Homilia do bispo de Santarém na Missa da Ceia do Senhor




Irmãos e irmãs
Aqui estamos em Quinta-feira Santa, Dia do Sacerdócio e da Eucaristia, a dar início ao Tríduo Pascal com esta celebração da Missa da Ceia do Senhor.
Como escutamos do Evangelho de São João: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13,1).
Isto é, antes das famílias fazerem a ‘entrega’ dos cordeiros no Templo de Jerusalém, na véspera, Jesus tem consciência de que chegara a Hora da sua entrega, da passagem deste mundo para o Pai, é a sua Páscoa. Assim, Jesus envolve os seus discípulos e promove com eles a Ceia Pascal da nova e definitiva Aliança que havia de corresponder à sua entrega, com todo o drama de injustiça e sofrimento. Na Ceia, Jesus institui o memorial da sua paixão, morte e Ressurreição: “Ele que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. Deste modo, o memorial da Ceia, a Eucaristia, é o Sacramento que nos introduz no mistério da Páscoa de Jesus. Ele entrega-se ao Pai e, como seus discípulos, atrai-nos nessa entrega consagrando-nos como filhos e filhas de Deus.
“Fazei isto em memória de mim”, é o mandato de Jesus para assegurar que a sua entrega, assim celebrada, tem força perene da sua presença. Celebrando o memorial do Senhor cultivamos e acolhemos o seu Amor fiel e libertador. Ao dizer “Fazei isto em memória de mim”, Jesus não queria dizer simplesmente ‘repeti o ritual que eu fiz’ mas antes ‘oferecei-vos também como vedes que Eu fiz’. Isto é, estamos perante um novo culto; já não oferecemos coisas a Deus, oferecemos Cristo e, com Ele, oferecemo-nos nós também. Somos a Igreja do Senhor, ‘povo sacerdotal’, um povo que aprende com Cristo a entregar-se confiante nas mãos do Pai, como também nos exorta São Paulo na sua carta aos romanos: “Peço que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Este é o vosso culto autêntico” (Rom 12,1).
Entretanto, o culto eucarístico deve traduzir-se em serviço. O Evangelho de São João é o único a registar a iniciativa de Jesus em lavar os pés aos discípulos. Jesus sabia “que o Pai lhe tinha dado toda a autoridade, então quis traduzir essa autoridade: levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou numa toalha, deitou água numa bacia, e começo a lavar os pés aos discípulos” (Jo 13,4-5). Com esta iniciativa, num gesto inesperado, Jesus traduz o Amor que é celebrado no memorial da sua Ceia.
Estar à mesa juntos era sinal de comunhão e de partilha mas lavar os pés aos apóstolos já supera tudo; não é normal que, aquele que preside, lave os pés aos outros convivas. Jesus quer dizer-nos que a sua vida, a sua entrega, o seu Amor tem de traduzir-se em serviço. O exemplo que dá é chocante porque assumiu, ao tempo, a missão de um escravo que lava os pés aos visitantes que chegam de fora. Não admira, portanto, a recusa do apóstolo Pedro: “Nunca consentirei que me laves os pés”. Acabou por aceitar porque foi colocado em causa a sua comunhão com o seu Mestre e Senhor.
Jesus conclui o lava-pés instruindo: “Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também”. Isto é, cuidar das pessoas é necessário, é um serviço e deve estar associado ao mistério do Amor que celebramos na Eucaristia. Mas pode ser traduzido também por uma iniciativa de solidariedade e entreajuda.
O lava-pés traduz a missão do servo ou servidor. Todos aqueles que estão ao serviço da Eucaristia são chamados a ser servidores humildes, seja o sacerdote que preside ou o cantor ou acólito mais novo. Somos servidores e não o centro do mistério que celebramos. É suposto a alegria mas não a vaidade.
O Documento Final do Sínodo, publicado no passado mês de novembro, retomando um ensinamento do Papa Bento XVI, refere a importância da espiritualidade eucarística que não se limita à celebração e adoração mas abraça a vida inteira. Lembra que um dos efeitos da secularização, isto é, da sociedade que relegou a fé cristã para a margem da existência como se fosse inútil, levou à falência desta maneira de viver «como se Deus não existisse».
Hoje torna-se necessário redescobrir que Jesus Cristo não é uma simples convicção privada ou uma doutrina abstrata, mas uma pessoa real cuja inserção na história é capaz de renovar a vida de todos. Por isso, a Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e missão da Igreja, deve traduzir-se em espiritualidade, em vida «segundo o Espírito» (DF nº 77).
Irmãos e irmãs, reconheçamos na celebração da Eucaristia todo o Amor de Cristo. O Senhor entrega-se ao Pai, atraindo-nos, e entrega-se a nós como alimento para nos manter no seu Amor e na missão que nos confia. A Eucaristia está associada à missão. Que o gesto que se segue do Lava-pés, nos recorde a humildade de Jesus, o Mandamento Novo do Amor e o compromisso da missão da vida, na família, na Igreja e na sociedade em conformidade com a Eucaristia que celebramos.
D. José Traquina,
Bispo de Santarém