O sociólogo Alfredo Teixeira, responsável do Centro de Estudos de Religiões e Culturas da Universidade Católica Portuguesa, fala à Agência ECCLESIA de um universo simbólico em mutação e da importância do património cristão na sua relação com a religiosidade popular
O sociólogo Alfredo Teixeira, responsável do Centro de Estudos de Religiões e Culturas da Universidade Católica Portuguesa, fala à Agência ECCLESIA de um universo simbólico em mutação e da importância do património cristão na sua relação com a religiosidade popular.
O docente universitário foi coordenador e relator do estudo ‘Identidades religiosas em Portugal: representações, valores e práticas’ (2011), encomendado pela Conferência Episcopal Portuguesa.
Agência ECCLESIA (AE) – Como é que se tem processado a mudança dos universos de significação religiosa num país como Portugal que é, em larga medida, um ‘bloco’ católico e cristão?
Alfredo Teixeira (AT) – O estudo, sob esse ponto de vista, demonstra que há uma persistência significativa dos enunciados cristãos no conjunto das representações crentes. Por exemplo, representações de Deus como o ‘Deus de Jesus Cristo’, claramente cristã na sua descrição, têm uma taxa de concordância muito elevada. Isso, no entanto, convive com outros enunciados muito mais difusos, compreensões de Deus mais próximas de certa linguagem diríamos energética ou então de um ‘Deus interior a mim’, muito mais subjetivado.
AE – Que dados se podem apresentar como mais relevantes?
AT – Aquilo que é próprio da modernidade que nos descreve é essa combinação de coisas que são muito diferentes, muito heterogéneas, ou seja, nós podemos ter, de facto, uma sobrevivência muito ampla de enunciados especificamente cristãos, mas eles combinam-se com dimensões do crer que são já muito mais individualizadas e reconstruídas individualmente. Isso, em si, esse tipo de recomposições, não é novo não é experiência cristã, sempre aconteceu de certa forma; talvez o traço mais importante, neste momento, é que essa recomposição não acontece apenas no domínio daquilo que antecede à inscrição do cristianismo em culturas locais, em muitos casos remodelando cultos e práticas: neste momento, isso acontece a partir de uma lógica da afirmação do indivíduo. Desse ponto de vista, temos uma diversificação que é claramente diferente daquela que conhecíamos antes na cultura europeia.
AE – Historicamente, este pluralismo da religiosidade foi sempre visível nas festas populares e nas tradições que lhes estão associadas…
AT – Eu penso que essa foi sempre, com diferenças ao longo da história, caraterística do cristianismo, que se apresenta como uma religião universal, portanto aberta à diversidade das experiências culturais, mas que tem em si próprio uma mensagem que dá conta de uma imagem de um Deus encarnado. Nalguma literatura oral portuguesa usa-se muito a expressão ‘um Deus humanado’: esta ideia de um Deus que pode ter a escala humana acaba por disponibilizar muito as representações cristãs para apropriações na cultura local que, de facto, marcaram o cristianismo, de uma maneira geral, sobretudo até numa cultura cristã mediterrânica, de que Portugal participa.
Isso, depois, traduz-se em fenómenos que depois são muito marcantes, em particular no cristianismo latino: a relação das pessoas com os santos, enquanto figuras protetoras, a prática da peregrinação, sob as diferentes formas – a romaria, os círios. Todas estas são formas religiosas que não foram propriamente criadas pelo cristianismo: a existência de uma figura tutelar, que é a entidade protetora da comunidade, corresponde a uma das estruturas mais elementares de religião, que é o totemismo.
Deste ponto de vista, o que o cristianismo faz, de alguma maneira, é redirecionar essa experiência religiosa para um horizonte, uma significação cristã, sem, em muitos casos, dissolver essas práticas que encontrou.
AE – Essa relação nem sempre é fácil…
AT – Eu diria que, de uma maneira geral, essas práticas subsistem em alguma tensão, ou seja, algumas coisa delas transporta ainda memória de um pré-cristianismo e alguma coisa nelas claramente se rediz, claramente, agora já no contexto cristão. Esta tensão é muito caraterística da religiosidade popular e foi ela que levou, mesmo no nosso país, a uma consideração diversificada do valor dessa religiosidade em termos pastorais. Tivemos momentos na pastoral pós-conciliar, por exemplo, de alguma tensão, em que os pastores, em particular alguns párocos com uma formação diferente, achavam que determinadas práticas teriam de ser corrigidas ou abandonadas, precisamente por transportarem de uma forma muito evidente essa tal dimensão de uma religiosidade mais de natureza local, natural – uma expressão que atualmente a antropologia das religiões recuperou, ou seja, uma forma simbólica de a comunidade humana se expressar na sua relação com o meio.
Isso aparece muito claramente em manifestações da religiosidade popular, muitas delas ligadas aos ciclos das estações do ano, às atividades agrícolas, no fundo, a essa experiência humana fundamental, que é a da sua relação com o meio e da construção de um modo simbólico para se proteger face a ele, de o dominar, transformar.
OC