novo na definição de mito: “o comportamento mítico não é um comportamento pueril (…). É um modo de estar/ser no mundo… ” Reconhece-se, deste modo, que as questões que o mito traz à reflexão são sempre actuais. Como o afirmava M. Maffesoli a propósito do enorme êxito dos livros de Harry Potter: “O sucesso do aprendiz de feiticeiro está aí para nos recordar que, a longo prazo, as sociedades têm necessidade de mitos. Elas criam-nos, recriam-nos, ou anicham-se naqueles que, sob formas diversas, sempre existiram.” No mundo ocidental, desde a época das Luzes, vivemos um poderoso movimento iconoclasta e de desmitologização: venera-se a “positividade”, os factos históricos, a máquina, o racional. Ironicamente, ao querer-se superar o “obscurantismo” do mito cria-se um outro mito – o do positivismo. Deu-se, depois, o movimento contrário: o ressurgimento do imaginário, em geral, e do mito, em particular. Ora, os produtos que emergem da imaginação humana exercem uma atracção bastante disseminada pelas várias formas de expressão cultural. Este número da «Communio» pretende contribuir para uma reflexão sobre a pertinência de uma cultura da visão imaginativa, nomeadamente ao favorecer uma abertura ao Evangelho e ao cristianismo (dizia C.S. Lewis que na vida de Cristo “o mito se tornou realidade”). O fascículo abre com um artigo de Michael Devaux, Itinerarium imaginationis ad Deum, sobre até onde nos pode levar a imaginação no caso da literatura e, muito particularmente, da literatura fantástica hoje tão divulgada graças ao sucesso de livros – e também dos filmes a que deram origem – como O Senhor dos Anéis (J.R.R. Tolkien), Crónicas de Nárnia (C.S. Lewis) e a série de Harry Potter (J.K. Rowling). A Bíblia constitui, como nota J. Tolentino Mendonça em A Bíblia e o Fantástico, um laboratório imenso e até desconcertante das possibilidades da linguagem humana, e portanto só seria de admirar que não recorresse às diversificadas ferramentas que a linguagem oferece: narrativa histórica ao lado da poética, ou Revelação e Imaginação. A abundante presença do fantástico no texto bíblico faz emergir o sobrenatural e o seu efeito tumultuoso, forçando as portas de um mundo que a mera razão e ordem natural não logram explicar. Ao mesmo tempo, contudo, a Bíblia investe num movimento teológico contrário, modificando este género literário em vista da coerência própria da Revelação. Olivier Riaudel, em Prescindir do mito e da desmitologização, observa que o próprio Platão, que fixou e nos legou o conceito de mito criticando-o pelo seu antropomorfismo, não deixou de apelar a vários mitos. No que respeita ao programa de desmitologização de R. Bultmann, é evidentemente legítimo interrogar o enunciado dos textos mitológicos da Escritura; mas não pode ser adoptada uma definição de mito tão simplista como a que o identifica com aquilo que o homem moderno, esclarecido e científico, tem por inaceitável ou incompreensível. No artigo Da boa utilização da literatura fantástica, Suzanne Bray funda-se na sua experiência de docente universitária e sobretudo de “pregadora leiga” (anglicana) para explicar, com base em três exemplos concretos, que a actual literatura fantástica, assim como os filmes nela inspirados, se adequam à transmissão da mensagem cristã. Obras como as de C.S. Lewis, J.R Tolkien e J.K. Rowling, envolvendo ou não, explicitamente, a imagética cristã, socorrem-se da mitologia clássica e até da alquimia e estão impregnadas de simbolismo, poética e metáfora, o que lhes permite dizer o que de outro modo seria porventura inexprimível. Até aqui, considerámos o imaginário enquanto incide no campo da literatura. Mas também no mundo físico, muitas vezes, imagens utilizadas para descrever os fenómenos são do domínio da fantasia e da imaginação, apoiando o domínio da experiência, método fundamental de verificação. Na Física quântica vamos encontrar uma experiência, descrita e explicada por Carlos Salema em O gato de Schrödinger, que procura entender o comportamento dos objectos quânticos, imaginando um gato dentro de uma caixa fechada. Segundo o postulado da sobreposição, dentro da caixa e enquanto não é observado, o gato está simultaneamente vivo e morto. Como observa o Autor do artigo, um outro gato conhecido com propriedades quânticas é o gato Cheshire de Alice no País das Maravilhas, que aparece e desaparece quando e como quer. Daqui podemos inferir que há experiências imaginárias importantes para fazer progredir a ciência. Seria no mínimo questionável não nos referirmos, no âmbito desta temática, também o mundo virtual. António Spadaro SJ, em Second Life: o desejo de uma “outra vida”, introduz-nos num mundo onde, de maneira simulada, temos a possibilidade de viver uma espécie de “segunda vida” digital. O artigo descreve pormenorizadamente este fenómeno que tem conquistado milhares de adeptos, avaliando os seus riscos e as suas oportunidades. A terra digital é igualmente, a seu modo, “terra de missão”; por isso, devemos estar atentos a um mundo no qual o homem pretende também encontrar-se a si mesmo. A terminar a secção temática, apresentamos o testemunho de uma jovem, M. Leonor Frazão, que nos fala da importância que têm para si as Histórias fantásticas. Na secção Perspectivas, publica-se a conclusão do ensaio antropológico de F. Micael Pereira sobre Sexualidade. Não esquecendo que estamos a comemorar o Ano Paulino, apresenta-se ainda o artigo de Thomas Söding sobre a teologia paulina da liberdade. A fechar o número, António Rego deixa-nos uma meditação sobre os tempos livres, a propósito da publicação do caderno “Do tempo livre à libertação do tempo”, da responsabilidade do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, e cuja leitura se recomenda vivamente. Em 2009 a Revista «Communio» apresentará os seguintes temas: Entrada de Jesus em Jerusalém; Ação Social da Igreja; Um mundo que Nasce; Paternidade e Maternidade. Maria C. Branco, Rui Madeira, José Patrício, in Revista Communio (Apresentação)