O papel das mulheres católicas na I República é visível na resistência a determinadas medidas e, sobretudo, à execução da Lei da Separação (Abril de 1911). A posição é assumida pela historiadora Maria Lúcia Brito e Moura
O papel das mulheres católicas na I República é visível na resistência a determinadas medidas e, sobretudo, à execução da Lei da Separação (Abril de 1911). A posição é assumida pela historiadora Maria Lúcia Brito e Moura, em entrevista à Agência ECCLESIA. A especialista dá o exemplo do caso dos inventários – na Lei da Separação foi declarado que os bens que, tradicionalmente, estavam em poder da Igreja passavam para o poder do Estado.
Doutorada em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra e membro do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa.
As tensões político-religiosas que marcaram as três primeiras décadas do século têm sido objecto da sua investigação. A tese de doutoramento, publicada com o título “A Guerra Religiosa na Primeira República”, incidiu sobre as resistências às leis publicadas depois de 5 de Outubro de 1910, que atingiram de um modo especial
a Igreja Católica.
Agência ECCLESIA (AE) – Na implantação da República (5 de Outubro de 1910) e no período consequente, as mulheres portuguesas assumiram um papel determinante?
Maria Lúcia Brito e Moura (MLBM) – A resistência a determinadas medidas e, sobretudo, à execução da Lei da Separação (Abril de 1911) surgiu muito das mulheres. No caso dos inventários – na Lei da Separação foi declarado que os bens que, tradicionalmente, estavam em poder da Igreja passavam para o poder do Estado – as mulheres saíram em defesa desses bens. Houve necessidade de fazer arrolamentos que deviam decorrer no prazo de 3 meses. Estas dificuldades surgiram no Norte de Portugal, mais nas zonas rurais porque nas zonas urbanas era mais fácil uma comissão de arroladores ir a uma igreja e passar despercebida. As mulheres distinguiram-se nessa resistência e, muitas vezes, tocavam os sinos a rebate e chamavam os homens. Gritavam que estes queriam roubar os santos.
AE – Então existia a ideia de que os arrolamentos eram para roubar?
MLBM – Isso tem uma razão de ser. Algumas juntas de freguesia – como consequência da falta de dinheiro e de um certo anticlericalismo – começaram logo a vender algumas obras. Algumas comissões de arrolamento entravam na igreja com o chapéu na cabeça e a fumar. Iam ao sacrário e observavam as partículas sagradas. Isto era a maior ofensa que se podia fazer a um católico. Foram estes acontecimentos que estiveram na raiz da revolta popular.
AE – A proibição das procissões também causou mal-estar?
MLBM – A lei não proibia absolutamente as procissões, mas deixava a realização destas ao critério das autoridades locais. Se soubessem que aquela população já estava suficientemente republicanizada já não autorizavam a procissão. Isto exigia prudência da autoridade, mas alguns regedores – com laivos de vanguardismo – queriam realizar depressa a revolução sonhada.
AE – A “propaganda” anti-clerical estava a surtir efeito?
MLBM – Na última década antes do 5 de Outubro de 1910, os propagandistas republicanos “pregaram” ao povo que o país só avançaria e teria progresso – na linha de Augusto Conte – se o estado teológico fosse esquecido. O estado teológico era coisa do passado. Era sinónimo de obscurantismo. Chegou a hora da ciência e do progresso. Através desta forma conseguiram captar muitas pessoas, mesmo nas classes populares. As pessoas das zonas industriais – nas cinturas das cidades – foram convencidas que a questão social estava ligada à questão religiosa. Para conseguir resolver a questão social era preciso resolver primeiro a questão religiosa. Tirar a influência à Igreja.
AE – No fundo, pretendiam laicizar a sociedade?
MLBM – Não era apenas a laicização das instituições, mas era preciso laicizar também as consciências. A retórica estava imbuída de certos conceitos: pátria, cidadão e felicidade. Era uma forma de galvanizar as multidões. Esta laicização contava também com a escola que seria a oficina onde se formavam cidadãos. Aquele pacote legislativo – de Outubro de 1910 até Abril de 1911 – foi muito apressado para um país com uma taxa de analfabetismo tão elevada. Em França, esta legislação tinha levado mais de 30 anos (a 3ª República começou em 1870 e a Lei da Separação só foi decretada em 1905) a ser aplicada.
AE – Neste combate ao analfabetismo, as mulheres não assumem um papel de charneira?
MLBM – Mesmo durante a monarquia trabalhou-se para vencer o analfabetismo. Era uma preocupação sentida. Os republicanos tinham as “escolas móveis” onde se fazia um ensino com bases na ideia do progresso e da ciência. Nada de transcendentes. Uma educação muito republicana e, muitas vezes, as mulheres são as professoras dessas escolas. No entanto, também existiam colégios das congregações religiosas que assumiram um papel importante nas elites e, mesmo, junto das crianças mais pobres. As Doroteias e o Instituto do Coração de Maria tinham, ao lado das escolas para as elites, escolas para as crianças mais pobres.
Já se tinha entendido que a secularização era um bem para a população e para a sociedade. Só que alguns republicanos estavam mais preocupados com a reforma das mentalidades do que com as questões sociais. Para estes republicanos era fundamental alterar as mentalidades que estavam informadas pelo jesuitismo.
AE – Mas a extinção das ordens religiosas, em 1834, deixou muitas populações abandonadas.
MLBM – O Alentejo sofreu muito com essa medida. A diocese de Beja esteve muitos anos sem bispo. Caiu-se numa certa indiferença porque as pessoas não se sentiam acompanhadas….
AE – Notou-se um agravamento com a expulsão das ordens religiosas?
MLBM – A lei obrigava os membros destas congregações a irem para as suas terras. Proibia que residissem na mesma casa mais de três religiosos/as, mas muitas destas religiosas já viviam naquelas comunidades há mais de trinta anos. Com aquela idade tiraram-lhes o lar e o trabalho (escolas, hospitais). Foi uma situação muito dramática. No entanto, funcionou a solidariedade entre elas. Algumas levaram companheiras consigo e, noutros casos, famílias beneméritas ofereceram-se para cuidar delas, justificando que iam a título de criadas.
AE – Sem a indumentária característica das religiosas?
MLBM – Sem “hábito”. Algumas puderam continuar nas suas casas – sem “hábito” -, desde que fosse pouca gente e quando não se conseguiu encontrar quem as pudesse substituir. Isso aconteceu com um asilo de cegas, em Lisboa, e que estava entregue às Dominicanas de Santa Catarina de Sena que tiveram como fundadora Teresa de Saldanha. Creio que ela foi a única que ficou em Lisboa e, daí, dirigiu toda a congregação.
AE – Então a congregação não desapareceu?
MLBM – Ela conseguiu espalhar e arranjar outros sítios onde necessitassem das irmãs, tanto nas escolas como na assistência hospitalar. Foram para os Estados Unidos da América, Brasil… Mas não foram apenas as religiosas de Teresa de Saldanha. As Doroteias, as do Coração de Maria, as do Bom Pastor foram para vários países. O Colégio do Quelhas, em Lisboa, que pertencia às Doroteias foi quase todo – alunas e professoras – para a Suíça.
AE – E as verbas para as deslocações e alojamento?
MLBM – As alunas pagavam e, no geral, havia uma ou duas freiras que as acompanhava. Nas férias voltavam… Isso acontece até à guerra. A freira que esteve à frente de todo esse processo foi a Madre Monfalin. Era uma religiosa Doroteia da aristocracia que tinha conhecimentos. Outras foram para o Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica e, sobretudo, Espanha. Para Espanha foram as religiosas mais idosas porque era complicado fazerem grandes viagens. Escolheu-se uma casa em Tuy (Espanha). Depois do noviciado andar por diversos países instalam-no aí. É por isso que a irmã Lúcia, de Fátima, depois de estar numa casa das Doroteias, no Porto, foi fazer o noviciado para Tuy. Nessa altura, o noviciado das Doroteias estava em Tuy.
Por outro lado, a Madre Provincial das Doroteias que tinha bens de família – chamava-se a “legítima” – gastou-os para pagar as viagens e a instalação das irmãs. Num primeiro momento, em Tuy, antes de conseguirem alunas viviam dos trabalhos de bordados.
AE – Qual a congregação feminina mais atingida com o pacote legislativo de Afonso Costa?
MLBM – É difícil responder, mas as Doroteias – nessa altura – tinham muita gente. Foi a primeira congregação feminina que veio para Portugal. Por outro lado, as Doroteias eram das mais odiadas porque se dizia que elas estavam muito ligadas aos jesuítas. Até lhes chamavam os jesuítas de saias. A casa das Doroteias era no Quelhas (Lisboa). Nessa zona da cidade residiam também os jesuítas. Eram próximos…
AE – Com a expulsão destas congregações, as vocações consagradas sofreram um revés?
MLBM – Certamente, mas algumas deixaram discípulas. Quando fechou – por ordem do Governo – a “Associação de Santa Maria Madalena” (o nome tinha que ter o termo “associação” devido a uma lei, de 1901, de Hintze Ribeiro), Júlia de Brito e Cunha reuniu algumas dessas irmãs do Bom Pastor e deu vida à obra que apoiava mulheres em situação de risco. Congregou-as e passaram a dedicar-se à costura e aos bordados. No entanto, algumas pessoas começam a dizer que existia ali um “coio jesuítico”. A casa fecha e muitas delas vão para Tuy (Espanha).
Luísa Andaluz tomou conta de uma escola que as Cartuxas tinham em Santarém. Criou também outras obras que, mais tarde, deram origem à Congregação das Servas de Nossa de Fátima.
AE – Então podemos concluir que tivemos “mulheres de armas” a auxiliar as “expulsas” neste período conturbado?
MLBM – Sim. Destaco também Maria Carolina Sousa Gomes, de Coimbra, que era filha de um professor universitário – Francisco Sousa Gomes – que esteve ligado à criação do CADC (Centro Académico de Democracia Cristã). Maria Carolina dá origem a uma obra voltada para as classes pobres: Criaditas dos Pobres.
Neste universo, destaco também Sílvia Cardoso. Foi amiga do Guerra Junqueiro – acompanhou-o na sua doença – e de Leonardo Coimbra. Tinha uma casa de retiros e uma escola para crianças pobres.
AE – A historiografia desta época ainda não foi suficientemente estudada. No entanto, nota-se uma ausência de rostos femininos neste período da história.
MLBM – São conhecidos alguns rostos femininos, mas de republicanas que apoiaram a implantação da República. Em relação às mulheres católicas estão um pouco esquecidas, mas deixaram obra e mostraram que tinham as virtudes republicanas. Há um certo preconceito…
AE – Sem esquecer as mulheres anónimas que desempenharam um papel fulcral na catequese dos seus filhos?
MLBM – Quando se deu o 5 de Outubro de 1910, a catequese estava muito abandonada. O Papa tinha preconizado para que em todas as paróquias se organizassem associações de doutrina cristã. Mas a catequese era dada, essencialmente, por homens. Por volta de 1913/14, quando as coisas estão mais calmas, começam a aparecer algumas revistas. Em Viseu, aparece a revista “Catequística”. Num dos seus primeiros números, esta revista lembra os regulamentos de Valladolid (Espanha): “das associações de catequese fazem parte eclesiásticos, seculares e até pessoas do sexo feminino”. Este “até” mostra que isto não era vulgar.
O bispo da Guarda, D. Manuel Vieira de Matos, tem uma revista – “Acção Católica” – e refere que consultou alguns bispos franceses para saber como eles resolveram os problemas da catequese. Às mulheres da diocese da Guarda, D. Manuel Vieira de Matos pede-lhes que imitassem as cristianíssimas francesas. Isto mostra que não era usual elas darem catequese. Em 1916, quando se faz a organização da catequese, em Lisboa, também se chamam as mulheres.
AE – Em 1931, a Pastoral Colectiva dos Bispos reconhece que o ensino da catequese estava mais difundido…
MLBM – Nessa pastoral são publicadas as conclusões do Concílio Plenário de 1926. Reconhece que este ensino estava mais difundido do que 20 anos antes e isso devia-se às mulheres. Mas isso não contentava os prelados porque ainda existe o preconceito que as mulheres têm menos dignidade do que o homem. A acção das mulheres é de tal modo importante e dá tanto nas vistas que um indivíduo anticlerical – Tomás da Fonseca – denuncia a situação usando um tom de troça: “a Igreja está entregue a mulheres”.
AE – As mulheres também foram fundamentais no período da I Guerra Mundial?
MLBM – Os soldado iam para a guerra, mas não existiam capelães. A Lei da Separação tinha acabado com a existência de capelães. Os católicos não se conformavam que os seus entes queridos fossem para a guerra sem o capelão. Neste período, as mulheres recolhem assinaturas para serem apresentadas à Assembleia, no sentido de o governo possibilitar a ida de capelães militares. O que irá acontecer mais tarde.
No mesmo mês que a Alemanha declara guerra a Portugal (Março 1916), surge uma agremiação de mulheres católicas – muitas delas da aristocracia (condessa de Ficalho e condessa de Burnay) – que fundam a associação “Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra”. Em primeiro lugar, estas mulheres pretendiam formar enfermeiras. O Governo criou-lhes dificuldades. Algumas delas fazem exames com a Cruz Vermelha. A condessa de Burnay, Maria Amélia Carvalho de Burnay, cede uma casa na Junqueira (Lisboa) à Cruz Vermelha. É aí que são preparadas as enfermeiras que vão para França com a Cruz Vermelha. Algumas destas mulheres fazem acções notáveis no auxílio às famílias dos militares.
AE – E o papel desempenhado pelas “Madrinhas de Guerra”?
MLBM – Esta associação foi fundada pela filha da condessa de Burnay, Sophia Burnay de Melo Breyner, e teve um êxito muito grande. Mais tarde é imitado por outras organizações.