Atendamos primeiro a algumas datas, importantes para a complexa relação liberalismo – catolicismo em Portugal:
1832, tomada liberal do Porto e “cisma” nas dioceses até 1841, entre eclesiásticos governamentais e bispos afastados por D. Pedro.
1834, implantação definitiva do liberalismo e extinção imediata (masculinas) ou a prazo (femininas) das congregações religiosas.
1862, decreto sobre os concursos paroquiais, retendo no Governo as nomeações pastorais.
1871-1872, 1º congresso católico português, realizado no Porto.
1901, caso “Calmon” (Porto), propaganda anti-católica, origens do CADC (Centro Académico da Democracia Cristã, Coimbra).
1910, proclamação da República.
Março de 1911, exílio do Bispo do Porto; 20 de Abril, Lei de Separação.
1913, “Apelo de Santarém” e relançamento do “movimento católico” sob a égide do Episcopado.
Valorizemos agora a figura de Francisco de Azeredo Teixeira de Aguilar, 2.º Conde de Samodães (Gaia, 1828 – Porto, 1918) (1), que foi o verdadeiro “chefe” do movimento católico. Com esta designação genérica se refere um conjunto de iniciativas que, sobretudo a partir de 1870, visou defender e promover a vida interna e “apostólica” da Igreja, quer face às grandes ingerências do Estado quer quanto à crítica ideológica de muitos descrentes.
Numa sociedade já em processo de secularização e afastamento da prática e mesmo da convicção católica, ele e outros leigos católicos tomaram parte inteira na apologética de fé e obras, assumindo-se como autênticos crentes em situações e postos que, aliás, quase só eles poderiam ocupar. Passávamos então dum mundo sacralizado, em que a religião tanto definia o poder político como a acção pastoral, para a sociedade contemporânea, em que pertenças e competências estão muito mais distribuídas. Cumpriam de facto o que Joseph de Maistre já previra no início do século ao introduzir uma obra sua, que muito influenciaria o catolicismo oitocentista:
“Poderá causar admiração que um secular [= leigo] se arrogue o direito de tratar questões que, até aos nossos dias, pareceram devolvidas ao zelo e à ciência da ordem sacerdotal […]. Imensas causas têm enfraquecido a ordem sacerdotal. A revolução a espoliou, desterrou, trucidou; tornando-se por todos os modos cruel contra os defensores natos das máximas que aborrecia. […] Outra consideração ainda não teve pouca força para me animar. O clérigo que defende a religião faz sem dúvida o seu dever […]; mas […] todo o observador terá podido perceber mil vezes que os incrédulos desconfiam menos de um homem do mundo, e com bastante frequência o deixam aproximar sem a menor repugnância” (Joseph de Maistre, Do Papa, 1819; trad. portuguesa, Lisboa 1845).
Samodães, além da formação escolar e militar, da vida familiar e da administração dos seus bens, desempenhou vários cargos políticos (deputado, par do Reino, governador civil do Porto, ministro da Fazenda), e dedicou-se a uma intensa vida cultural, literária (especialmente jornalística) e assistencial (com relevo para a Misericórdia do Porto).
Em tudo se revelou propriamente “militante”, em combate pacífico e franco na defesa daquilo a que chamou “a liberdade da Igreja”, ou seja, a sua autonomia de organização e apostolado, face ao regalismo persistente dos governantes. Isto releva tanto mais quanto Samodães era francamente adepto do regime constitucional, ao contrário de outros católicos que o consideravam ilegítimo e intrinsecamente inimigo da Igreja. É interessante verificar como ele integra a sua luta político-religiosa numa sequência que remonta a outro grande liberal portuense, que também prestara a sua contribuição ao reatamento das relações entre Portugal e a Santa Sé, no demorado rescaldo das guerras civis dos anos trinta. Escreveu Samodães em 1880:
“A minha dedicação para com o episcopado é mais lata, amplia-se a todo o clero, cuja causa me comprazo em ter defendido toda a minha vida como defendido tenho a religião católica, apostólica, romana, pelo modo que tenho sabido e podido, imitando nisto e mal (por mais não poder) o Visconde de Almeida Garrett, que um dia me deu esse conselho em 1854” (Conde de Samodães, A liberdade da Igreja em Portugal, 1880, p. 35).
O contributo dos católicos liberais portuenses foi muito importante para a consolidação do regime constitucional. Por duas razões, fundamentalmente: 1ª) Porque retiravam o “pretexto” religioso aos legitimistas, que confundiam a reacção anti-liberal com a causa católica. Concretamente no Porto, homens como Samodães demonstravam que se podia ser devotamente católico e empenhadamente político, dentro do novo regime e das suas instituições. 2ª) Porque activavam um novo protagonismo dentro da própria Igreja, já de acordo com a cidadania plena que os tempos apeteciam, tanto no pensamento como na acção. Em Samodães, com quem os bispos portugueses tratavam e se aconselhavam em grande confiança, releva a urgência do estudo, do debate, da promoção competente da doutrina e da prática católicas. Precisamente no campo doutrinal e teológico, quase só eclesiástico até aí. Oiçamo-lo em 1873:
“Houve tempo em que a teologia não precisava de ser popular. Estava esta ciência reservada para os sábios e doutores. Hoje é mister que ela se torne acessível e servindo-me dum epíteto hoje na moda, que corre de boca em boca, republicana, isto é, ao nível de todos, perfeitamente igualitária, porque iguais nos fez a Cruz, a redenção, o catolicismo. […] Aqui hoje e sempre que nos reunirmos, congregados em academia, comunicamos nossos pensamentos, transmitimos nossas ideias, comungamos no saber de todos. […] A fé, que noutras eras podia ser cega, hoje precisa de ter os olhos abertos […]. Precisamos provar praticamente aos livres pensadores que não nos esquivamos à discussão […]. É indispensável que haja academia, conferências, congressos, jornais, livros, tudo quanto seja conducente a apoiar a causa do catolicismo” (Conde de Samodães, Discurso em honra da Cruz, 1873, p. 33-35).
Este discurso de Samodães foi proferido na Associação Católica do Porto, há 137 anos, com grande abertura de conceitos e até de linguagem, quase a fundamentar uma “teologia republicana”… Mas essa mesma Associação resultara já duma prática congénere, exercitada desde o começo da década – a mesma das Conferência do Casino e do Partido Republicano – por um grupo informal de católicos portuenses que estivera na sua origem, habitualmente reunidos em casa do Conde de Azevedo, para debater estas e outras questões, como revelaria Samodães no jornal A Palavra de 2 de Janeiro de 1877: “O nobre conde de Azevedo teve muitos e verdadeiros amigos e a sua casa era um centro, onde eles se congregavam, para em agradável colóquio discutirem entre si assuntos, a que a murmuração era estranha”.
Azevedo discursou no congresso católico do Palácio de Cristal, a 1 de Janeiro de 1872. E aí retomou, com idêntica liberdade, as ideias que já ouvimos a De Maistre:
“Bem sei que não falta quem tenha dito que esta nossa reunião era inútil e desnecessária por isso que os ministros sagrados do culto aí estavam todos os dias pregando dentro dos nossos templos as coisas da religião, tornando-se assim escusado o vir escutá-las aqui. É exactamente por esse dito que estas reuniões me parecem necessárias e utilíssimas: no século passado Voltaire, chefe dos incrédulos do seu tempo, para ridicularizar a religião católica chamava-lhe a religião dos Padres, e os seus discípulos desde então até hoje não se têm esquecido de lhe dar a mesma denominação; pois […] eu afirmo que é tudo pelo contrário, que a religião católica não é a religião dos Padres, mas os Padres é que são da religião católica […]; é portanto coisa evidente que, sendo a religião, a Igreja Católica, e os Padres coisas coevas na sua fundação e criação por Jesus Cristo, não são aquelas que derivam destes, mas sim estes que derivam daquelas… ” (Visconde de Azevedo, Discurso pronunciado na Assembleia dos Oradores e Escritores Católicos, Porto, 1872, p. 6-7).
O que o orador queria dizer compreende-se bem, na apologética da altura: a sociedade liberal desejava participação igualitária, mais do que obediência a autoridades, acusando os católicos de submissão e menoridade cultural… Mas a eclesiologia de Azevedo rebate radicalmente tal posição. Não pondo em causa o papel dos ministros sagrados, integra-os na comunidade a que pertencem com todos os fiéis, sendo estes chamados a dar testemunho lúcido da sua fé nas circunstâncias especiais que se viviam. Realizavam no Porto o que começara tempos antes no catolicismo europeu: “Para evitar estes sarcasmos dos adversários da Igreja católica, e para mostrar-lhes que a religião católica não é a religião dos Padres, mas sim a religião de Jesus Cristo, é que se têm reunido em vários lugares do mundo católico estas assembleias de natureza puramente leiga e secular” (Ibidem, p. 7).
Entendamos que para Azevedo, Samodães e os seus colegas portuenses de 1872, o ministério e a necessidade dos sacerdotes eram indiscutíveis Mas o que sobressai neles é a consciência clara e certeira de que, numa sociedade secular como já era a portuguesa, pelo menos em meio urbano, era necessário que o fiel católico assumisse francamente a sua condição e a declarasse onde estivesse, com saber e consequência teórica e prática.
E este não foi pequeno contributo para a consolidação da convivência liberal na sociedade portuense da altura. E, sabendo nós como tudo se radicalizou nos vinte anos que precederam a implantação da República, aliando muitos, positiva ou negativamente, o trono e o altar, é importante verificar que o contributo teórico e prático do Samodães dos anos setenta acabou por inspirar quer os católicos que se opunham à referida fusão político-religiosa, quer o relançamento da Igreja na segunda e terceira décadas do século XX. Ainda em 1908, diria Abúndio da Silva, também figura fundamental do Movimento Católico:
“A religião, que conservou sempre a bom recato, a sua piedade […], nunca o impediram de segurar, com pulso rijo, a bandeira da liberdade […]. E que dizer do Conde de Samodães como o organizador do movimento católico em Portugal? O homem que se bateu pela liberdade política, consagrou também o melhor da sua vida a defender praticamente a liberdade religiosa, e a assegurar os católicos do seu direito de professarem e propagarem a sua fé. / O movimento inicial da restauração católica do Porto saiu da Associação Católica; o impulso gerador da imprensa católica saiu de A Palavra. É o esforço destas duas criações que tem condicionado tudo o que entre nós se tem feito a bem do catolicismo e da democracia cristã. Pois tanto a Associação Católica como A Palavra são fundações do Conde de Samodães. / Essa figura veneranda não é só, pois, o presidente de honra do movimento católico português; é o seu padroeiro” (Abúndio da Silva, O Conde de Samodães, in A Palavra, 16 Jul. 1908, p. 1).
Não fora fácil a Samodães defender catolicamente a causa da liberdade política. Na Europa latina o liberalismo impusera-se drasticamente contra algumas instituições e práticas anteriores, designadamente no campo do congregacionismo religioso; em Itália, desde os anos quarenta, pusera em causa a sobrevivência do Estado Pontifício, que o catolicismo militante considerava indispensável à liberdade do Papa e do seu múnus; tudo complicado por algumas afirmações teóricas que reduziam à subjectividade das escolhas o que até aí obedecia à objectividade dogmática.
Samodães – que era filho dum dos generais de D. Pedro – teve de demonstrar que os liberais portugueses não eram necessariamente “ímpios” de ideias nem de práticas; e que, no campo político, o regime constitucional, se fosse coerente com os seus princípios, libertaria a própria Igreja da anterior asfixia do trono “fidelíssimo”. Oiçamo-lo, assumido o que Montalembert dissera anos antes:
“Eu não comecei a ser católico depois que entrei na Associação Católica do Porto; fui-o sempre, e sempre dei provas disso, como meu pai as deu apesar de ter desembarcado no Mindelo. Vieram nessa expedição muitos e bons católicos: também lá vieram alguns que o não seriam: mas não eram todos o que se chama de bons católicos os que estavam aqui. […]. [O Conde de Montalembert, católico liberal francês] sempre sustentou a religião aliada à liberdade, e ainda em 1863 no congresso de Mallines mostrou que a paz no mundo só podia dimanar da aliança entre a Igreja e a democracia, porque esta era a forma para que todos os governos tendiam. Montalembert falava na Bélgica um dos poucos países em que o Papa é realmente Papa, o que é devido à liberdade sem sofismas, que nessa nação se desfruta” (Conde de Samodães, Última resposta à Nação. Segunda carta, in A Palavra, 29 Jul. 1874, p. 1-2).
Não deixava de ser religioso, porque procurava soluções e sentidos que a organização ou reorganização social, só por si, não lhe dariam. Mas, ainda assim, julgava que o formulário liberal, no respeitante aos direitos cívicos e políticos, era o mais consentâneo com a revelação cristã, da qual, no seu entender, derivavam:
“O católico não sustenta nos seus princípios que a redenção da humanidade está na transformação das fórmulas políticas por que se governam os estados [referira o liberalismo, o socialismo e o comunismo]. […] A extirpação do mal exige meios mais poderosos, que não os desta simples e ineficaz transformação […]. / Poucas condições são indispensáveis para que as instituições velhas ou modernas ou futuras sejam aceitáveis [por um católico], e consiste em que haja governo e não anarquia […]; que não haja despotismo, porque é oposto ao princípio católico da liberdade individual, e que o governo se conforme com os preceitos da moral, revelada e ensinada por Deus. […] Pode-se ser liberal e católico sem contradição nem confusão de ideias: deve ser liberal o que for sinceramente católico, porque os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade não foi a escola revolucionária que os criou, mas o cristianismo” (Conde de Samodães, Catolicismo e liberalismo, in A Palavra, 31 Ago. 1872, p. 1).
Convenhamos que era dizer muito mais do que outros católicos diriam no rescaldo da Comuna de Paris (1871). Mas em Samodães era convicção segura e inspiradora de práticas consequentes no campo da cidadania. E foi assim que – sobretudo no Porto – algum catolicismo português de oitocentos contribuiu para estabelecer na doutrina e na convivência social o regime das liberdades cívicas e políticas.
Porto, Universidade Lusófona, 20 de Março de 2010
Manuel Clemente
NOTA:
1- Sobre Francisco de Azeredo Teixeira de Aguilar, 2º Conde de Samodães, 1828-1918, cf. Eduardo C. Cordeiro Gonçalves, Católicos e política (1870-1910). O pensamento e a acção do Conde de Samodães, PUBLISMAI – Centro de Publicações do Instituto Superior da Maia, 2004. Sobre o mesmo autor e outras figuras do Movimento Católico a seguir referidas, cf. Manuel Clemente, Igreja e sociedade portuguesa do liberalismo à república, Lisboa, Grifo, 2002, passim.