Reflexão de D. Joaquim Gonçalves sobre o Ano paulino

O Ano Paulino: Palavra falada e Palavra escrita 1- Todas as mães gravam com júbilo a hora em que os filhos pronunciaram a primeira palavra, e, no pólo oposto, os filhos guardam com sofrimento a hora em que seus pais disseram a última palavra antes de fecharem os lábios para sempre. A palavra foi, num caso, sinal de vida a florescer e, no outro, sinal de vida a apagar-se. De modo análogo, os noivos fixaram para sempre a hora em que declararam o seu amor e, no futuro, sentem que o amor cresce sempre que repetem essa palavra inicial. As próprias cartas de noivado vivem do calor que só eles conhecem. Têm algo de pudor íntimo, como disse Fernando Pessoa ao escrever que «toda a carta de amor é ridícula quando lida na praça pública». Em tudo isto, a palavra falada revela a pessoa, e, passada a escrito, vive do calor com que foi dita. É um pouco o que passa com a história da Bíblia. Os antigos Hebreus sentiam-se ufanos por terem um «Deus que fala», que «não é como os outros deuses, os ídolos pagãos, que têm boca mas não falam, que têm ouvidos mas não ouvem, que têm garganta mas não articulam qualquer som», e consideravam um tempo de desgraça aquele em que não houvesse nenhum profeta. A «palavra» é a vida do Povo bíblico. Até o acto de criar é referido na Bíblia como obra da palavra: Deus criou o mundo pela sua palavra, «a palavra é omnipotente». Essa palavra ouvida dos profetas e falada durante séculos seria passada a escrito para ser lida, mas a sua proclamação oral na assembleia ficou sempre como a expressão autêntica da palavra. Significativamente, o Sínodo chama-se «Sínodo da Palavra» e não «Sínodo da Bíblia», porque dizer «Palavra de Deus» é dizer mais que dizer «Bíblia», porque a Bíblia é a «Palavra escrita» que nasceu da «Palavra falada». Convém, por isso, lembrar algumas questões clássicas relativas à formação da Bíblia. 2- De facto, antes de haver entre os hebreus qualquer «Escritura», existiam tradições religiosas orais. Ao serem passadas a escrito, deram origem às «Escrituras» e sobre elas se fizeram e escreveram depois comentários diversos donde nasceram diferentes escolas de Judaísmo que deram origem às «tradições dos homens», e que Jesus reprovaria pelo seu carácter excêntrico, por vezes oposto aos Mandamentos de Deus. Algo análogo aconteceu mais tarde com o Novo Testamento: antes de ser escrito, existiu um evangelho oral que daria origem aos quatro Evangelhos. Nem tudo, porém, foi passado a escrito, como afirma S. João: «há muitas outras coisas que fez Jesus e que não estão escritas neste livro, as quais, se fossem escritas uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que seria preciso escrever» (Jo 21,25). Algumas dessas coisas ficaram na tradição cristã de que dão testemunho textos escritos por cristãos dos primeiros séculos, bispos e teólogos e catequistas, chamados por isso «varões apostólicos e «Padres ou pais da Igreja». Esses textos formam a chamada «Tradição da Igreja». Ajudam a compreender o texto escrito, são uma fonte riquíssima de informação, e da maior importância para o diálogo entre católicos, protestantes e ortodoxos, porque falam da Igreja num tempo em que ainda não havia as actuais divisões. Torna-se assim evidente que, entre a «Bíblia» ou «Palavra de Deus escrita» e a «Tradição da Igreja», há uma relação íntima. Sendo a «Tradição da Igreja» anterior à Bíblia escrita e depois continuada em novas reflexões, é a Tradição Igreja que, sem descurar o estudo científico do texto bíblico, nos garante o seu sentido. Compreende-se: Um texto escrito é, de si, um texto opaco, directamente ligado a uma história e geografia concretas e carece de ser lido por quem o escreveu. «Uma Escritura não se auto anuncia, permanece muda enquanto não for proclamada na comunidade onde nasceu». Quem melhor conhece uma carta de noivado do que os noivos que a escreveram e os amigos que com eles viveram e os ouviram falar do seu amor? Por causa da assistência permanente do Espírito Santo no interior da Igreja, esta é capaz de ler o texto bíblico com o mesmo sentido com que foi escrito. Ao lado dos quatro Evangelhos oficiais, dos escritos da «Tradição da Igreja», e em oposição a eles, surgiram nos primeiros séculos outros textos de gente marginal à fé, cheios de fantasistas, os chamados «evangelhos apócrifos» e «gnósticos», ditos «mais inteligentes», que ultimamente conheceram grande divulgação na Europa inteira. 3- A «Bíblia» e a «Tradição da Igreja» são, pois, inseparáveis. Durante séculos, os Protestantes fixaram-se exclusivamente no texto escrito da Bíblia, e os Católicos pareceu darem preferência à «Tradição». Hoje é cada vez mais aceite por todos que a Bíblia e a Tradição não são duas fontes paralelas, independentes e autónomas, da revelação de Deus. Derivam ambas da única fonte de revelação que é Jesus Cristo (Constituição Dei Verbum,11). É também aceite por todos, menos pelos Judeus, que o Novo Testamento é a revelação completa do que já vinha anunciado no Antigo. Na revelação feita aos antigos hebreus já trabalhava a Sabedoria. O texto do Génesis diz que Deus «criou o mundo pela palavra» e em todo o Antigo Testamento repete-se constantemente que «a «palavra é eficaz», que «não regressa às alturas sem cumprir a sua obra». Essa palavra tem um comportamento de «pessoa», e Paulo desvendará o mistério dessa palavra ao afirmar que Jesus é a essa Sabedoria de Deus incarnada, é o Verbo que já estava presente em toda a Criação: n’Ele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, visíveis e invisíveis. Por Ele e para Ele tudo foi feito e n’Ele tudo subsiste (Col 1). Torna-se claro que a «Palavra de Deus é uma pessoa, é Jesus Cristo, o Verbo feito homem. «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus». Tudo foi feito por Ele e sem Ele nada foi feito, e, vindo ao mundo, ilumina todo o homem (Jo 1, 10). Compreende o leitor por que se diz que a «mesa da Palavra» e a «mesa da Eucaristia» formam uma só mesa? Compreende por que razão junto do «ambão» da Palavra há sempre uma «cadeira» e que o presidente da Palavra é o que preside também à Eucaristia, unindo as duas? Compreende o leitor a razão por que o Sínodo quis que, depois do Sínodo da Eucaristia, se fizesse este Sínodo sobre a Palavra e que na celebração da Missa deve sentir-se uma integração das duas mesas? «O pão da Palavra» e «pão da Eucaristia» são o mesmo Jesus, realmente presente nas duas mesas, ainda que de modo distinto. Abra o leitor a sua Bíblia e leia as referências ao livrinho de Ezequiel 3,1-3 e do Apocalipse 10,8-11, aos livros, escrituras e rolos de S. Paulo (1Tes 5,25; 2Tim 3,15; 4,13; Rom 1,2) e veja o modo como Paulo relê o AT e retira o véu que cobre os escritos do Antigo Testamento (2 Cor3,14-16). D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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