Reflexão de D. Joaquim Gonçalves sobre o Ano Paulino

«O Ano Paulino: sinalização» 1 – O forasteiro que viaje pelos nossos montes, altos e distantes, a caminho de povoações isoladas no Baixo Barroso, no Alvão, em Mondim de Basto, no Alto Tâmega, em Valpaços e no Douro, e mesmo em aldeias com cruzamentos de todo o genro, sentiu já a necessidade vital de placas de sinalização. Sem elas, anda-se perdido por becos sem saída ou a rodopiar sem êxito dentro do mesmo espaço. Algo análogo acontece a quem se aventura a ler textos de especial densidade literária e científica ou a contemplar obras de pintura moderna. Quem não se interrogou já sobre a leitura culta de Os Lusíadas de Luís de Camões, do D. Quixote de Cervantes, da Cuernica de Picasso e até dos Vitais da nossa Sé e de outras obras de arte não figurativa? É isso que, de algum modo, também acontece a quem começa a ler a Bíblia sem possuir a mínima «sinalização». Esta começa pelo entendimento da palavra «Bíblia», um singular em português mas originariamente um plural, uma soma de livros, escritos em épocas muito diferentes ao longo de dez séculos. Esses livros são, por isso, chamados «Escrituras Sagradas», uns em tom heróico, outros em estilo lírico e poético, outros em forma de crónica ou de reflexão, e sobre temas que, aparentemente, parece nada terem em comum. A pergunta que se faz é saber como descobrir o sentido específico de cada um dos livros da Bíblia e saber se haverá um fio condutor comum a todos eles. E como descobrir esse fio geral? Perguntando de outro modo: Como descobrir a mensagem revelada? Aqui vão algumas pistas ou sinalização. 2 – Cada um dos 73 pequenos livros da Bíblia tem um primeiro sentido interno. Com alguma frequência as pessoas esperam dos textos religiosos unicamente um apelo ao bom comportamento, aos sentimentos de compaixão, sem força dirigida à inteligência, às ideias. Daí resulta uma religiosidade amolecida, invertebrada. Tudo isso acontece por não se buscar o sentido do texto. Esse sentido consta geralmente do título e capta-se pela história, pela geografia e pelo domínio da cultura antiga, pelo conhecimento do ambiente em que foi escrito, como acontece com qualquer outro texto literário, e pela leitura integral de cada texto, não se fixando em frases isoladas. O sentido religioso mais profundo, revelado, ultrapassa esse primeiro sentido radicado na geografia local, pois a Bíblia dirige-se a todas as épocas, para além da geografia e da história local. E como a Bíblia tem um só autor divino e há nela um dinamismo interno convergente, deve fazer-se a comparação do texto de um livro com os outros livros da Bíblia, escritos em épocas diferentes e em contextos distintos. É por isso que, apesar de ser constituída por textos muitos diferentes ou «Sagradas Escrituras, a Bíblia pode chamar-se a Sagrada Escritura, no singular. A mensagem vai-se clareando de texto para texto, progride, sem nunca ser contraditória. A mensagem central que percorre toda a Bíblia é o amor de Deus ao mundo, o noivado de que já aqui falei, expresso no diálogo de Deus com o antigo Povo de Israel e consumado em Jesus Cristo, a flor de toda a revelação e a chave que abre a história bíblica. Assim fez Jesus nos anos da sua vida apostólica fazendo convergir para ele os actos de Moisés ou relacionando a pregação dos com os Profetas com a sua. É exemplar o diálogo travado com os discípulos de Emaús na tarde do dia da Ressurreição: «começando por Moisés e por todos os Profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a Ele se refere» (Lc 24,27). Paulo usou esse esquema «longitudinal» sempre que se dirigia a ouvintes judeus, lembrando- -lhes a história hebraica antiga e encaminhando-a para Jesus Ressuscitado Finalmente, para que a leitura bíblica não fique no passado mas ilumine a nossa vida presente, é preciso comparar o facto narrado no texto com os factos da vida actual da pessoa e da comunidade: o que pode isto dizer-nos a nós, hoje? Esse confronto é exigente mas essencial para se ultrapassar o historicismo e arqueologismo literários, fazendo da Bíblia um repositório de etnografia dos povos antigos do Médio Oriente. Este confronto não é um mero exercício de aplicação moralista, mas um exercício legítimo institucional, pois, como já lembrei a propósito do «autógrafo», Jesus ressuscitado, o Verbo de Deus feito homem, acompanha, pela acção do Espírito Santo, o leitor piedoso de todos os tempos. Em síntese, a leitura da Bíblia deve começar-se pelos Evangelhos, onde a figura de Jesus brilha em plenitude e alumia todo o percurso bíblico. Depois, em forma «transversal», avança-se para os outros textos bíblicos, anteriores e posteriores, do Génesis ao Apocalipse e do Apocalipse ao Génesis. A Bíblia é uma ponte de 73 arcos que se estende por todos os séculos. Faça o leitor um exercício, abra a sua Bíblia, e exercite–se no estudo de alguns temas centrais que a atravessam: a Mulher (Mt 1,23, Lc 1,26-45; Jo 2,1-4, 19, 25-26; Gen 3, 15; Is 7, 14; o Cordeiro (Lc 22,7; Jo 1,36; Gen 22, 8, 13; Êx12, 5; Is 53,7;Ap 5,6;14,2); a Árvore e o Jardim ( Jo 19,41;Gen 2,9; Prov 3,18; Ap 2,7; 22). Torna-se claro que Maria faz parte do mistério da salvação, intimamente unida ao mistério de Jesus, a nova Eva ao lado do novo Adão; que Cristo é o novo Cordeiro, o Cordeiro da nova Aliança enviado pelo Pai como aconteceu em Isaac; que a Árvore da Vida é a Cruz que floriu no Calvário, como se canta em Sexta-feira Santa; e que o Calvário é o novo «jardim» do «novo Adão». D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real

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