Responder às fomes do nosso mundo

Homilia de D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo Não foi preciso muito tempo para que Paulo enunciasse o essencial da tradição cristã, como a recebera e agora passava aos cristãos de Corinto. E soava assim: “Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de Mim’. Do mesmo modo, no fim da ceia, tomou o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova aliança no meu Sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o e memória de Mim’”. E assim nos deixava tudo o que havemos de receber e anunciar como Igreja de Cristo: a memória viva “da morte do Senhor, até que Ele venha”. Na verdade, recebemos a sua morte, enquanto vida retribuída ao Pai e entregue a cada um de nós; entrega total, de “corpo e sangue”; realidade final, que vem e se completa em cada celebração eucarística, “pela vida do mundo”. Como prometera, noutro passo guardado do Evangelho de João (6, 51): “Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo”. Sim, amados irmãos, o mundo tem fome. Fome de alimento material, numa tremenda contradição entre os recursos realmente disponíveis e a péssima distribuição deles, a nível local ou internacional, provocando a discrepância atroz e o insuportável escândalo de uns poucos morrerem de fartura e em cada minuto morrer alguém de extrema penúria, neste nosso planeta. Mas fome também de humanidade, convivência e partilha. Fome do espírito, que precisa de alimento amigável e sublime, de companhia e cultura, contra a solidão que deprime e todas as ignorâncias que diminuem o que havíamos de ser. Mas nós recebemos e transmitimos o mesmo que Paulo e todos os primeiros. Recebemos o dom de Deus, que em Cristo se faz alimento e companhia, vida doada e corpo entregue. Recebemo-lo sempre e hoje o adoramos de modo tão especial e solene. Em boa hora os nossos antepassados da Idade Média – sempre tão desejosos de “ver” a Deus e tornar mais sensível o que, de si, sempre ultrapassa a sensibilidade imediata – desenvolveram e estipularam esta celebração tocante do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. Em boa hora o fizeram e em boa hora a continuamos nós. Tão grande é este mistério, de Deus se tornar em Cristo “corpo e sangue”, sacramento e dádiva de vida inteiramente partilhada connosco para saciar a nossa fome, que, ano após ano, se desdobra em motivos próprios de meditação e compromisso. Como será este, de a nossa tradição portuguesa lhe chamar “Corpo de Deus”, expressão recheada de significados úteis. Expressão interessante, deveras. Faz-nos lembrar que, em Cristo, Deus tomou corpo neste mundo. Ora, por “corpo” entendemos a manifestação visível, a realidade e concretização material de um ser; e entendemos sobretudo de um ser em relação com os outros, relação que a mediação corpórea significa e permite. É muito importante lembrar isto agora, no nosso tempo e cultura, quando uma antropologia fraca e um pensamento débil dividem o indivíduo, separando o que se chamou corpo e alma, traduzindo esta como simples disposição subjectiva ou sensibilidade transitória e reduzindo o corpo a mero objecto de prazer e consumo, ao sabor dos devaneios… Que importante é, então, lembrarmos o verdadeiro significado do corpo, manifestação autêntica do nosso ser em relação, só realizável em solidariedade e fidelidade, ou seja, como dádiva fiel e persistente. Assim mesmo e não de outra maneira, acreditamos nós e professamos a verdadeira incarnação do Filho eterno de Deus, que realmente se fez um de nós, ganhando de sua Mãe, a Santíssima Virgem Maria, a nossa comum natureza humana, resgatando-a da autodestruição do pecado e preenchendo-a da divindade que partilha com o Pai. Assim nos recria também no seu Espírito, para uma comunhão nova e última, onde a nossa dimensão corpórea expresse consequentemente aquela caridade “que nunca acabará”. Sendo porventura menos teóricos e mais práticos, sejamos sempre mais evangélicos e eclesiais. – Pois haverá algum relato da vida de Cristo, do “Corpo de Deus” entre nós, que não manifeste a realização corpórea – quer dizer visível, audível, tangível e próxima – do amor de Deus que está em Cristo e a sua relação com os outros, com cada um de nós? Na sua relação connosco hoje, pois que a ressurreição o torna presente em todo o lado, como corpo glorioso e activo, em cada momento e local, falando-nos na Palavra, tocando-nos nos Sacramentos e na caridade eclesiais, convertendo-nos com o seu Espírito de amor, isto é de verdadeira e absoluta relação, com o Pai, com os outros, com o mundo inteiro. É assim, amados irmãos, que o Corpo de Cristo, tomado de Maria, se entrega eucaristicamente e se alarga naqueles que o recebem, para chegar ao mundo e responder a cada fome do corpo ou do espírito. Lembra-o o Papa Bento XVI na exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis (nº 15), em frases essenciais e programáticas: “A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras – corpus Christi – o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo. Bem atestado na tradição, este dado faz crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-Se a Si mesmo em sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistério da Igreja”. Ou seja, havemos de ser o que Cristo foi, como corpo entregue e sangue derramado, como vida partilhada e doada para a salvação do mundo. Chamar-se-á a isto a verdadeira celebração da solenidade de hoje em cada dia da nossa vida, como Igreja no e para o mundo. Ou melhor, havemos de deixar que o Espírito de Cristo continue em nós a sua obra eucarística e salvadora. Nem outra lição poderíamos tirar do Evangelho que escutámos. Estava ali a multidão faminta. Os discípulos julgavam-se naturalmente incapazes de alimentar tanta gente. Mas, bem no centro, estava Cristo e a sua activa compaixão, donde tudo brotará sem dispensar a cooperação de ninguém. E a sua ordem foi como sabemos: “Dai-lhes vós de comer!”. Tinham cinco pães e dois peixes, coisa de nada para cinco mil homens. Com a bênção de Jesus, chegaram para todos e recolheram-se as sobras. Do pouco que os discípulos lhe ofereceram, Cristo fez alimento para a multidão, mas não dispensou esse pouco nem a colaboração dos discípulos na distribuição. Tudo isto é connosco agora, amados irmãos. Está Cristo vivo, estamos nós com Ele, estão as necessidades do mundo… Celebramos o seu Corpo, somos o seu corpo eclesial, as suas mãos no mundo e para o mundo. – Como não haveríamos de crescer em comunhão com Ele, para cumprirmos a vontade do Pai, que é a salvação de todos, na resposta completa às suas necessidades integrais, de corpo e espírito?! Sejam esta celebração e este dia, de adoração e compromisso, eclesial e público, a realização em nós e por nós da caridade divina. Em dia do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, recebamo-los e entreguemo-los no nosso próprio corpo e sangue – quer dizer, nas nossas vidas -, unidos no mesmo Espírito, para a esperança e salvação de todos. Porto, Igreja da Trindade, 7 de Junho de 2007 + Manuel Clemente, (Bispo do Porto)

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