República, Comunicação e Igreja

D. Manuel Clemente na abertura das Jornadas Nacionais das Comunicações Sociais

No centenário da República em Portugal, as nossas Jornadas não podiam deixar de a ter em conta. Mas, ainda mais do que a fixação no 5 de Outubro de 1910 e no que o antecedeu e prolongou imediatamente, interessa-nos verificar se efectivamente se cruzam daí para cá as três palavras que dão o tom ao nosso encontro. Ou seja, se a vivência “republicana”, o influxo da comunicação social e a própria maneira de “ser Igreja” tiveram e têm ligação lógica e cronológica evidente.

Permitam-me trazer-vos das “leituras de Verão” duas referências apenas. A primeira, dum recente livro sobre o Estado moderno de Wolfgang Reinhard, conhecido historiador de Friburgo, quando escreve assim: “O moderno estado nacional democrático, vivia, efectivamente, da auto-identificação incondicional dos cidadãos com ele. Com o enfraquecimento dessa auto-identificação começou o declínio do Estado, como se verificou em todo o mundo no último quartel do século XX. Para tal declínio contribuíram diversos factores, começando pela desmistificação do Estado por parte da ciência [histórico-política] e […] dos mass media” (cf. W. Reinhard, Storia dello Stato moderno, Bologna, Il Mulino, 2010, p. 107; ed. alemã de 2007).

O autor evidenciara antes como o Estado moderno nasceu da soma da centralização política com o nacionalismo oitocentista, este como nova alma daquela. Seguidamente, o esgotamento das possibilidades de auto-realização dos Estados e a internacionalização dos contactos pessoais e da informação relativizaram o Estado-nação como ideal e como viabilidade.

Que isto mesmo se relacione com o influxo da comunicação social, cada vez menos limitada por barreiras políticas, parece também evidente. Situando a análise numa das fronteiras da Europa, Bernard Lewis, professor de Princeton, sublinha o papel do jornalismo nas transformações verificadas na Turquia, de há um século para cá, da política à linguagem: “O advento do jornal nas terras do Islão introduziu uma nova concepção e um novo conhecimento do que acontecia, especialmente na Europa […]. A exigência de discutir e explicar tais acontecimentos fez nascer uma nova linguagem, donde saíram o árabe, o persa e o turco modernos. Daí emergiu também uma nova e portentosa figura, a do jornalista, que desempenhou depois um importantíssimo papel no desenvolvimento do mundo islâmico moderno. […] Em 1925, a Turquia, depois seguida pela maioria dos outros países do mundo muçulmano, abriu caminho às transmissões radiofónicas. A televisão foi introduzida nos anos sessenta, ganhando também difusão universal nesse mesmo mundo. […] Hoje em dia, o ouvinte ou telespectador pode, pelo menos, escolher entre várias mensagens […]. A possibilidade e o exercício de tal escolha podem considerar-se como uma entre muitas manifestações da europeização do mundo islâmico” (cf. B. Lewis, L’ Europa e l’Islam, Bari, Laterza, 2007, p. 84-85; ed. inglesa de 1990).

Estas análises estendem-se por um âmbito temporal tão grande ou maior do que o da nossa República. Mas é um facto que os factores apontados também incidiram aqui, antes e depois da mudança do regime.

O ideário de há cem anos – como já o da anterior e determinante Geração de Setenta – vinha muito “de fora”, da França, da Alemanha ou doutras partes, em permanente contraste com o tradicionalismo cultural endógeno, ou reforçando este com argumentos similares de além-fronteiras. O que sucedeu antes e depois de 1910 foi, muito especialmente, um grande debate cultural, quer nos temas, quer no modo de os tratar, mais como convencimento e debate, do que como certificação prévia e excludente.

Também no que à Igreja se refere. E não só porque os católicos tiveram de se definir como tais e “dar razões da sua esperança”, mas porque incluíram na própria vida interna do catolicismo militante o novo modo de pensar em diálogo e afirmar em contradita.

Trago-vos uma das muitas referências da época, que podiam ser, quase quatro décadas anterior ao 5 de Outubro, mas já reivindicando o termo que depois se tornaria em regime. Creio que este trecho do Conde de Samodães (1828-1918), um dos mentores do nosso “movimento católico”, pode ficar como boa sugestão do título e do escopo das nossas Jornadas deste ano. “Houve tempo em que a teologia não precisava de ser popular. Estava esta ciência reservada para os sábios e os doutores. Hoje é mister que ela se torne acessível e, servindo-me dum epíteto hoje na moda, republicana, isto é, ao nível de todos, perfeitamente igualitária […]. Aqui [na Associação Católica do Porto] hoje e sempre que nos reunirmos, congregados em academia, comunicamos nossos pensamentos, transmitimos nossas ideias, comungamos no saber de todos […]. É indispensável que haja academia, conferências, congressos, jornais, livros, tudo quanto seja conducente a apoiar a causa do catolicismo” (Conde de Samodães, Discurso em honra da Cruz, 1873, p. 33-35).

Creio que este monárquico “republicano” se sentaria de bom grado nas nossas Jornadas, para versar connosco a relação entre República, Comunicação e Igreja. Sobretudo porque, na defesa das suas convicções foi sempre capaz de apurar e valorizar o que os seus opositores traziam para consolidar valores comuns, como fossem o serviço do próximo, a liberdade cívica – incluindo a religiosa – e a promoção cultural, com grande respiro universalista; sem deixar de ser católico e português – ou exactamente por sê-lo.

D. Manuel Clemente
Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais

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