RDCongo: «Enquanto houver guerra, é fácil fazer desaparecer as riquezas», diz missionário português

Semanas depois do grupo armado M23 ter avançado para a cidade de Goma, continuam a registrar-se confrontos na capital da província de Kivu Norte, no leste da República Democrática do Congo, o que se está a traduzir no agravamento das condições humanitárias na região. O padre Marcelo Oliveira, missionário comboniano, vive neste país e assiste a um ambiente de autêntico caos

Padre Marcelo Oliveira (arquivo pessoal)

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Padre Marcelo, como pode descrever a situação que se vive no país neste momento?

Bom, é uma situação um pouco dramática, da qual conseguimos ter algumas informações, mas não há clareza na passagem da informação, daquilo que realmente se está a passar na parte leste da República Democrática do Congo. Falamos da cidade de Goma, que é uma cidade fronteiriça com o Ruanda e que, como tem o aeroporto internacional, tem bastante movimento. Sendo tomada pelo M23, teria o domínio de toda a província, de toda aquela parte leste do Congo.

 

Falamos de um cenário de caos humanitário, como se tem dito, é uma crise sem resposta?

Sim, a população está foragida. A guerra é entre o exército congolês e estes grupos armados, que procuram tomar posse para poder continuar depois com o saque de tudo o que são as riquezas.

 

E o impacto sobre as pessoas?

No final, a população é aquela que sofre mais, que tem de fugir, que morre constantemente.

 

É possível ter alguma noção do número de mortos? Qual é o cenário também nos hospitais?

Um caos, porque muitas das vezes estes grupos armados, não somente atacam a cidade em si, mas atacam os hospitais, mesmo até os campos de refugiados. Em vez de ser um lugar de refúgio, acaba por ser um lugar onde reina o medo e onde as populações têm, constantemente, mesmo de fugir. Há dois ou três dias deram ordem de 72 horas para evacuar um campo de refugiados e a população tem de continuar a fugir.

 

O Papa tinha apelado à intervenção da comunidade internacional quando o conflito se começou a agravar, ao longo da fronteira com o Ruanda, nas últimas semanas. Acha que esta mensagem ficou sem resposta?

A comunidade internacional começou a fazer qualquer coisa, porque quando foram os ataques à cidade de Goma, em Kinshasa começaram a atacar embaixadas e algumas foram queimadas. Isso fez com que a comunidade internacional despertasse um pouco. O Conselho de Segurança da ONU teve reuniões de urgência, houve uma no dia 2 de fevereiro para tentar ver como fazer. Entretanto, houve uma reunião em Dar El Salem, na Tanzânia, entre a comunidade da África de Leste e da África Austral para procurar um acordo. No final destas conversações, desta cimeira, decidiram a retirada imediata das forças do M23, que são altamente financiadas e acompanhadas pelo exército do Ruanda. O presidente do Ruanda estava presente para tirar a fotografia. Há acordos que se assinam há muitíssimos anos, mas assina-se o acordo na sala da cimeira, sai-se e faz-se outra coisa diferente.

 

O Papa Francisco e o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, serão, nesta altura, aquelas vozes dissonantes na comunidade internacional, na procura de soluções?

O Papa, sem dúvida, porque o Papa continua nas catequeses, no Ângelus, constantemente a pronunciar-se sobre esta situação catastrófica. O Papa, quando aqui esteve, disse ‘tirem as mãos da África’. Disse à comunidade internacional: ‘tirai as vossas mãos daqui’. As mãos são um meio de roubar…

 

E essas mãos permanecem?

Essas mãos permanecem, porque há todo o interesse em continuar a pilhar as riquezas naturais. O objetivo do M23 é, de facto, poder controlar os sítios onde há minérios, para que possam continuar a poder fazer sair todas as riquezas – o ouro, o cobalto, os diamantes. Entretanto, há um apelo que foi lançado recentemente para que a comunidade internacional, a Europa sobretudo, não compre as riquezas que saem do Ruanda, porque é um país extremamente pequenino, que não tem ouro, que não tem diamantes, que não tem cobalto, mas é um dos grandes vendedores de cobalto e de ouro no mundo. É claro que tudo isto é ouro e todas estas riquezas que saem do Congo, pela porta do cavalo, são vendidas pelo Ruanda, que depois se aproveita com toda esta riqueza dos outros.

 

Fica então claro, do que nos disse, que há interesses estrangeiros por trás desta catástrofe. Como é que se explica que a guerra na República Democrática do Congo se prolongue há tantas décadas, sem um fim à vista?

Enquanto houver confusão, enquanto houver guerra, é fácil fazer desaparecer as riquezas. Num país ordenado, há sistemas de controlo, há sistemas de vigilância, há a possibilidade de controlar tudo aquilo que é produzido. Mas, com a guerra… os locais de extração são, em grande parte, artesanais e no meio de toda esta bagunça e confusão é fácil fazer sair as riquezas.

 

O padre Marcelo, há pouco, falava da situação nos campos de refugiados, que nem eles escapam a toda esta violência. Tem sido possível ajudar os deslocados na região? Que instituições permanecem no terreno?

Bom, a Igreja e a ONU. António Guterres pediu que fosse aberto um corredor humanitário. O aeroporto de Goma, que é o único meio de poder fazer chegar ajuda humanitária à região, esteve fechado durante mais de uma semana. Diziam que possivelmente haveria mesmo bombas que não detonaram e que poderiam estar na pista. De modo que, começou o processo de reabilitação do aeroporto, porque eles entraram, tentaram tomar posse do aeroporto, o M23, e destruíram uma parte da pista, atacaram a torre de controlo e, é claro, tudo isso terá de ser revisto antes que os aviões possam chegar. No último semestre de 2024, o Ruanda conseguiu mesmo entrar nos radares da torre de controlo para poder, ele mesmo, controlar o espaço aéreo, o que causou sérias complicações aos aviões para conseguirem aterrar, porque o radar não indicava o aeroporto. Atualmente, toda a ajuda humanitária somente pode chegar a Goma por via aérea.

 

Neste contexto tão difícil, qual tem sido o papel da Igreja Católica no terreno?

Bom, a Igreja é uma Igreja universal e, portanto, mesmo para aquela que está em Kinshasa é fácil fazer chegar donativos à Igreja de Goma, que poderá prestar assistência perto da população. A Igreja continua presente ao lado do povo. A ONU continua a fazer o seu trabalho através do Alto Comissariado para os Refugiados.

 

E tem sido possível fazer chegar a ajuda?

Não, por causa do aeroporto…

 

Ou seja, nesta altura as populações estão desprotegidas…

É, deixadas a elas próprias.

 

Pessoalmente, como é que tem vivido toda esta crise. Sei que não é fácil, mas o que é que o mais o tem impressionado?

A passividade. A passividade da comunidade internacional face a uma crise humanitária com o tamanho desta crise, uma certa passividade. Em muitas das minhas entrevistas, porque vocês andam sempre atrás de nós, digo: é o grande silêncio. A Igreja consegue manter-se presente, a comunidade internacional fica na passividade.

 

E já conseguiu perceber essa assimetria de tratamento, por parte da comunidade internacional, relativamente a diferentes locais de conflito?

É difícil de compreender qual a verdadeira posição que a comunidade internacional toma, em relação a esta crise humanitária. Por um lado, vemos a ONU que se preocupa. Se calhar assim meio às escondidas, a ONU também faz parte daqueles que metem a mão.

 

Muitas vezes a opinião pública, sobretudo aqui no Ocidente, não está muito sensibilizada para este drama. Espera que quem está a ouvir possa exigir a quem manda que tome posição?

Eu creio que não serão grandes vozes que poderão fazer muita coisa, mas são as vozes dos pequenos. A voz de um lado, a voz do outro, um apelo daqui, um apelo de além poderão sensibilizar. É claro que mobilizar uma grande quantidade de pessoas com campanhas, com a difusão de imagens, de entrevistas, é o único meio. Nós, Igreja, o único meio que temos é a nossa voz. Nós somos profetas através da nossa voz, somos chamados a evangelizar e a anunciar o Evangelho. Necessariamente, a nossa presença é a presença de Jesus ao lado do povo que sofre, não guardando silêncio. O silêncio é tantas vezes aquilo que faz com que não seja conhecido.

Nós pensamos na guerra na Ucrânia, na guerra no Medio Oriente, a quantidade de imagens que passam nas nossas televisões. A República Democrática do Congo passa pela Igreja. Poucas vezes passam mensagens que possam dar a conhecer esta realidade., se calhar por falta de interesse, Portugal tem pouca ligação à República Democrática do Congo…

A nossa comunicação social em Portugal não difunde muito daquilo que é a realidade deste país, se calhar estão mais interessados em fazer difusões sobre aquilo que eram as colónias portuguesas, os países de expressão portuguesa, possivelmente isso faz com que a nossa comunicação social não se dedique tanto a fazer conhecer este conflito.

Também porque a informação muitas vezes é bloqueada, todas estas informações na televisão nacional aqui não passam. Todo este tipo de informações passa através de pessoas que estão no terreno, através da ONU que difunde algumas notícias, mas jornalistas que consigam entrar nestes ambientes é muitíssimo complicado. Esta é uma informação que procuram camuflar ao máximo.

 

Padre Marcelo Oliveira (arquivo pessoal)

Sabemos que o conflito se estendeu a várias regiões e houve violência também na capital, Kinshasa. Uma guerra generalizada no país é um cenário de pesadelo?

É impossível. É impossível uma guerra. Nós falamos de um país que é 26 vezes maior que Portugal, que não tem vias de comunicação terrestre. Tudo se faz por via aérea. Portanto, será impossível. Focos, pontos estratégicos poderão ser atacados. O M23 tentou mudar-se e, pouco a pouco, está a tentar avançar descendo para o sul. A grande parte dos ataques que aconteceram nas semanas anteriores foram em Goma. Pouco a pouco eles estão a avançar indo mais para o sul, para a região de Bukavu, que fica diante do Burundi.

Em Kinshasa, poderá haver alguns rumores, uns ataques nalgumas horas, mas uma guerra generalizada em todo o país não, porque o foco é a tomada de posse pelas forças estrangeiras das zonas altamente ricas, onde o subsolo tem muitas riquezas e, portanto, aí é que está o interesse. Outras partes do país, onde há pedras, onde a terra nem sequer produz ou em zonas bastante isoladas, não vão atacar. É um ponto estratégico, porque falamos de uma fronteira e normalmente os locais onde há ataques são sempre cidades ou vilas fronteiriças, que permitem facilmente a saída das riquezas, seja pelo Uganda, seja pelo Ruanda e mesmo pela Tanzânia.

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