(continuação) 16. Progresso ou ameaça? Se, portanto, o nosso tempo, o tempo da nossa geração, o tempo que se vai aproximando do fim do segundo Milénio da nossa era cristã, se nos manifesta como um tempo de grande progresso, ele apresenta-se também como um tempo de multiforme ameaça contra o homem, da qual a Igreja deve falar a todos os homens de boa vontade e sobre a qual ela deve constantemente dialogar com eles. A situação do homem no mundo contemporâneo, de facto, parece estar longe das exigências objectivas da ordem moral, assim como das exigências da justiça e, mais ainda, do amor social. Não se trata aqui senão daquilo que teve a sua expressão na primeira mensagem do Criador dirigida ao homem no momento em que lhe dava a terra, para que ele a « dominasse ». Esta primeira mensagem de Deus foi confirmada depois, no mistério da Redenção, por Cristo Senhor. Isto foi expresso pelo II Concílio do Vaticano naqueles belíssimos capítulos do seu ensino que dizem respeito à « realeza » do homem, isto é, à sua vocação para participar na função real — o « munus regale » — do mesmo Cristo. O sentido essencial desta « realeza » e deste « domínio » do homem sobre o mundo visível, que lhe foi confiado como tarefa pelo próprio Criador, consiste na prioridade da ética sobre a técnica, no primado da pessoa sobre as coisas e na superioridade do espírito sobre a matéria. É por isso mesmo que é necessário acompanhar atentamente todas as fases do progresso hodierno: é preciso, por assim dizer, fazer a radiografia de cada uma das suas etapas exactamente deste ponto de vista. Está em causa o desenvolvimento da pessoa e não apenas a multiplicação das coisas, das quais as pessoas podem servir-se. Trata-se — como disse um filósofo contemporâneo e como afirmou o Concílio — não tanto de « ter mais », quanto de « ser mais ». Com efeito, existe já um real e perceptível perigo de que, enquanto progride enormemente o domínio do homem sobre o mundo das coisas, ele perca os fios essenciais deste seu domínio e, de diversas maneiras, submeta a elas a sua humanidade, e ele próprio se torne objecto de multiforme manipulação, se bem que muitas vezes não directamente perceptível; manipulação através de toda a organização da vida comunitária, mediante o sistema de produção e por meio de pressões dos meios de comunicação social. O homem não pode renunciar a si mesmo, nem ao lugar que lhe compete no mundo visível; ele não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas económicos, escravo da produção e escravo dos seus próprios produtos. Uma civilização de feição puramente materialista condena o homem a tal escravidão, embora algumas vezes, indubitavelmente, isso aconteça contra as intenções e as mesmas premissas dos seus pioneiros. Na raiz da actual solicitude pelo homem está sem dúvida alguma este problema. E não é questão aqui somente de dar uma resposta abstracta à pergunta: quem é o homem; mas trata-se de todo o dinamismo da vida e da civilização. Trata-se do sentido das várias iniciativas da vida quotidiana e, ao mesmo tempo, das premissas para numerosos programas de civilização, programas políticos, económicos, sociais, estatais e muitos outros. Se nós ousamos definir a situação do homem contemporâneo como estando longe das exigências objectivas da ordem moral, longe das exigências da justiça e, ainda mais, do amor social, é porque isto é confirmado por factos bem conhecidos e por confrontos que se podem fazer e que, por mais de uma vez, já tiveram ressonância directa nas páginas das enunciações pontifícias, conciliares e sinodais. A situação do homem na nossa época não é certamente uniforme, mas sim diferenciada de múltiplas maneiras. Estas diferenças têm as suas causas históricas, mas também têm uma forte ressonância ética. É assaz conhecido, de facto, o quadro da civilização consumística, que consiste num certo excesso de bens necessários ao homem e a sociedades inteiras — e aqui trata-se exactamente das sociedades ricas e muito desenvolvidas — enquanto que as restantes sociedades, ao menos largos estratos destas, sofrem a fome, e muitas pessoas morrem diariamente por desnutrição ou inédia. Simultaneamente sucede que se dá por parte de uns um certo abuso da liberdade, que está ligado precisamente a um modo de comportar-se consumístico, não controlado pela ética, enquanto isso limita contemporâneamente a liberdade dos outros, isto é, daqueles que sofrem notórias carências e se vêem empurrados para condições de ulterior miséria e indigência. Este confronto, universalmente conhecido, e o contraste a que dedicaram a sua atenção, nos documentos do seu magistério, os Sumos Pontífices do nosso século, mais recentemente João XXIII assim como Paulo VI, representam como que um gigantesco desenvolvimento da parábola bíblica do rico avarento e do pobre Lázaro. A amplitude do fenómeno põe em questão as estruturas e os mecanismos financeiros, monetários, produtivos e comerciais, que, apoiando-se em diversas pressões políticas, regem a economia mundial: eles demonstram-se como que incapazes quer para reabsorver as situações sociais injustas, herdadas do passado, quer para fazer face aos desafios urgentes e às exigências éticas do presente. Submetendo o homem às tensões por ele mesmo criadas, dilapidando, com um ritmo acelerado, os recursos materiais e energéticos e comprometendo o ambiente geofísico, tais estruturas dão azo a que se estendam incessantemente as zonas de miséria e, junto com esta, a angústia, a frustração e a amargura. Encontramo-nos aqui perante o grande drama, que não pode deixar ninguém indiferente. O sujeito que, por um lado, procura auferir o máximo proveito, bem como aquele que, por outro lado, paga as consequências dos danos e das injúrias, é sempre o homem. E tal drama é ainda mais exacerbado pela proximidade com os estratos sociais privilegiados e com os países da opulência, que acumulam os bens num grau excessivo e cuja riqueza se torna, muitas vezes por causa do abuso, motivo de diversos mal-estares. A isto ajuntem-se a febre da inflação e a praga do desemprego: e eis outros sintomas de tal desordem moral, que se faz sentir na situação mundial e que exige por isso mesmo resoluções audaciosas e criativas, conformes com a autêntica dignidade do homem. Uma tal tarefa não é impossível de realizar. O princípio de solidariedade, em sentido lato, deve inspirar a busca eficaz de instituições e de mecanismos apropriados: quer se trate do sector dos intercâmbios, em que é necessário deixar-se conduzir pelas leis de uma sã competição, quer se trate do plano de uma mais ampla e imediata redistribuição das riquezas e dos controlos sobre as mesmas, a fim de que os povos que se encontram em vias de desenvolvimento económico possam, não apenas satisfazer às suas exigências essenciais, mas também progredir gradual e eficazmente. Não será fácil avançar, porém, neste difícil caminho, no caminho da indispensável transformação das estruturas da vida económica, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos corações. A tarefa exige a aplicação decidida de homens e de povos livres e solidários. Com muita frequência se confunde a liberdade com o instinto do interesse individual e colectivo, ou ainda com o instinto de luta e de domínio, quaisquer que sejam as cores ideológicas de que eles se revistam. E óbvio que esses instintos existem e operam; mas não será possível ter-se uma economia verdadeiramente humana, se eles não forem assumidos, orientados e dominados pelas forças mais profundas que se encontram no homem, e que são aquelas que decidem da verdadeira cultura dos povos. E é precisamente destas fontes que deve nascer o esforço, no qual se exprimirá a verdadeira liberdade do homem, e que será capaz de a assegurar também no campo económico. O desenvolvimento económico, conjuntamente com tudo aquilo que faz parte do seu modo próprio e adequado de funcionar, tem de ser constantemente programado e realizado dentro de uma perspectiva de desenvolvimento universal e solidário dos homens tomados singularmente e dos povos, conforme recordava de maneira convincente o meu Predecessor Paulo VI na Encíclica Populorum Progressio. Sem isso, a simples categoria do « progresso económico » torna-se uma categoria superior, que passa a subordinar o conjunto da existência humana às suas exigências parciais, sufoca o homem, desagrega as sociedades e acaba por desenvolver-se nas suas próprias tensões e nos seus mesmos excessos. É possível assumir este dever; testemunham-no os factos certos e os resultados, que é difícil enumerar aqui de maneira mais pormenorizada. E uma coisa, contudo, é certa: na base deste campo gigantesco é necessário estabelecer, aceitar e aprofundar o sentido da responsabilidade moral, que tem de assumir o homem. Ainda uma vez e sempre, o homem. Para nós cristãos uma tal responsabilidade torna-se particularmente evidente, quando recordamos — e devemos recordá-lo sempre — a cena do juízo final, segundo as palavras de Cristo, referidas no Evangelho de São Mateus. Essa cena escatológica tem de ser sempre « aplicada » à história do homem, deve ser sempre tomada como « medida » dos actos humanos, como um esquema essencial de um exame de consciência para cada um e para todos: « Tive fome e não Me destes de comer…; estava nú e não Me vestistes…; estava na prisão e não fostes visitar-Me ». Estas palavras adquirem um maior cunho de admoestação ainda, se pensamos que, em vez do pão e da ajuda cultural a novos estados e nações que estão a despertar para a vida independente, algumas vezes, se lhes oferecem, não raro com abundância, armas modernas e meios de destruição, postos ao serviço de conflitos armados e de guerras, que não são tanto uma exigência da defesa dos seus justos direitos e da sua soberania, quanto sobretudo uma forma de « chauvinismo », de imperialismo e de neo-colonialismo de vários géneros. Todos sabemos bem que as zonas de miséria ou de fome, que existem no nosso globo, poderiam ser « fertilizadas » num breve espaço de tempo, se os gigantescos investimentos para os armamentos, que servem para a guerra e para a destruição, tivessem sido em contrapartida convertidos em investimentos para a alimentação, que servem para a vida. Esta consideração talvez permaneça parcialmente « abstracta »; talvez dê azo a uma e à outra « parte » para se acusar reciprocamente, esquecendo cada qual as próprias culpas; talvez provoque mesmo novas acusações contra a Igreja. Esta, porém, não dispondo de outras armas, senão das do espírito, das armas da palavra e do amor, não pode renunciar a pregar a Palavra, insistindo oportuna e inoportunamente. Por isso, ela não cessa de solicitar a cada uma das partes e de pedir a todos, em nome de Deus e em nome do homem: Não mateis! Não prepareis para os homens destruições e extermínio! Pensai nos vossos irmãos que sofrem a fome e a miséria! Respeitai a dignidade e a liberdade de cada um! 17. Direitos do homem « letra » ou «espírito » O nosso século tem sido até agora um século de grandes calamidades para o homem, de grandes devastações, não só materiais, mas também morais, ou melhor, talvez sobretudo morais. Não é fácil, certamente, comparar épocas e séculos sob este aspecto, uma vez que isso depende também dos critérios históricos que mudam. Não obstante, prescindido muito embora de tais comparações, importa verificar que até agora este século foi um tempo em que os homens prepararam para si mesmos muitas injustiças e sofrimentos. Este processo terá sido decididamente entravado? Em qualquer hipótese, não se pode deixar de recordar aqui, com apreço e com profunda esperança para o futuro, o esforço magnífico realizado para dar vida à Organização das Nações Unidas, um esforço que tende para definir e estabelecer os objectivos e invioláveis direitos do homem, obrigando-se os Estados-membros reciprocamente a uma observância rigorosa dos mesmos. Este compromisso foi aceito e ratificado por quase todos os Estados do nosso tempo; e isto deveria constituir uma garantia para que os direitos do homem se tornassem em todo o mundo, o princípio fundamental do empenho em prol do bem do mesmo homem. A Igreja não precisa de confirmar quanto este problema está intimamente ligado com a sua missão no mundo contemporâneo. Ele está, com efeito, nas mesmas bases da paz social e internacional, como declararam a este propósito João XXIII, o II Concílio do Vaticano e depois Paulo VI, com documentos pormenorizados. Em última análise, a paz reduz-se ao respeito dos direitos invioláveis do homem — « efeito da justiça será a paz » — ao passo que a guerra nasce da violação destes direitos e acarreta consigo ainda mais graves violações dos mesmos. Se os direitos do homem são violados em tempo de paz, isso torna-se particularmente doloroso e, sob o ponto de vista do progresso, representa um incompreensível fenómeno de luta contra o homem, que não pode de maneira alguma pôr-se de acordo com qualquer programa que se autodefina « humanístico ». E qual seria o programa social, económico, político e cultural que poderia renunciar a esta definição? Nós nutrimos a convicção profunda de que não há no mundo de hoje nenhum programa em que, até mesmo sobre a plataforma de ideologias opostas quanto à concepção do mundo, não seja posto sempre em primeiro lugar o homem. Ora, se apesar de tais premissas, os direitos do homem são violados de diversas maneiras, se na prática somos testemunhas dos campos de concentração, da violência, da tortura, do terrorismo e de multíplices discriminações, isto deve de ser uma consequência de outras premissas que minam, ou muitas vezes quase anulam a eficácia das premissas humanísticas daqueles programas e sistemas modernos. Então impõe-se necessariamente o dever de submeter os mesmos programas a uma contínua revisão sob o ponto de vista dos objectivos e invioláveis direitos do homem. A Declaração destes direitos, juntamente com a instituição da Organização das Nações Unidas, não tinham certamente apenas a finalidade de nos apartar das horríveis experiências da última guerra mundial, mas também a finalidade de criar uma base para uma contínua revisão dos programas, dos sistemas e dos regimes, precisamente sob este fundamental ponto de vista, que é o bem do homem — digamos, da pessoa na comunidade — e que, qual factor fundamental do bem comum, deve constituir o critério essencial de todos os programas, sistemas e regimes. Caso contrário, a vida humana, mesmo em tempo de paz, está condenada a vários sofrimentos; e, ao mesmo tempo, junto com tais sofrimentos, desenvolvem-se várias formas de dominação, de totalitarismo, de neocolonialismo e de imperialismo, as quais ameaçam mesmo a convivência entre as nações. Na verdade, é um facto significativo e confirmado por mais de uma vez pelas experiências da história, que a violação dos direitos do homem anda coligada com a violação dos direitos da nação, com a qual o homem está unido por ligames orgânicos, como que com uma família maior. Já desde a primeira metade deste século, no período em que se estavam a desenvolver vários totalitarismos de estado, os quais — como se sabe — levaram à horrível catástrofe bélica, a Igreja havia claramente delineado a sua posição defronte a estes regimes, que aparentemente agiam por um bem superior, qual é o bem do estado, enquanto que a história haveria de demonstrar que, pelo contrário, aquilo era apenas o bem de um determinado partido, que se tinha identificado com o estado. Esses regimes, na realidade, haviam coarctado os direitos dos cidadãos, negando-lhes o reconhecimento daqueles direitos invioláveis do homem que, pelos meados do nosso século obtiveram a sua formulação no plano internacional. Ao compartilhar a alegria de uma tal conquista com todos os homens de boa vontade, com todos os homens que amam verdadeiramente a justiça e a paz, a Igreja, cônscia de que a « letra » somente pode matar, ao passo que só « o espírito vivifica », deve, conjuntamente com estes homens de boa vontade, de contínuo perguntar se a Declaração dos direitos do homem e a aceitação da sua « letra » significam em toda a parte também a realização do seu « espírito ». Surgem, efectivamente, receios fundados de que muito frequentemente estamos ainda longe de uma tal realização, e de que por vezes o espírito da vida social e pública se acha em dolorosa oposição com a declarada « letra » dos direitos do homem. Este estado de coisas, gravoso para as respectivas sociedades, tornaria aqueles que contribuem para o determinar particularmente responsáveis, perante essas sociedades e perante a história do homem. O sentido essencial do Estado, como comunidade política, consiste nisto: que a sociedade e, quem a compõe, o povo é soberano do próprio destino. Um tal sentido não se torna uma realidade, se, em lugar do exercício do poder com a participação moral da sociedade ou do povo, tivermos de assistir à imposição do poder por parte de um determinado grupo a todos os outros membros da mesma sociedade. Estas coisas são essenciais na nossa época, em que tem crescido enormemente a consciência social dos homens e, conjuntamente com ela, a necessidade de uma correcta participação dos cidadãos na vida política da comunidade, tendo em conta as reais condições de cada povo e o necessário vigor da autoridade pública. Estes são, pois, os problemas de primária importância sob o ponto de vista do progresso do mesmo homem e do desenvolvimento global da sua humanidade. A Igreja sempre tem ensinado o dever de agir pelo bem comum; e, procedendo assim, também educou bons cidadãos para cada um dos Estados. Além disso, ela sempre ensinou que o dever fundamental do poder é a solicitude pelo bem comum da sociedade; daqui dimanam os seus direitos fundamentais. Em nome precisamente destas premissas, respeitantes à ordem ética objectiva, os direitos do poder não podem ser entendidos de outro modo que não seja sobre a base do respeito pelos direitos objectivos e invioláveis do homem. Aquele bem comum que a autoridade no Estado serve, será plenamente realizado somente quando todos os cidadãos estiverem seguros dos seus direitos. Sem isto, chega-se ao descalabro da sociedade, à oposição dos cidadãos contra a autoridade, ou então a uma situação de opressão, de intimidação, de violência, ou de terrorismo, de que nos forneceram numerosos exemplos os totalitarismos do nosso século. É assim que o princípio dos direitos do homem afecta profundamente o sector da justiça social e se torna padrão para a sua fundamental verificação na vida dos Organismos políticos. Entre estes direitos insere-se, e justamente, o direito à liberdade religiosa ao lado do direito da liberdade de consciência. O II Concílio do Vaticano considerou particularmente necessário elaborar uma mais ampla Declaração sobre este tema. É o Documento que se intitula Dignitatis humanae, no qual foi expressa, não somente a concepção teológica do problema, mas também a concepção sob o ponto de vista do direito natural, ou seja da posição « puramente humana », em base àquelas premissas ditadas pela própria experiência do homem, pela razão e pelo sentido da sua dignidade. Certamente, a limitação da liberdade religiosa das pessoas e das comunidades não é apenas uma sua dolorosa experiência, mas atinge antes de mais nada a própria dignidade do homem, independentemente da religião professada ou da concepção que elas tenham do mundo. A limitação da liberdade religiosa e a sua violação estão em contraste com a dignidade do homem e com os seus direitos objectivos. O Documento conciliar acima referido diz com bastante clareza o que seja uma tal limitação e violação da liberdade religiosa. Encontramo-nos em tal caso, sem dúvida alguma, perante uma injustiça radical em relação àquilo que é particularmente profundo no homem e em relação àquilo que é autenticamente humano. Com efeito, até mesmo os fenómenos da incredulidade, da a-religiosidade e do ateísmo, como fenómenos humanos, compreendem-se somente em relação com o fenómeno de religião e da fé. É difícil, portanto, mesmo de um ponto de vista « puramente humano », aceitar uma posição segundo a qual só o ateísmo tem direito de cidadania na vida pública e social, enquanto que os homens crentes, quase por príncipio, são apenas tolerados, ou então tratados como cidadãos de segunda categoria, e até mesmo — o que já tem sucedido — são totalmente privados dos direitos de cidadania. É necessário, embora com brevidade, tratar também deste tema, porque ele realmente faz parte do complexo das situações do homem no mundo actual, e porque ele também está a testemunhar quanto esta situação está profundamente marcada por preconceitos e por injustiças de vários géneros. Se me abstenho de entrar em pormenores neste campo precisamente, no qual me assistiria um especial direito e dever para o fazer, isso é sobretudo porque, juntamente com todos aqueles que sofrem os tormentos da discriminação e da perseguição por causa do nome de Deus, sou guiado pela fé na força redentora da cruz de Cristo. Desejo, no entanto, em virtude de meu múnus, em nome de todos os homens crentes do mundo inteiro, dirigir-me àqueles de quem, de alguma maneira, depende a organização da vida social e pública, pedindo-lhes ardentemente para respeitarem os direitos da religião e da actividade da Igreja. Não se pede nenhum privilégio, mas o respeito de um elementar direito. A actuação deste direito é um dos fundamentais meios para se aquilatar do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes. IV. A MISSÃO DA IGREJA E O DESTINO DO HOMEM 18. A Igreja solicita pela vocação do homem em Cristo Esta vista de olhos, necessariamente sumária, da situação do homem no mundo contemporâneo, faz-nos voltar ainda mais os nossos pensamentos e corações para Jesus Cristo, para o mistério da Redenção, no qual o problema do homem se acha inscrito com uma especial força de verdade e de amor. Se Cristo « se uniu de certo modo a cada homem », a Igreja, penetrando no íntimo deste mistério, na sua linguagem rica e universal, está a viver também mais profundamente a própria natureza e missão. Não é em vão que o Apóstolo fala do Corpo de Cristo, que é a Igreja. Se este Corpo Místico de Cristo, depois, é Povo de Deus — como dirá por seu turno o II Concílio do Vaticano, baseando-se em toda a tradição bíblica e patrística — isto quer dizer que todos os homens nele são penetrados por aquele sopro de vida que provém de Cristo. Deste modo, o voltar-se para o homem, voltar-se para os seus reais problemas, para as suas esperanças e sofrimentos, para as suas conquistas e quedas, também faz com que a mesma Igreja como corpo, como organismo e como unidade social, perceba os mesmos impulsos divinos, as luzes e as forças do Espírito que provêm de Cristo crucificado e ressuscitado; e é por isto precisamente que ela vive a sua vida. A Igreja não tem outra vida fora daquela que lhe dá o seu Esposo e Senhor. De facto, precisamente porque Cristo no seu mistério de Redenção se uniu a ela, a Igreja deve estar fortemente unida com cada um dos homens. Uma tal união de Cristo com o homem é em si mesma um mistério, do qual nasce o « homem novo », chamado a participar na vida de Deus, criado novamente em Cristo para a plenitude da graça e da verdade. A união de Cristo com o homem é a força e a nascente da força, segundo a incisiva expressão de São João no prólogo do seu Evangelho: « O Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus ». É esta força que transforma interiormente o homem, qual princípio de uma vida nova que não fenece nem passa, mas dura para a vida eterna. Esta vida, prometida e proporcionada a cada homem pelo Pai em Jesus Cristo, eterno e unigénito Filho, encarnado e nascido da Virgem Maria « ao chegar a plenitude dos tempos », é o complemento final da vocação do homem; é, de alguma maneira, o cumprir-se daquele « destino » que, desde toda a eternidade, Deus lhe preparou. Este « destino divino » torna-se via, por sobre todos os enigmas, as incógnitas, as tortuosidades e as curvas, do « destino humano » no mundo temporal. Se, de facto, tudo isto, não obstante toda a riqueza da vida temporal, leva por inevitável necessidade à fronteira da morte e à meta da destruição do corpo humano, apresenta-se-nos Cristo para além desta meta: « Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em Mim … não morrerá jamais ». Em Jesus Cristo crucificado, deposto no sepulcro e depois ressuscitado, « brilha para nós a esperança da feliz ressurreição… a promessa da imortalidade futura », em direcção à qual o homem caminha, através da morte do corpo, partilhando com tudo o que é creado e visível esta necessidade a que está sujeita a matéria. Nós intentamos e procuramos aprofundar cada vez mais a linguagem desta verdade que o Redentor do homem encerrou na frase: « O espírito é que vivifica, a carne para nada serve ». Estas palavras, malgrado as aparências, exprimem a mais alta afirmação do homem: a afirmação do corpo, que o espírito vivifica! A Igreja vive esta realidade, vive desta verdade sobre o homem, o que lhe permite transpor as fronteiras da temporaneidade e, ao mesmo tempo, pensar com particular amor e solicitude em tudo aquilo que, nas dimensões desta temporaneidade, incide na vida do homem, na vida do espírito humano, onde se afirma aquela inquietude perene, expressa nas palavras de Santo Agostinho: « Fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto, até que não repouse em Vós ». Nesta inquietude criativa bate e pulsa aquilo que é mais profundamente humano: a busca da verdade, a insaciável necessidade do bem, a fome da liberdade, a nostalgia do belo e a voz da consciência. A Igreja, ao procurar ver o homem como que com « os olhos do próprio Cristo », torna-se cada vez mais cônscia de ser a guarda de um grande tesouro, que não lhe é lícito dissipar, mas que deve continuamente aumentar. Com efeito, o Senhor Jesus disse: « Quem não ajunta comigo, dispersa ». Aquele tesouro da humanidade, enriquecido do inefável mistério da filiação divina, da graça de « adopção como filhos » no Unigénito Filho de Deus, mediante a qual dizemos a Deus « Abbá, Pai », é ao mesmo tempo uma força potente que unifica a Igreja sobretudo por dentro e que dá sentido a toda a sua actividade. Por tal força a Igreja une-se com o Espírito de Cristo, com aquele Espírito Santo que o Redentor havia prometido e que comunica continuamente, e cuja descida, revelada no dia do Pentecostes, perdura sempre. Assim, no homem revelam-se as forças do Espírito, os dons do Espírito, os frutos do Espírito Santo. E a Igreja do nosso tempo parece repetir cada vez com maior fervor e com santa insistência: « Vinde, Espírito Santo! ». Vinde! Vinde! « Lavai o que se apresenta sórdido! Regai o que está árido! Sarai o que está ferido! Abrandai o que é rígido! Aquecei o que está frígido! Guiai o que se acha transviado! ». Esta oração ao Espírito Santo, elevada precisamente com a intenção de obter o Espírito, é a resposta a todos os « materialismos » da nossa época. São estes que fazem nascer tantas formas de insaciabilidade do coração humano. Esta súplica faz-se ouvir de diversas partes e parece que frutifica também de modos diversos. Poder-se-á dizer que, nesta súplica, a Igreja não está sozinha? Sim, pode-se dizer, porque « a necessidade » daquilo que é espiritual é exprimida também por pessoas que se encontram fora dos confins visíveis da Igreja. Ou não será isto mesmo confirmado, talvez, por aquela verdade sobre a Igreja, posta em evidência com tanta perspicácia pelo recente Concílio na Constituição dogmática Lumen Gentium, naquela passagem em que ensina ser a Igreja « sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano? ». Esta invocação ao Espírito e pelo Espírito não é outra coisa senão um constante introduzir-se na plena dimensão do mistério da Redenção, no qual Cristo, unido ao Pai e com cada homem, nos comunica sem cessar esse mesmo Espírito que põe em nós os sentimentos do Filho e nos orienta para o Pai. É por isso que a Igreja da nossa época — época particularmente faminta de Espíríto, porque faminta de justiça, de paz, de amor, de bondade, de fortaleza, de responsabilidade e de dignidade humana — deve con centrar-se e reunir-se em torno de tal mistério da Redenção, encontrando nele a luz e a força indispensáveis para a própria missão. Com efeito, se o homem — como dizíamos em precedência — é a via da vida quotidiana da Igreja, é preciso que a mesma Igreja esteja sempre consciente da dignidade da adopção divina que o homem alcança, em Cristo, pela graça do Espírito Santo, e da sua destinação à graça e à glória. Ao reflectir sempre de modo renovado sobre tudo isto, e aceitando-o com uma fé cada vez mais consciente e com um amor cada vez mais firme, a Igreja torna-se simultaneamente mais idónea para aquele serviço do homem, para o qual a chama Cristo Senhor, quando diz: « O Filho do homem … veio não para ser servido, mas para servir ». A Igreja exerce este seu ministério, participando na « tríplice função » que é própria do seu mesmo Mestre e Redentor. Esta doutrina, com o seu fundamento bíblico, foi posta em plena luz pelo II Concílio do Vaticano, com grande vantagem para a vida da Igreja. Quando, de facto, nos tornamos conscientes dessa participação na tríplice missão de Cristo, no seu tríplice múnus — sacerdotal, profético e real – simultânea e paralelamente tornamo-nos mais conscientes também daquilo que deve servir a Igreja toda, como sociedade e comunidade do Povo de Deus sobre a terra, compreendendo, além disso, qual deva ser a participação de cada um de nós nesta missão e neste serviço. 19. A Igreja responsável pela verdade Assim, à luz da sagrada doutrina do II Concílio do Vaticano, a Igreja aparece frente a nós como sujeito social da responsabilidade pela verdade divina. Ouçamos com profunda emoção o mesmo Cristo, quando diz: ” A palavra que vós ouvis não é minha, é do Pai, que me enviou “. Nesta afirmação do nosso Mestre, não se adverte, porventura, aquela responsabilidade pela verdade revelada, que é « propriedade » do mesmo Deus, se até Ele, o « Filho unigénito » que vive « no seio do Pai », quando a transmite, como profeta e como mestre, sente necessidade de frisar bem que age em plena fidelidade à sua divina fonte? A mesma fidelidade deve ser uma qualidade constitutiva da fé da Igreja, quer quando ela a professa, quer quando ela a ensina. A fé como específica virtude sobrenatural infundida no espírito humano, faz-nos participantes no conhecimento de Deus, em resposta à sua Palavra revelada. Por isso se exige que a Igreja, quando professa e ensina a Fé esteja estritamente aderente à verdade divina, que a mesma Fé se traduza em comportamentos vividos de obséquio consentâneo à razão. O próprio Cristo, preocupado com esta fidelidade à verdade divina, prometeu à Igreja a particular assistência do Espírito da verdade, concedeu o dom da infalibilidade àqueles a quem confiou o mandato de transmitir tal verdade e de a ensinar – doutrina esta que já havia sido claramente definida pelo I Concílio do Vaticano e que, depois, foi repetida também pelo II Concílio do Vaticano – e dotou ainda todo o Povo de Deus de um particular sentido da fé. Por consequência, tornámo-nos participantes de tal missão de Cristo profeta; e, em virtude da mesma missão e juntamente com Ele, servimos a verdade divina na Igreja. A responsabilidade por esta verdade implica também amá-la e procurar obter a sua mais exacta compreensão, de maneira a torná-la mais próxima de nós mesmos e dos outros, com toda a sua força salvífica, com o seu esplendor e com a sua profundidade e simplicidade a um tempo. Este amor e esta aspiração por compreender a verdade devem andar juntos, como o estão a confirmar as histórias pessoais dos Santos da Igreja. Eles eram os mais iluminados pela autêntica luz que esclarece a verdade divina e que aproxima a mesma realidade de Deus, porque se acercavam desta verdade com veneração e amor: amor sobretudo para com Cristo, Palavra viva da verdade divina e, ainda, amor para com a sua expressão humana no Evangelho, na Tradição e na Teologia. De igual modo hoje são necessárias, antes de mais, tal compreensão e tal interpretação da Palavra divina; é necessária tal Teologia. A Teologia teve sempre e continua a ter uma grande importância, para que a Igreja, Povo de Deus, possa participar na missão profética de Cristo de maneira criadora e fecunda. Por isso, os teólogos, como servidores da verdade divina, dedicando os seus estudos e trabalhos a uma cada vez mais penetrante compreensão da mesma verdade, não podem nunca perder de vista o significado do seu serviço na Igreja, contido no conceito do « intellectus fidei » ou seja, da a inteligência da fé ». Este conceito funciona, por assim dizer, a um ritmo bilateral, segundo a expressão de Santo Agostinho: « intellege, ut credas – crede, ut intellegas ». Depois, funciona de maneira correcta quando os mesmos teólogos procuram servir o Magistério confiado na Igreja aos Bispos, unidos pelo vínculo da comunhão hierárquica com o Sucessor de Pedro, e, ainda, quando se põem ao serviço da sua solicitude no ensino e na pastoral, como também quando se põem ao serviço dos interesses apostólicos de todo o Povo de Deus. Como em épocas precedentes, também hoje — e talvez mais ainda — os teólogos e todos os homens de ciência na Igreja são chamados a unirem a fé com a ciência e a sapiência, a fim de contribuírem para uma recíproca compenetração das mesmas, como lemos na oração litúrgica da memória de Santo Alberto Magno, Doutor da Igreja. Este interesse ampliou-se enormemente nos dias de hoje, dado o progresso da ciência humana, dos seus métodos e das suas conquistas no conhecimento do mundo e do homem. E isto diz respeito tanto às chamadas ciências exactas, quanto igualmente às ciências humanas, bem como à Filosofia, cujos ligames estreitos com a Teologia foram recordados pelo II Concílio doVaticano. Neste campo do conhecimento humano, que continuamente se alarga e a um tempo se diferencia, também a fé deve aprofundar-se constantemente, tornando manifesta a dimensão do mistério revelado e tendendo para a compreensão da verdade, que tem em Deus a única e suprema fonte. Se é lícito — e é até mesmo para desejar — que aquele trabalho imenso que está por fazer neste sentido tome em consideração um certo pluralismo de métodos, tal trabalho, todavia, não pode afastar-se da fundamental unidade no ensino da Fé e da Moral, como finalidade que lhe é própria. É indispensável, portanto, que haja uma estreita colaboração da Teologia com o Magistério. Todos os teólogos devem estar particularmente conscientes daquilo que Cristo exprimiu, quando disse: « A palavra que vós ouvis não é minha, é do Pai, que me enviou ». Ninguém, por conseguinte, pode tratar a Teologia como que se ela fosse uma simples colectânea dos próprios conceitos pessoais; mas cada um deve ter a consciência de permanecer em íntima união com aquela missão de ensinar a verdade, de que é responsável a Igreja. A participação no múnus profético do próprio Cristo plasma a vida de toda a Igreja, na sua dimensão fundamental. Uma participação particular em tal múnus compete aos Pastores da Igreja, os quais ensinam e, continuamente e de diversos modos, anunciam e transmitem a doutrina da Fé e da Moral cristãs. Este ensino, quer sob o aspecto missionário quer sob o aspecto ordinário, contribui para congregar o Povo de Deus em torno de Cristo, prepara a participação na Eucaristia e indica as vias da vida sacramental. O Sínodo dos Bispos em 1977 dedicou uma atenção especial à catequese no mundo contemporâneo; e o fruto amadurecido das suas deliberações, experiências e sugestões encontrará, dentro em breve, a sua expressão — em conformidade com a proposta dos participantes no mesmo Sínodo — num apropriado Documento pontifício. A catequese constitui, certamente, uma perene e ao mesmo tempo fundamental forma de actividade da Igreja, na qual se manifesta o seu carisma profético: testemunho e ensino andam juntos. E se bem que aqui se fale em primeiro lugar dos Sacerdotes, não se pode deixar de recordar também o grande número de Religiosos e Religiosas que se dedicam à actividade catequística por amor do divino Mestre. E seria difícil, por fim, não mencionar tantos e tantos Leigos que, nesta mesma actividade, encontram a expressão da sua fé e da sua responsabilidade apostólica. Além disso, é preciso procurar cada vez mais que as várias formas de catequese e os seus diversos campos — a começar daquela forma fundamental que é a catequese « familiar », isto é, a catequese dos pais em relação aos próprios filhos — atestem a participação universal de todo o Povo de Deus no múnus profético do mesmo Cristo. É necessário que, coligada a este facto, a responsabilidade da Igreja pela verdade divina seja cada vez mais, e de diversas maneiras, compartilhada por todos. E assim, o que é que diremos aqui dos especialistas das diversas disciplinas, dos representantes das ciências naturais e das letras, dos médicos, dos juristas, dos homens da arte e da técnica, e dos que se dedicam ao ensino nos vários graus e especializações? Todos eles — como membros do Povo de Deus — têm a sua parte própria na missão profética de Cristo, no seu serviço à verdade divina, até só através do seu modo honesto de comportar-se em relação à verdade, seja qual for o campo a que ela pertença, ao mesmo tempo que educam os outros na verdade, ou lhes ensinam a maturar no amor e na justiça. Deste modo, portanto, o sentido de responsabilidade pela verdade é um dos fundamentais pontos de encontro da Igreja com todos e cada um dos homens; e é igualmente uma das fundamentais exigências, que determinam a vocação do homem na comunidade da Igreja. A Igreja dos nossos tempos, guiada pelo sentido de responsabilidade pela verdade, deve perseverar na fidelidade à própria natureza, à qual pertence a missão profética que provém do mesmo Cristo: « Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós … Recebei o Espírito Santo ». 20. Eucaristia e Penitência No mistério da Redenção, isto é, da obra salvífica realizada por Jesus Cristo, a Igreja participa no Evangelho do seu Mestre, não apenas mediante a fidelidade à Palavra e através do serviço à verdade, mas igualmente mediante a submissão, cheia de esperança e de amor, ela participa na força da sua acção redentora, que Ele expressou e encerrou, de forma sacramental, sobretudo na Eucaristia. sta é o centro e o vértice de toda a vida sacramental, por meio da qual todos os cristãos recebem a força salvífica da Redenção, a começar do mistério do Baptismo, no qual somos imergidos na morte de Cristo, para nos tornarmos participantes da sua Ressurreição, como ensina o Apóstolo. A luz desta doutrina, torna-se ainda mais clara a razão pela qual toda a vida sacramental da Igreja e de cada cristão alcança o seu vértice e a sua plenitude precisamente na Eucaristia. Neste Sacramento, de facto, renova-se continuamente, por vontade de Cristo, o mistério do sacrifício que Ele fez de si mesmo ao Pai sobre o altar da Cruz; sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que se tornou « obediente até à morte », com a sua doação paterna; ou seja, com o dom da vida nova imortal na ressurreição, porque o Pai é a primeira fonte e o doador da vida desde o princípio. Essa vida nova, que implica a glorificação corporal de Cristo crucificado, tornou-se sinal eficaz do novo dom outorgado à humanidade, dom que é o Espírito Santo, mediante o qual a vida divina, que o Pai tem em si e concede ao Filho ter em si mesmo, é comunicada a todos os homens que estão unidos com Cristo. A Eucaristia é o Sacramento mais perfeito desta união. Ao celebrarmos e conjuntamente ao participarmos na Eucaristia, nós unimo-nos a Cristo terrestre e celeste, que intercede por nós junto do Pai; mas unimo-nos sempre através do acto redentor do seu sacrifício, por meio do qual Ele nos remiu, de modo que fomos « comprados por um preço elevado ». O « preço elevado » da nossa redenção comprova também ele o valor que o mesmo Deus atribui ao homem, comprova a nossa dignidade em Cristo. Realmente, tornando-nos « filhos de Deus », filhos de adopção, à sua semelhança nós tornamo-nos ao mesmo tempo « reino de sacerdotes », alcançamos o « sacerdócio real », isto é, participamos naquela restituição única e irreversível do homem e do mundo ao Pai, que Ele, Filho eterno e ao mesmo tempo verdadeiro Homem, operou de uma vez para sempre. A Eucaristia é o Sacramento no qual se exprime mais cabalmente o nosso novo ser, e no qual o mesmo Cristo, incessantemente e sempre de maneira nova, « dá testemunho » no Espírito Santo ao nosso espírito de que cada um de nós, enquanto participante no mistério da Redenção, tem acesso aos frutos da filial reconciliação com Deus, tal como Ele mesmo a actuou e continua sempre a actuar no meio de nós, mediante o ministério da Igreja. É uma verdade essencial, não só doutrinal mas também existencial, que a Eucaristia constrói a Igreja; e constrói-a como autêntica comunidade do Povo de Deus, como assembleia dos féis, assinalada pelo mesmo carácter de unidade de que foram participantes os Apóstolos e os primeiros discípulos do Senhor. A Eucaristia constrói renovando-a sempre esta comunidade e unidade; constrói-a sempre e regenera-a sobre a base do sacrifício do mesmo Cristo, porque comemora a sua morte na cruz, com o preço da qual fomos por Ele remidos. Por isso, na Eucaristia nós tocamos de certo modo o próprio mistério do Corpo e do Sangue do Senhor, como atestam as suas mesmas palavras no momento da instituição, em virtude da qual tais palavras se tornaram as palavras da perene celebração da Eucaristia, por parte dos chamados a este ministério na Igreja. A Igreja vive da Eucaristia, vive da plenitude deste Sacramento, cujo maravilhoso conteúdo e significado tiveram a sua expressão no Magistério da Igreja, desde os tempos mais remotos até aos nossos dias. Contudo, podemos dizer com certeza que este ensino — sustentado pela perspicácia dos teólogos, pelos homens de profunda fé e de oração e pelos ascetas e místicos, com toda a sua fidelidade ao mistério eucarístico — permanece como que no limiar, sendo incapaz de captar e de traduzir em palavras aquilo que é a Eucaristia em toda a sua plenitude, aquilo que ela exprime e aquilo que nela se actua. Ela é, de facto, o Sacramento inefável! O empenho essencial e, sobretudo, a graça visível e fonte da força sobrenatural da Igreja como Povo de Deus é o perseverar e o progredir constantemente na vida eucarística e na piedade eucarística, é o desenvolvimento espiritual no clima da Eucaristia. Com maior razão, portanto, não é lícito nem no pensamento, nem na vida, nem na acção tirar a este Sacramento, verdadeiramente santíssimo, a sua plena dimensão e o seu significado essencial. Ele é ao mesmo tempo Sacramento-Sacrifício, Sacramento-Comunhão e Sacramento-Presença. Se bem que seja verdade que a Eucaristia foi sempre e deve ser ainda agora a mais profunda revelação e celebração da fraternidade humana dos discípulos e confessores de Cristo, ela não pode ser considerada simplesmente como uma « ocasião » para se manifestar uma tal fraternidade. No celebrar o Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, é necessário respeitar a plena dimensão do mistério divino, o pleno sentido deste sinal sacramental, em que Cristo, realmente presente, é recebido, a alma é repleta de graça e é dado o penhor da glória futura. Daqui deriva o dever de uma rigorosa observância das normas litúrgicas e de tudo aquilo que testemunha o culto comunitário rendido ao mesmo Deus, tanto mais que Ele, neste sinal sacramental, Se nos entrega com confiança ilimitada, como se não tivesse em consideração a nossa fraqueza humana, a nossa indignidade, os nossos hábitos, a rotina, ou até mesmo a possibilidade de ultraje. Todos na Igreja, mas principalmente os Bispos e os Sacerdotes, devem vigiar por que este Sacramento de amor esteja no centro da vida do Povo de Deus e por que, através de todas as manifestações do culto devido, se proceda de molde a pagar « amor com amor » e a fazer com que Ele se torne verdadeiramente « a vida das nossas almas ». Nem poderemos, ainda, esquecer nunca as seguintes palavras de São Paulo: « Examine-se, pois, cada qual a si mesmo e, assim, coma deste pão e beba deste cálice ». Esta exortação do Apóstolo indica, pelo menos indirectamente, o estreito ligame existente entre a Eucaristia e a Penitência. Com efeito, se a primeira palavra do ensino de Cristo, a primeira frase do Evangelho-Boa Nova, foi « fazei penitência e acreditai na Boa-Nova » (metanoèite), o Sacramento da Paixão, da Cruz e Ressurreição parece reforçar e consolidar, de modo absolutamente especial, um tal convite às nossas almas. A Eucaristia e a Penitência tornam-se assim, num certo sentido, uma dimensão dúplice e, a um tempo, intimamente conexa, da autêntica vida segundo o espírito do Evangelho, da vida verdadeiramente cristã. Cristo, que convida para o banquete eucarístico, é sempre o mesmo Cristo que exorta à penitência, que repete o « convertei-vos ». Sem este constante e sempre renovado esforço pela conversão, a participação na Eucaristia ficaria privada da sua plena eficácia redentora, falharia ou, de qualquer modo, ficaria enfraquecida nela aquela particular disponibilidade para oferecer a Deus o sacrifício espiritual, no qual se exprime de modo essencial e universal a nossa participação no sacerdócio de Cristo. Em Cristo, de facto o sacerdócio está unido com o próprio sacrifício, com a sua entrega ao Pai; e uma tal entrega, precisamente porque é ilimitada, faz nascer em nós — homens sujeitos a multíplices limitações — a necessidade de nos voltarmos para Deus, de uma forma cada vez mais amadurecida e com uma constante conversão, cada vez mais profunda. Nos últimos anos muito se fez para pôr em realce — em conformidade, aliás, com a mais antiga tradição da Igreja — o aspecto comunitário da penitência e, sobretudo, do sacramento da Penitência na prática da Igreja. Estas iniciativas são úteis e servirão certamente para enriquecer a prática penitencial da Igreja contemporânea. Não podemos esquecer, no entanto, que a conversão é um acto interior de uma profundidade particular, no qual o homem não pode ser substituído pelos outros, não pode fazer-se « substituir » pela comunidade. Muito embora a comunidade fraterna dos fiéis, participantes na celebração penitencial, seja muito útil para o acto da conversão pessoal, todavia, definitivamente é necessário que neste acto se pronuncie o próprio indivíduo, com toda a profundidade da sua consciência, com todo o sentido da sua culpabilidade e da sua confiança em Deus, pondo-se diante d’Ele, à semelhança do Salmista, para confessar: « Pequei contra vós! ». A Igreja, pois, ao observar fielmente a plurissecular práctica do Sacramento da Penitência — a prática da confissão individual, unida ao acto pessoal de arrependimento e ao propósito de se corrigir e de satisfazer — defende o direito particular da alma humana. É o direito a um encontro mais pessoal do homem com Cristo crucificado que perdoa, com Cristo que diz, por meio do ministro do sacramento da Reconciliação: « São-te perdoados os teus pecados »; « Vai e doravante não tornes a pecar ». Como é evidente, isto é ao mesmo tempo o direito do próprio Cristo em relação a todos e a cada um dos homens por Ele remidos. É o direito de encontrar-se com cada um de nós naquele momento-chave da vida humana, que é o momento da conversão e do perdão. A Igreja, ao manter o sacramento da Penitência, afirma expressamente a sua fé no mistério da Redenção, como realidade viva e vivificante, que corresponde à verdade interior do homem, corresponde à humana culpabilidade e também aos desejos da consciência humana. « Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados ». O sacramento da Penitência é o meio para saciar o homem com aquela justiça que provém do mesmo Redentor. Na Igreja que, sobretudo nos nossos tempos, se reune especialmente em torno da Eucaristia e deseja que a autêntica comunidade eucarística se torne sinal da unidade de todos os cristãos, unidade esta que vai maturando gradualmente, deve estar viva a necessidade da penitência, quer no seu aspecto sacramental, quer também no que respeita à penitência como virtude. Este segundo aspecto foi expresso por Paulo VI na Constituição Apostólica Paenitemini. Uma das obrigações da Igreja é o pôr em prática a doutrina que aí se contém. Trata-se de matéria que deverá, certamente, ser ainda mais aprofundada por nós, em comum reflexão, e tornada objecto de muitas decisões ulteriores, em espírito de colegialidade pastoral, com respeito pelas diversas tradições relacionadas com este ponto e pelas diversas circunstâncias da vida dos homens do nosso tempo. Todavia, é certo que a Igreja do novo Advento, a Igreja que se prepara continuamente para a nova vinda do Senhor, tem de ser a Igreja da Eucaristia e da Penitência. Somente com este perfil espiritual da sua vitalidade e actividade, ela é a Igreja da missão divina, a Igreja in statu missionis (em estado de missão), conforme nos foi revelado o rosto da mesma pelo II Concílio do Vaticano. 21. Vocação cristã: servir e reinar O II Concílio do Vaticano, ao elaborar a partir dos próprios fundamentos a imagem da Igreja como Povo de Deus — mediante a indicação da tríplice missão do mesmo Cristo, participando na qual nós nos tornamos verdadeiramente Povo de Deus — pôs em realce também aquela característica da vocação cristã que se pode definir « real ». Para apresentar toda a riqueza da doutrina conciliar sobre isto, seria necessário fazer aqui referência a numerosos capítulos e parágrafos da Constituição Lumen Gentium, bem como a muitos outros Documentos conciliares. No meio de toda esta riqueza, porém, há um elemento que parece emergir: a participação na missão real de Cristo, isto é, o facto de redescobrir em si e nos outros aquela particular dignidade da nossa vocação, que se pode designar por « realeza ». Uma tal dignidade exprime-se na disponibilidade para servir, segundo o exemplo de Cristo, o qual « não veio para ser servido, mas para servir ». Se, portanto, à luz da atitude de Cristo, se pode verdadeiramente « reinar » somente « servindo », ao mesmo tempo este « servir » exige uma tal maturidade espiritual, que se tem de definí-la precisamente como « reinar ». Para se poder servir os outros digna e eficazmente, é necessário saber dominar-se a si mesmo, é preciso possuir as virtudes que tornam possível um tal domínio. A nossa participação na missão real de Cristo — exactamente na sua « função real » ( munus) — anda intimamente ligada com toda a esfera da moral cristã e também humana. O II Concílio do Vaticano, ao apresentar o quadro completo do Povo de Deus, recordando qual o lugar que nele ocupam, não apenas os sacerdotes, mas também os leigos, e não apenas os representantes da Hierarquia, mas também as e os representantes dos Institutos de vida consagrada, não deduziu essa imagem somente de uma premissa sociológica. A Igreja, enquanto sociedade humana, pode sem dúvida alguma ser examinada e definida segundo aquelas categorias de que se servem as ciências humanas. Mas tais categorias não são suficientes. Para toda a comunidade do Povo de Deus e para cada um dos seus membros, não se trata somente de um específico « pertencer socialmente », mas sobretudo é essencial, para cada um e para todos, uma particular « vocação » A Igreja, realmente, enquanto Povo de Deus — segundo a doutrina acima aludida de São Paulo, recordada de modo admirável por Pio XII — é também « Corpo Místico de Cristo ». O pertencer a tal « Corpo » deriva de um chamamento particular, junto com a acção salvífica da graça. Portanto, se quisermos ter presente esta comunidade do Povo de Deus, tão vasta e sumamente diferenciada, devemos antes de mais ver Cristo, que diz, de um certo modo, a cada um dos membros desta mesma comunidade: « Segue-me ». Esta é a comunidade dos discípulos, cada um dos quais, de maneira diversa, por vezes muito consciente e coerentemente, e por vezes pouco conscientemente e muito incoerentemente, segue Cristo. Nisto manifesta-se também o aspecto profundamente « pessoal » e a dimensão desta sociedade, a qual — não obstante todas as deficiências da vida comunitária, no sentido humano desta palavra — é uma comunidade precisamente pelo facto de que todos a constituem juntamente com o mesmo Cristo, se não por outro motivo, ao menos porque têm nas suas almas o sinal indelével de quem é cristão. O II Concílio do Vaticano aplicou uma atenção muito particular em demonstrar de que maneira esta comunidade « ontológica » dos discípulos e dos confessores se deve tornar cada vez mais, também « humanamente », uma comunidade consciente da própria vida e actividade. As iniciativas do Concílio quanto a isto encontraram a sua continuidade em numerosas iniciativas ulteriores, de carácter sinodal, apostólico e organizativo. Devemos ter sempre presente, no entanto, a verdade de que toda e qualquer iniciativa em tanto serve para uma verdadeira renovação da Igreja e em tanto contribui para aportar a autêntica luz de Cristo, em quanto se baseia sobre uma adequada consciência da vocação e da responsabilidade por esta graça singular, única e que não se pode repetir, mediante a qual cada um dos cristãos na comunidade do Povo de Deus edifica o Corpo de Cristo. Este princípio, que é a regra-chave de toda a prática cristã — prática apostólica e pastoral, e prática da vida interior e da vida social — deve ser aplicado, em proporção adequada, a todos os homens e a cada um deles. Também o Papa, assim como todos os Bispos, o devem aplicar a si mesmos. A este princípio devem igualmente ser fiéis os sacerdotes, os religiosos e as religiosas. Com base nele, ainda, devem construir a sua vida os esposos, os pais, as mulheres e os homens de condições e de profissões diversas, a começar por aqueles que ocupam na sociedade os cargos mais elevados e a acabar por aqueles que fazem os trabalhos mais simples. É este justamente o princípio daquele « serviço real », que impõe a cada um de nós, seguindo o exemplo de Cristo, o dever de exigir de si próprio exactamente aquilo para que somos chamado, e a que — para corresponder à vocação — nós nos obrigámos pessoalmente, com a graça de Deus. Uma tal fidelidade à vocação recebida de Deus, mediante Cristo, acarreta consigo aquela solidária responsabilidade pela Igreja, para a qual o II Concílio do Vaticano desejou educar todos os cristãos. Na Igreja, de facto, enquanto na comunidade do Povo de Deus, guiada pela acção do Espírito Santo, cada um possui « o próprio dom », conforme ensina São Paulo. Este « dom », porém, embora seja uma vocação pessoal e uma forma também pessoal de participação na obra salvífica da Igreja, serve igualmente para os outros e constrói a Igreja e as comunidades fraternas nas várias esferas da existência humana sobre a terra. A fidelidade à vocação, ou seja, a perseverante disponibilidade para o « serviço real », tem um significado particular para esta multíplice construção, sobretudo pelo que se refere às tarefas mais compromissivas, as quais têm maior influência na vida do nosso próximo e de toda a sociedade. Devem distinguir-se pela fidelidade à própria vocação os esposos, como resulta da natureza indissolúvel da instituição sacramental do matrimónio. Devem distinguir-se por uma análoga fidelidade à própria vocação os sacerdotes, dado o carácter indelével que o sacramento da Ordem imprime nas suas almas. Ao receber este Sacramento, nós, na Igreja Latina, consciente e livremente comprometemo-nos a viver no celibato; e por isso, cada um de nós deve fazer todo o possível, com a graça de Deus, por ser reconhecido por este dom e fiel ao vínculo assumido para sempre. E isto não diversamente dos esposos: eles devem tender, com todas as suas forças, para perseverar na união matrimonial, construindo com este testemunho de amor a comunidade familiar e educando as novas gerações de homens para serem capazes de consagrar, também eles, toda a sua vida à própria vocação, ou seja, àquele « serviço real » do qual nos foram dados o exemplo e o modelo mais belo por Jesus Cristo. A Igreja de Cristo, que nós todos formamos, é « para os homens », no sentido de que, baseando-nos no exemplo do mesmo Cristo e colaborando com a graça que Ele nos obteve, nós podemos atingir um tal « reinar », que o mesmo é dizer, realizar uma maturada humanidade em cada um de nós. Humanidade maturada significa pleno uso do dom da liberdade, que recebemos do Criador, no momento em que Ele chamou à existência o homem feito à sua imagem e semelhança. Este dom encontra a sua plena realização na doação, sem reservas, de toda a própria pessoa humana, em espírito de amor esponsal a Cristo e, com o mesmo Cristo, a todos aqueles aos quais Ele envia homens e mulheres que a Ele são totalmente consagrados segundo os conselhos evangélicos. Este é o ideal da vida religiosa, assumido pelas Ordens e Congregações, tanto antigas como recentes, e pelos Institutos seculares. Nos nossos tempos, algumas vezes julga-se, erroneamente, que a liberdade é fim para si mesma, que cada homem é livre na medida em que usa da liberdade como quer, e que para isto é necessário tender-se na vida dos indivíduos e das sociedades. Mas a liberdade, ao contrário, só é um grande dom quando dela sabemos usar conscientemente, para tudo aquilo que é o verdadeiro bem. Cristo ensina que o melhor uso da liberdade é a caridade, que se realiza no dom e no serviço. Foi para tal liberdade « que Cristo nos libertou » e nos liberta sempre. A Igreja vai haurir aqui a incessante inspiração, o estímulo e o impulso para a sua missão e para o seu serviço no meio de todos os homens. A verdade plena sobre a liberdade humana acha-se profundamente gravada no mistério da Redenção. A Igreja presta verdadeiramente um serviço à humanidade, quando tutela esta verdade, com infatigável aplicação, com amor ardente e com diligência maturada; e, ainda, quando, em toda a própria comunidade, através da fidelidade à vocação de cada um dos cristãos, a mesma Igreja a transmite e a concretiza na vida humana. Deste modo é confirmado aquilo a que já nos referimos em precedência, isto é, que o homem é e continuamente se torna a « via » da vida quotidiana da Igreja. 22. A Mãe da nossa confiança Quando no início do novo Pontificado dirijo para o Redentor do mundo o meu pensamento e o meu coração, desejo deste modo entrar e penetrar no ritmo mais profundo da vida da Igreja. Com efeito, se a Igreja vive a sua própria vida, isso acontece porque ela a vai haurir em Cristo, o qual deseja sempre uma só coisa, isto é, que nós tenhamos a vida e a tenhamos abundantemente. Aquela plenitude de vida que está n’Ele é ao mesmo tempo destinada para o homem. Por isso, a Igreja, ao unir-se a toda a riqueza do mistério da Redenção, torna-se Igreja dos homens que vivem; e vivem, porque vivificados do interior pela acção do « Espírito da Verdade », e porque assistidos pelo amor que o Espírito Santo difunde nos nossos corações. Assim, o objectivo de qualquer serviço na Igreja, seja ele apostólico, pastoral, sacerdotal ou episcopal, é o de manter este ligame dinâmico do mistério da Redenção com todos e cada um dos homens. Se estamos conscientes deste intento a realizar, então parece-nos compreender melhor o que significa dizer que a Igreja é mãe; e, ainda, o que significa que a Igreja, sempre, mas de modo particular nos nossos tempos, tem necessidade de uma Mãe. Devemos uma gratidão especial aos Padres do II Concílio do Vaticano, por terem expresso esta verdade na Constituição Lumen Gentium, com a rica doutrina mariológica que nela se encerra. E dado que Paulo VI, inspirado por esta doutrina, proclamou a Mãe de Cristo « Mãe da Igreja », e que tal denominação teve uma ampla ressonância, seja permitido também ao seu indigno Sucessor dirigir-se a Maria como Mãe da Igreja, no final das presentes considerações, que era oportuno desenvolver no início do seu serviço pontifical. Maria é a Mãe da Igreja, porque, em virtude da inefável eleição do mesmo Pai Eterno e sob a particular acção do Espírito de Amor, Ela deu a vida humana ao Filho de Deus, « do qual procedem todas as coisas e para o qual vão todas as coisas », e do qual assume a graça e a dignidade da eleição todo o Povo de Deus. O seu próprio Filho quis explicitamente estender a maternidade de sua Mãe — e estendê-la de um modo facilmente acessível a todas as almas e a todas os corações — apontando-lhe do alto da Cruz como filho o seu discípulo predilecto. E o Espírito Santo sugeriu-lhe que parmanecesse no Cenáculo, após a Ascensão do Senhor, também Ela, recolhida na oração e na expectativa, juntamente com os Apóstolos, até ao dia do Pentecostes, quando devia visivelmente nascer a Igreja, saindo da obscuridade. E em seguida, todas as gerações de discípulos e de quantos confessam e amam Cristo — à semelhança do Apóstolo João — acolheram espiritualmente em sua casa esta Mãe, que assim, desde os mesmos primórdios, isto é, a partir do momento da Anunciação, foi inserida na história da Salvação e na missão da Igreja. Nós todos, portanto, os que formamos a geração hodierna dos discípulos de Cristo, desejamos unir-nos a Ela de modo particular. E fazêmo-lo com total aderência à tradição antiga e, ao mesmo tempo, com pleno respeito e amor pelos membros de todas as Comunidades cristãs. Fazemo-lo, depois, impelidos por profunda necessidade da fé, da esperança e da caridade. Se, efectivamente, nesta fase difícil e cheia de responsabilidade da história da Igreja e da humanidade nós advertimos uma especial necessidade de nos dirigir a Cristo, que é o Senhor da sua Igreja e o Senhor da história do homem, em virtude do mistério da Redenção, estamos convencidos de que ninguém mais como Maria poderá introduzir-nos na dimensão divina e humana deste mistério. Ninguém como Maria foi introduzido nele pelo próprio Deus. Nisto consiste o carácter excepcional da graça da Maternidade divina. Não somente é única e algo que se não pode repetir a dignidade desta Maternidade na história do género humano, mas única também pela profundidade e raio de acção é a participação de Maria no plano divino da salvação do homem, através do mistério da Redenção. Este mistério formou-se, podemos dizer, sob o coração da Virgem de Nazaré, quando Ela pronunciou o seu « fiat » (faça-se). A partir daquele momento esse coração virginal e ao mesmo tempo materno, sob a particular acção do Espírito Santo, acompanha sempre a obra do seu Filho e palpita na direcção de todos aqueles que Cristo abraçou e abraça continuamente com o seu inexaurível amor. E, por isso mesmo, este coração deve ser também maternalmente inexaurível. A característica deste amor materno, que a Mãe de Deus insere no mistério da Redenção e na vida da Igreja, encontra a sua expressão na sua singular proximidade em relação ao homem e a todos as suas vicissitudes. Nisto consiste o mistério da Mãe. A Igreja, que A olha com amor e esperança muito particular, deseja apropriar-se deste mistério de maneira cada vez mais profunda. Nisto, de facto, a mesma Igreja reconhece também a via da sua vida quotidia