Recebi uma carta de Roma

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Enquanto ressoavam as bombas da guerra, fez-se diálogo sinodal entre umas centenas de cristãos, interrompida, de vez em quando, por momentos de recolhimento silencioso. Contraste que passou esquecido pelos nossos meios de comunicação social, sempre tão afeitos ao espectacular. Foi assim durante três semanas. Era a primeira sessão da XVI.ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos.

Recebi uma carta de Roma. Melhor, da Cidade do Vaticano. Tenho recebido muitas vezes cartas de Roma assinadas pelos papas. Chamam-se Encíclicas e Cartas Pastorais sobre os mais diversos temas. Ou, então, simples mensagens. Mas esta é uma carta especial, porque me é enviada da XVI.ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Tem a data de 25 de Outubro de 2023. Endereçada ao povo de Deus, ela é para mim. E para si, também.

Muito a apreciei. Quer pelo emissor, quer porque ela mostra que aquela Assembleia não esqueceu aqueles que estiveram na sua preparação.

Não esqueceu e não esquece.

Não esqueceu porque, dando graças a Deus pela «rica e bela experiência que tivemos» e vivendo em comunhão com todos e sustentados pelas orações de todos, aquela Assembleia reitera ter trazido as expectativas, os questionamentos e os receios de todo o povo de Deus apresentados ao longo dos dois anos anteriores pelas comunidades cristãs de todos os pontos da Terra. Foi a sinodalidade em acção.

Não esquece porque o trabalho da Assembleia espera vir a ser correspondido por mais um ano até à próxima sessão: «Gostaríamos que os meses que nos separam da segunda sessão, em outubro de 2024, permitam a todos participar concretamente no dinamismo de comunhão missionária indicado pela palavra “sínodo”.» Lembrando, novamente, a necessidade de promover o envolvimento de todos e de cada um, a carta promete elencar os muitos desafios e as numerosas questões num «relatório de síntese» desta primeira sessão sinodal com os acordos alcançados, as questões em aberto e propostas de prosseguimento dos trabalhos.

Aguardei a publicação deste «relatório de síntese» com natural curiosidade já que, prometido naquela carta, passei a esperá-lo como sua parte integrante. E o «relatório de síntese» chegou a 28 de Outubro, passados três dias, portanto. Vinha acompanhado com 22 quadros com as tabelas, por secções, dos resultados das votações para cada parágrafo de entre um conjunto que se aproxima das três centenas.

Chegar, chegou. Melhor dito: foi divulgado informaticamente em italiano. Simplesmente em italiano. Fiquei desapontado. Só em italiano, porquê? Não vislumbro razão. Não interessa ele a toda a tribo, língua, povo e nação? A «todos, todos, todos»?

Recebi uma carta de Roma em língua portuguesa. Numa espécie de anexo, vieram depois umas dezenas de páginas em italiano, língua que não domino, como não dominará a generalidade do povo anónimo, português e de outros povos e nações. Chama-se «Relazione di Síntesi» e apresenta-se com o título «Una Chiesa sinodale in Missione». Até aqui, entendi.

E fui entendendo um pouco mais. Vi um texto inicial de introdução e um texto final de conclusão. Pelo meio três partes assim intituladas: «A face da Igreja Sinodal», com sete capítulos, «Todos os discípulos, todos missionários» com seis capítulos e «Criando laços, construindo comunidades» com sete capítulos, perfazendo ao todo vinte temáticas desdobradas em duzentos e setenta e um parágrafos.

E, orientado pelos temas dos vinte capítulos, com algum esforço fui entendendo um pouco mais.

Dizem os estudantes, muitos, segundo consta, que a matemática é difícil. Não sei se terão sempre razão. Mesmo assim, limitado nas letras italianas como sou, fui para a matemática que dizem ser de rigor em qualquer zona do globo, sobretudo se as operações forem mesmo elementares. Virei-me para os números das votações dos mais de trezentos agentes sinodais.

Passei tabela por tabela, de cada um dos vinte temas e de cada um dos seus parágrafos, percorrendo com atenção as «convergências» alcançadas, as «questões em aberto» e «propostas» de prosseguimento dos trabalhos. Este quadro geral permitiria um bom trabalho de análise que não faremos aqui. Isso ultrapassaria de todo os objectivos e os limites deste texto. Ficarei por aquilo que imediatamente sobressai.

Olhando para os resultados apresentados nas tabelas dos vários parágrafos votados, incluindo a introdução e o texto final «Para continuar o caminho», verifica-se o seguinte: a) todos os textos dos duzentos e setenta e um parágrafos foram aprovados; b) nunca houve unanimidade, mesmo nas «convergências»; c) receberam a maior aprovação, com apenas um voto contra, o texto da introdução e os textos de três parágrafos, relativos à especificidade, distinção e autonomia das Igrejas Orientais, à capacidade evangelizadora das pessoas com deficiência e à escuta no processo sinodal; d) os capítulos com maior número de votos negativos situam-se sobretudo na Parte II, «Todos discípulos, todos missionários», particularmente no capítulo 9, «As mulheres na vida e na missão da Igreja», no capítulo 11, «Diáconos e sacerdotes numa Igreja sinodal» e no capítulo 12, «O Bispo em comunhão eclesial», com incidência particular nas questões em aberto e nas propostas. Compreende-se, porque aí se aborda o ministério diaconal das mulheres, o celibato dos sacerdotes, a necessidade de uma teologia diaconal e a oportunidade de incluir sacerdotes que deixaram o ministério num serviço pastoral que possa valorizar a sua formação e experiência. Temas polémicos a que se podem acrescentar outros dispersos por outros parágrafos como a questão do género e a identidade sexual.

Recebi uma carta de Roma. Regresso às suas palavras finais: «O mundo em que vivemos, e que somos chamados a amar e a servir mesmo nas suas contradições, exige da Igreja o reforço das sinergias em todos os âmbitos da sua missão. É precisamente o caminho da sinodalidade que Deus espera da Igreja do terceiro milénio” (Papa Francisco, 17 de outubro de 2015). Não tenhamos medo de responder a este apelo

Tentando percorrer o caminho da sinodalidade, tentarei continuar a decifrar, de dicionário na mão, o italiano do «Relatório de síntese».

Continuemos todos, lendo, escutando e discernindo, vencendo com fé e esperança possíveis receios ou medos, respondendo ao apelo do Papa e dos membros da primeira sessão da XVI.ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Para não esquecermos que recebemos, todos, uma carta de Roma e que o Sínodo continua na Igreja. Escutando, Ela caminha silenciosa entre os ruídos do mundo.

Guarda, 8 de Novembro de 2023

António Salvado Morgado

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