Reflexão de D. Joaquim Gonçalves sobre o Ano Paulino

Ano Paulino – S. Valentim e os Coríntios 1 – Tem algo de provocante este título. Mas porque S. Valentim é nesta semana o nome que alimenta o mercado dos afectos amorosos, afigura-se lícito utilizá-lo para estimular a leitura das cartas de Paulo aos cristãos de Corinto, uma das cidades por ele evangelizadas juntamente com Atenas, Éfeso, Roma e outras. O ambiente cultural e social do mundo greco-romano do Mediterrâneo e do Médio Oriente tinha uma notória componente sensual, de que eram expoentes, na Grécia, a cidade de Corinto e, na Ásia de então (hoje Turquia), a cidade de Éfeso, ambas com grandes portos de mar. Reinava nas duas cidades um erotismo sacralizado, em volta de Afrodite na primeira, e de Artemisa na segunda. (A Artemisa dos efésios, deusa da fecundidade, é diferente da Artemis grega, deusa da caça). Vinha de longe esta tonalidade da cultura grega e oriental, chegando a relação amorosa a refinar-se em clubes de pederastas e safismo. 2 – Corinto, situada num istmo que unia o continente grego e o Peloponeso, Corinto tinha dois portos de mar voltados para dois mares. Hoje esse istmo deu lugar a um canal, rasgado entre 1882 e 1893. Quando Paulo lá chegou, era capital da província romana da Acaia, com população heterogénea, calculada em meio milhão de habitantes. Desde os tempos de Homero que a cidade gozava da fama de rica e, após a restauração levada a cabo por Júlio César, era, de facto, a cidade mais rica da Grécia, um centro cultural e artístico, ponte comercial ente o oriente e o ocidente. O comércio era a base da economia onde pontificavam os senhores romanos servidos pelos antigos escravos libertos, os comerciantes asiáticos e uma numerosa colónia judaica. Socialmente, as classes sociais estavam bem definidas e as pessoas reuniam-se em «confrarias» ou associações conforme a sua posição social, mas a riqueza andava pelas mãos de alguns e os escravos constituíam um terço da população. A cultura aberta e cosmopolita incluía templos, cultos, crenças e filosofias diversas com professores ambulantes que se pagavam. Além do culto oficial ao Imperador romano e aos deuses locais (templos de Hera, de Hermes, de Héracles, de Apolo e de Posídon (deus do mar em honra de quem se faziam de dois em dois anos os jogos ístmicos), havia o culto de Cibele da Anatólia, ritos secretos de mistérios orientais e promessas de salvação. A deusa Ísis, trazida do Egipto com o seu consorte Serápis, ganhara relevo destacado. Até a vida sexual tinha ali foros de sacralidade: no monte Acrocorinto, elevado 550 metros acima da planície, erguia-se o templo de Afrodite (equivalente à Vénus romana, deusa do amor), uma fortaleza onde se detinham, segundo Estrabão, mil sacerdotisas dedicadas à prostituição sagrada. Também as ruas de Corinto (onde a mulher usufruía de um estatuto muito diferente de Atenas) andavam enxameadas de mulheres do género, seleccionadas e bem falantes, que vendiam caros os seus favores. Daí o adágio espalhado pelos romanos de que «nem a todos é dado ir a Corinto». A corrupção era enorme: «corintizar» e «rapariga de Corinto» eram sinónimos de vida promíscua e de prostituta. Voltada para o futuro e cheia de vigor, Corinto era uma cidade livre do peso da tradição, terra para novos ricos. Este ambiente de grupos sociais, de espiritualidades filosofadas e de anarquia sexual, era, por si só, suficiente para deixar hesitante qualquer apóstolo. Pois é a esta multidão, heterogénea e desorientada, de meretrizes e rufiões, que Paulo vai anunciar a pessoa de Cristo morto e ressuscitado! Permaneceu aí dezoito meses e até foi bem sucedido, pois o cepticismo e a confusão abriam os espíritos «para mais um culto». As dores de cabeça vieram depois quando foi necessário organizar a vida pessoal de cada cristão e da comunidade. De Corinto escreveu Paulo a carta aos Romanos onde descreve em termos duros a corrupção dos gregos (Rom 1,16,18-32) e, mais tarde, repreenderá os coríntios cristãos enviando-lhe uma carta de Éfeso quando aí se encontrava (1Cor 5; 6; 10). Paulo não se limitou a despejar sobre os coríntios maldições de Sodoma e Gomorra, mas procurou educar-lhes a sensibilidade e a inteligência recorrendo à imagem das corridas no estádio e, a partir da ressurreição de Jesus, proclamou a dignidade do corpo como templo do Espírito Santo. Mais tarde faria o mesmo acerca da escravatura ao introduzir na reflexão a dignidade da pessoa. Desde essa hora estava ferida de morte toda a estrutura social. 3 – Os «grupos rivais», as «espiritualidades sentimentais» e «anarquia sexual» constituíam o tecido social de Corinto. As grandes cidades de hoje não andam longe deste cenário, e não é novidade para ninguém que tudo o que se relaciona com a sexualidade enche hoje páginas de livros e jornais, revistas de fim-de-semana. As imagens e textos na Net parecem as novas ruas de Corinto. A desorientação sexual é fonte de negócio em noites de sexta e sábado e tardes de Domingos, de viagens turísticas, de indústrias farmacológicas e clubes de «investigadores», de feiras e festivais eróticos, e agora de leis civis. Afinal, nada disso é progressista, mas simples repetição do passado. Há, porém, entre o mundo helénico e o nosso uma diferença cultural: a desordem sexual das cidades gregas evangelizadas por Paulo tinha um resto de sacralidade pagã, ao passo que hoje ela alimenta-se do laicismo triunfante e do pretenso estatuto «científico» e do «direito à liberdade» e aos «afectos individuais». Reveste até uma conotação de militância política e ideológica, desviando os cidadãos de uma reflexão serena e objectiva, aliciados pelo carácter de «novidades» e «liberdades». Para todos os pais e educadores, pastores da Igreja e médicos, enfermeiros e assistentes sociais, esta onda constitui um desafio. Dentro da dinâmica pastoral proposta pelo Ano Paulino, o leitor leia devagar as duas cartas aos Coríntios que retratam os três males da comunidade: «grupos rivais dentro da Igreja», «tendência para espiritualidades sentimentais» e «anarquias sexuais» (1ª Carta aos Coríntios, sobretudo 1, 10-16; 5; 6,12-20). A esses três desvios Paulo respondeu com três propostas para a comunidade cristã: a Igreja como «corpo» variado e unido sem ser uniforme, os «carismas e ministérios» na Igreja, e o «sentido pascal do corpo humano» no casamento e na vida consagrada. Faça o paralelo da «pastoral de Corinto» com o nosso tempo: Que grupos apostólicos há nas paróquias e que união existe entre eles? Que devoções e obras de espiritualidade? Que movimentos de educação da afectividade sexual? Na base daqueles três desvios dos coríntios estava o egocentrismo de pessoas e grupos, da afirmação pessoal. É a hora de remover essa mentalidade e de preparar os mais capazes, de cultivar as várias devoções, e de fazer a educação da complementaridade afectiva da pessoa humana no casamento e na família. Nascerão assim as comunidades previstas no Vaticano II, «a Igreja de carismas e ministérios» que sucede à Igreja de «multidões caladas e inertes diante do Pastor» (1Cor 7;12;14). Haverá dores de cabeça, mas é esse o caminho a seguir (2Cor 6,11-18;13). D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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Agência ECCLESIA

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