Teresa Vasconcelos, vogal da Comissão Nacional Justiça e Paz, aborda nesta entrevista temas centrais da mensagem do Papa Francisco para a celebração do I Dia Mundial dos Pobres, num olhar que convida à transformação de relações humanas e sociais e numa caminhada conjunta em que todos têm algo a dar e a receber.
Agência ECCLESIA (AE) – Como é que olha para o desafio de caminho que o Papa lança com a celebração do I Dia Mundial dos Pobres, à Igreja e a todos?
Teresa Vasconcelos (TV) – Esta iniciativa do Papa parece-me fundamental. Houve já vários Papas, nomeadamente João XXIII, que chamaram a atenção para a questão dos pobres, com um desafio aos cristãos: não se pode pôr em prática a mensagem do Evangelho sem olhar para os mais desprotegidos. Esta é uma linha já coerente, dentro da Igreja Católica.
O facto de o Papa Francisco ter lançado um Dia Mundial para a pobreza é a possibilidade de, no contexto de uma jornada, se refletir sobre esta questão da pobreza no mundo de hoje. Nunca, a não ser no tempo da escravatura ou da exploração total dos trabalhadores, houve tanta desigualdade – e o nosso país é um dos piores a nível da Europa – entre uma minoria dos mais ricos e uma maioria de pobres.
No caso de Portugal, as coisas estão um bocadinho mais estabilizadas, o que não quer dizer que este cancro que mina a sociedade não exista. A prova é que encontramos cada vez mais pessoas que escolhem ir viver para a rua ou que são empurradas para isso, famílias que vivem muitas vezes uma pobreza escondida.
O que me parece, no entanto, é que neste desafio que o Papa nos coloca ele pega nas coisas um bocadinho ao contrário, ao dizer que os pobres – cuidar dos pobres, pensar nos pobres – podem ser um meio fundamental para o nosso crescimento, a exemplo de Jesus Cristo.
Se nós cultivarmos, e se a Igreja nos ajudar a cultivar, esta atenção prioritária aos pobres, nós cada vez mais caminhamos na linha dos Evangelhos, daquilo que Cristo nos interpelou.
AE – A proposta do Papa Francisco é não olhar os pobres a partir de uma prática assistencialista, mas como companheiros de crescimento?
TV – Exatamente. Mais uma vez, a esse nível, penso que a interpelação que o Papa nos faz vem colocar-nos num patamar superior. Daí que o apelo não seja apenas à “caridadezinha” – e é fundamental, na situação de crise, providenciar com aquilo que é urgente, necessário -, mas que nos debrucemos realmente sobre as estruturas injustas das sociedades em que vivemos para, de alguma forma, encontrarmos meios de trabalhar para uma maior justiça social.
Eu lembro sempre uma coisa muito bonita de Santa Teresa de Ávila, quando ela tinha as experiências místicas, nomeadamente na Sétima Morada, dizia sempre: a união com Deus, tal como eu a experimento, é provisória, é temporária. Eu tenho de regressar ao mundo e fazer obras.
Este é o nosso apelo: a nossa vida será sempre trabalhar para o Reino de Deus.
AE – No mundo?
TV – No mundo. Aqui e agora, nomeadamente ao nível da sociedade portuguesa, a que mais diretamente nos interessa, mas também a nível do equilíbrio entre ricos e pobres no mundo. A situação é absolutamente dramática.
AE – Esta mensagem do Papa é um recado para quem está numa situação social diferente para que olhe para a pobreza, sem perpetuar estruturas assistencialistas que consideram que pobreza haverá sempre?
TV – Mais uma vez, o Papa fala num patamar diferente. Questiona estruturas da Igreja e da sociedade civil, e lança-lhes a questão de saber em que medida estão a fazer apenas um remedeio temporário ou estão a ajudar os pobres a serem donos do seu próprio destino, dando-lhes meios, educação, trabalho, para que o ciclo da pobreza seja interrompido.
Já trabalhei numa IPSS e conheço bastante o seu funcionamento. Há um salto qualitativo que a Igreja, a meu ver, deve fazer, formando as direções e quem trabalha nestas instituições, para uma postura de acolhimento dos pobres que seja um acolhimento transformador e não algo que os humilhe, que os faça sentir que são um “cancro” na sociedade.
Eu tenho presenciado, mesmo no funcionamento de instituições, um tipo de acolhimento aos pobres que é humilhante. Aí há um trabalho muito grande a fazer, se queremos desenvolver, como o Papa nos desafia, uma verdadeira atitude de compaixão e de misericórdia.
AE – O Papa Francisco indica exemplos, como a figura de São Francisco de Assis, com uma intenção pedagógica, porque este “fazer caminho com” acaba por ser transformador…
TV – Exatamente. E envolve o nosso coração: neste caminho transformador é preciso encarar o pobre, que muitas vezes não é atrativo, a maior parte das vezes – o pobre da rua, vestido Deus sabe como, sem os mínimos cuidados de higiene…
É preciso acolher como iguais, aqui no verdadeiro sentido de hospitalidade: acolher o outro, mas não de cima para baixo, pensando que eu posso fazer alguma coisa pelo pobre e que ele pode fazer muita coisa por mim. No verdadeiro sentido do que são as obras de misericórdia, corporais e espirituais. Eu também posso ser objeto das obras de misericórdia.
AE – O Papa também fala numa pobreza evangélica.
TV – Estamos muito longe, a começar por mim, que nem sempre penso que há outros que vivem pior do que eu. Depois, as estruturas mais altas da Igreja Católica não são sempre exemplo de um abraçar do Evangelho e aí também é importante que todos olhem para este estado de coisa e nos possamos perguntar: o que é que Cristo faria se estivesse no meu lugar?
AE – Essa é a pergunta…
TV – A pergunta essencial é essa. Se levarmos a sério a profundidade desta questão, “Como é que Cristo faria no meu lugar?” a Igreja Católica e o mundo, em geral, serão muito mais justos e solidários. Tenho a convicção absoluta de que foi para isso que Cristo viveu entre nós.
AE – Outra pergunta que cada um se pode fazer a si mesmo é não tanto que o fazes ao teu dinheiro, mas o que o teu dinheiro faz de ti.
TV – É para todos. Esta interpelação é para todos. Eu posso ter o meu dinheiro e ter liberdade interior em relação a ele, saber que o dinheiro é para o serviço da comunidade. Posso ter, infelizmente, a atitude oposta, inclusive em pessoas que se autodenominam católicas, que é a ganância. Dizer: eu quero mais, eu quero mais, eu quero mais dinheiro. Pode ser uma dependência como qualquer outra.
É importante que os cristãos se interpelem uns aos outros. Essa é a razão pela qual estou, como vogal, na Comissão Nacional Justiça e Paz, para que, de uma forma mais institucional, aquilo em que acredito possa ter impacto na sociedade.
AE – O Papa recorda a pobreza que atinge os jovens que não conseguem encontrar o seu primeiro emprego. Esta é uma realidade que a sociedade portuguesa enfrenta muito, como a chamada pobreza envergonhada?
TV – Há níveis muito diversificados de pobreza. Mais facilmente penso na pessoa que está à porta de uma igreja a pedir pão, mas se nós fôssemos mais solidários com os jovens… Por exemplo, quando me aposentei fui convidada por uma universidade, podendo acumular rendimentos, e eu disse: não, há dezenas de jovens que fizeram os seus graus e que vocês devem contratar. Para mim é uma questão ética.
Os jovens podem questionar se os cristãos estão a ser solidários com eles, se estamos a viver a vida das primeiras comunidades cristãs, onde cada qual vivia de acordo com as suas necessidades e havia uma partilha de bens. Isso é o que os Atos dos Apóstolos nos dizem.
Como é que eu partilho, nos tempos de hoje, com os mais jovens que não conseguem o primeiro emprego ou trabalham com níveis de salários absolutamente escandalosos?
As estatísticas dizem que, mesmo numa situação de ligeira melhoria, as relações laborais – exploração, subemprego – pioraram. E continuam a piorar. Não vivemos, por muito que haja tentativas de melhorar as coisas, numa sociedade mais justa.
Todas as estruturas, a nível micro, meso ou macro, devem ser passadas em revista por nós, cristãos, de uma forma crítica, para depois se pensar, individualmente ou em grupo, como é que se podem abalar essas estruturas.
AE – isto são fendas na construção da coesão social? Quem não tem um emprego e não aufere um salário digno para cobrir as suas despesas não tem vontade de participar civicamente…
TV – O primeiro passo da cidadania é a consciência de que se pode participar e que a minha participação tem impacto. Caso contrário as pessoas desistem e conformam-se.
Das piores situações que vi, no mundo, foi na Índia, porque a pobreza é absolutamente conformada. Há uma aceitação tácita de que, porque se nasceu numa casta, não se tem hipótese. Cá, sem termos um sistema de castas, temos um sistema que referencia pessoas que assumem que não há nada a fazer ou vivem à sombra de uma caridade que não é uma caridade que transforme a situação.
AE – O Papa foca a importância da cultura do encontro…
TV – Vivermos numa situação de esperança perante o absurdo da sociedade, leva-nos a continuar o trabalho que todos somos chamados a fazer. É preciso que a Igreja e os cristãos divulguem este tipo de ações. Sermos companheiros de viagem é, a meu ver, a essência desta carta e o chamamento que Deus, através de Jesus Cristo, nos faz.
AE – Daqui a uns anos esperamos voltar a falar, olhando para a história que este Dia Mundial dos Pobres possa fazer, tal como o Papa Francisco sugere?
TV – E vamos esperar que, ano a ano, uma vez que se atribui um Dia Mundial dos Pobres pouco antes de iniciar o Advento, este dia nos traga uma reflexão imbuída de ação para melhorarmos estruturas injustas.
Mas também para, à semelhança de São Francisco de Assis, nos tornarmos companheiros não dando de cima para baixo, mas entrando no mesmo caminho. Os pobres podem interpelar-nos, chamar à ação e treinarem o nosso olhar para a verdadeira misericórdia – essa palavra que vem do coração.
Lígia Silveira