Religiosidade Popular: «Sem a Missa do Parto o Natal não nos sabe à mesma coisa» – Luís Melim

Para Ana Castro Neves as expressões de tradição, de comunidade, «aproximam enquanto pessoas e fazem relembrar as raízes»

Foto: Mário Carvalho / Paróquia de Alfragide

Amadora, 20 dez 2025 (Ecclesia) – A ‘Missa do Parto’ é uma tradição de Natal do Arquipélago da Madeira que a diáspora celebra nos locais onde se encontra, mesmo em Portugal continental, como na Paróquia de Alfragide (Lisboa), há mais de uma década.

“Viver as Missas do Parto é sempre viver uma tradição da Madeira e Porto Santo que nos é muito familiar. Como nós dizemos, faz parte da festa, sem a Missa do Parto o Natal não nos sabe à mesma coisa. E para nós que estamos no continente, que vivemos cá e que trabalhamos e temos as nossas vidas todas orientadas cá, é a única forma que temos de lembrar o Natal, de lembrar a festa, é esta Missa do Parto”, disse Luís Melim, em declarações à Agência ECCLESIA.

Para este madeirense, natural de Porto Santo, esta celebração “é sem dúvida uma grande vivência”, aquilo que os faz relembrar, e “faz viver as tradições natalícias lá da Madeira”.

Ana Castro Neves, da organização da ‘Missa do Parto’ em Alfragide, explica que a celebração começou nesta paróquia do Patriarcado de Lisboa por iniciativa de um antigo pároco, o padre Dehoniano Nélio Tomás que era natural do Porto da Cruz (Madeira), “juntamente com uma comunidade de madeirenses”; “tem vindo a crescer de ano para ano”, e após o falecimento do sacerdote, “uma pessoa muito carismática”, quiseram continuar, é “tradição, mas também um legado”.

“Acaba por atrair madeirenses de todas as zonas do país tanto do norte, como do centro, do sul, ou seja, a diáspora madeirense que está cá. Quem não consegue ir à terra, acaba por ser um cheirinho à casa. Para aqueles que conseguem ir, começamos logo aqui, e, portanto, queremos continuar estas tradições.”

Ana Castro Neves salienta, a partir dos atuais “tempos conturbados, muita globalização”, que é, cada vez mais, importante relembrar de onde vieram, e são estas expressões vivas de tradição, de comunidade, que “aproximam enquanto pessoas e que fazem relembrar as raízes”.

“Os nossos antepassados tiveram uma vida muito dura, tanto na Madeira, como no Porto Santo, eram momentos de muita escassez, aquilo que os meus avós contavam havia muita escassez de água, inclusive para o cultivo, então, há muita entreajuda entre as pessoas. O espírito do Natal é mesmo este, é o espírito de comunidade e de entreajuda”, desenvolveu.

“Só conseguimos projetar o futuro se nos lembrarmos de onde viemos e quem somos, para conseguirmos edificar um futuro melhor, mais fraterno, conseguirmos construir uma sociedade mais sólida, uma comunidade que se entreajuda, ou seja, reforçar este sentimento de pertença às nossas raízes.”

A entrevistada explicou que a ‘Missa do Parto’ “é uma caminhada de nove missas” que antecedem a Missa do Galo, mas, em Lisboa, celebram “apenas uma, dada a logística”, uma Eucaristia “por cada mês de gravidez”.

“Celebramos a expectação do parto da Virgem Maria, que vai culminar com o nascimento de Jesus Cristo, que nasce para ser a luz do mundo e o salvador da humanidade”, acrescentou a entrevistada, natural de Porto Santo.

As estudantes universitárias Catarina Barbosa (Ciências Musicais), da Camacha, e Beatriz Vieira (Mestrado de Ensino em Filosofia), do Funchal, participaram numa Missa do Parto no continente pela primeira vez, e asseguram, respetivamente “é nos próximos”, “até voltar para lá, que seja todos os anos”.

“Achei muito giro toda a homenagem à cultura madeirense. O presépio de lapinha, de escadinha, estava muito giro, o facto de ter as canções aqui na rua, os comes e bebes como na Madeira. Muito giro”, destacou Catarina Barbosa.

Beatriz Vieira “nem sequer sabia que havia” uma Missa do Parto no continente, observa que a festa “é um bocadinho diferente” da celebrada na Madeira, “mas é muito engraçado mesmo”, e a “diferença que oi a mais positiva é tudo de graça”.

“Estarmos a beber poncha, cacau, carne de vinha-d’alhos, de graça, ninguém estava à espera, nós já estávamos a perguntar uns aos outros quem é que tinha dinheiro”, acrescentou a jovem funchalense, sobre o momento de convívio com gastronomia típica da ilha e música, após a celebração litúrgica.

Ana Castro Neves, que destacou o acolhimento da comunidade de Alfragide para a realização desta celebração, realça que “só é possível manter esta tradição com este traço original”, da gratuitidade, porque as pessoas levam “algo que se possa partilhar entre todos”, e o apoio da Associação de Promoção da Região Autónoma da Madeira, e conseguem também que “os bens doados” cheguem “àqueles que mais necessitam, através do grupo socio-caritativo”, que “é muito espírito madeirense”.

A organização da ‘Missa do Parto’ na Paróquia de Alfragide (Amadora) convidou D. Rui Gouveia, bispo auxiliar do Patriarcado de Lisboa, que é natural da Madeira, para presidir a esta celebração, realizada no dia 13 de dezembro.

As ‘Missas do Parto’ vão estar em destaque no próximo Programa ‘70*7’, uma reportagem realizada também na Ilha da Madeira, este domingo, dia 21 de dezembro, a partir das 17h40, na RTP2.

CB/PR

A Missa do Parto é uma das “mais antigas tradições da Madeira”, remonta ao início do seu povoamento, cerca do século XV/XVI, juntamente com a Ordem Franciscana, e está “muito ligada ao quotidiano da comunidade rural”.

“Celebra-se, habitualmente, de madrugada, entre as cinco e as seis e meia da manhã, porque essa era a altura em que não interferia com os trabalhos no campo. As pessoas vinham em romaria para a Missa, e depois iam continuar os seus trabalhos no campo”, explicou Ana Castro Neves.

Luís Melim, maestro do coro da celebração e multi-instrumentista (órgão e acordeão), explica que a ‘Missa do Parto’ “normalmente era animada com instrumentos tradicionais” – “é uma missa do povo e é uma missa para o povo” -, que “era cantada, mesmo antes do Concílio Vaticano II, em português, uma coisa muito rara e muito difícil na época das Missas ainda em Latim”.

Foto Diogo Paiva Brandão/Patriarcado de Lisboa, Missa do Parto na Paróquia de Alfragide, presidida por D. Rui Gouveia

“Havia muitas partes ainda em Latim, como a ladainha, as invocações iniciais e ejaculatórias eram todas em latim, mas muitos dos cânticos durante a Missa eram todos em português. Até se deduz que a Missa do Parto seja uma das primeiras inspirações, digamos assim, dos cânticos para português no pós-Concílio Vaticano II”, desenvolveu.

Para este entrevistado, porto-santense, tocar acordeão “é um voltar à terra”, é um mostrar que são simples, “é uma simplicidade, não há muita liturgia à volta da coisa”, porque “é um acordeão, é um rajão, é uma braguinha, é um bandolim, é um brinquinho, as castanholas que faziam a festa e faziam a animação durante a Missa”.

“Era aquilo que as pessoas tinham no campo, nem todas as paróquias na Madeira tinham a possibilidade de ter órgãos, havia muitos órgãos no Funchal fora já era mais difícil. Como tal, as pessoas iam buscar os instrumentos da terra, os instrumentos de casa, aquilo que tinham à porta, aquilo que as pessoas usavam para ir de porta em porta a anunciar o Natal”, desenvolveu Luís Melim.

Ana Castro Neves acrescentou que o convívio, depois da Missa, foi com “instrumentos tradicionais”, destacou ainda “o rajão, as castanholas, o reco-reco”, os cânticos tentam “que sejam madeirenses”, para além de na gastronomia terem também “o bolo de mel, as broas de mel, as rosquilhas”, para “dar um bocadinho às pessoas que cá estão a conhecer aquilo que é feito na Madeira”, “o cartaz turístico da Madeira do Natal e do final de ano é mundialmente conhecido”.

 

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