Mal sabia Johann Gutemberg, quinhentos anos atrás, que as matrizes de madeira que usou para a primeira impressão da Bíblia seriam um dia substituídas por links de hipertexto e que o digital viria a desempenhar o papel dos seus rudimentares tipos móveis. Mas o que certamente deixaria Gutemberg confundido seria a notícia de que o livro mais editado, traduzido e divulgado de todos os tempos, a Bíblia, em pleno século XXI, seria nostalgicamente reescrita à maneira dos monges do scriptorium. Assim aconteceu. A Bíblia foi, entre nós, reescrita, versículo por versículo, envolvendo cerca de 50 mil pessoas. Sabemos que a impressão de Gutemberg através da rotativa, em 1450, com uma “multiplicação desenfreada” de exemplares, ofereceu um novo estatuto à Bíblia e deu a cada leitor um estatuto novo: a Palavra de Deus como que ficou sem a mediação da autoridade eclesiástica e passou a ser directamente auscultada por cada leitor. Foram muitos, como sabemos, os problemas oriundos deste confronto entre o copiado manualmente e o impresso. O interessante da recente iniciativa da Sociedade Bíblica Portuguesa com apoio da Igreja Católica, foi a mobilização das nossas escolas, com professores, alunos e familiares, numa espécie de avalanche surpreendente, com mais escrivães que versículos. O acto de cada participante escrever um versículo constituiu, por si, um gesto cultural e religioso de grande alcance. É um pouco da história de todos nós e a raiz mais profunda e viva de todo o nosso património espiritual. Por isso se tornou estranho aquele protesto num diário de referência da nossa praça, segundo o qual este gesto revela “um défice de civismo republicano”. Teria o protestante preferido que se fizesse o mesmo mas com a Constituição Portuguesa. A nenhum cidadão ficaria mal conhecer um pouco mais da Bíblia. Não apenas das suas palavras soltas, mas da sua história, géneros literários, significação dos grandes símbolos e alegorias, da importância, enfim, da Palavra revelada. Curiosamente, com o correr dos tempos, distanciamento das origens e aprofundamento das ciências, melhor se interpreta hoje cada texto e se percebe a solidez do conjunto dessa Palavra que atravessou civilizações inteiras e continua a oferecer aos novos tempos a grande chave da história. António Rego