«Quem queria mais do que nós que as celebrações começassem mais cedo?» – Presidente da Comissão Episcopal da Liturgia e Espiritualidade

Suspensas desde o dia 13 de março, as celebrações comunitárias estão de regresso este fim de semana “na prudência e na segurança”, como indica D. José Cordeiro

A solenidade de Pentecostes pode ser celebrada com a presença de fiéis, embora debaixo de um conjunto de normas da Direção-Geral da Saúde, que continua a defender o distanciamento social. Para um regresso prudente e responsável, as dioceses publicaram um conjunto de orientações: o uso de máscara é obrigatório, assim como a higiene de mãos antes de entrar no espaço litúrgico.

O convidado desta semana da entrevista Renascença/Ecclesia é D. José Cordeiro, bispo da Diocese de Bragança-Miranda, presidente da Comissão Episcopal da Liturgia e Espiritualidade.

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)

Agência Ecclesia/MC

O regresso às celebrações comunitárias – ainda que condicionado -, neste tempo em que se vai navegando à vista, encerra riscos, direi, controlados?

Esta retoma das celebrações comunitárias é, sobretudo, o grito e o canto do Aleluia em tempo de Pentecostes, na conclusão destes 50 dias da Páscoa. Serão contidas, nos gestos, nos seus próprios ritos, em razão dos riscos inerentes à pandemia de Covid-19. Mas a primeira palavra que nós procuramos transmitir, em cada diocese e como Conferência Episcopal Portuguesa, é a da confiança, da serenidade. Mesmo na implementação destas orientações, é a do bom senso, da fé, da coerência com outras atitudes outros gestos, outros habitats deste tempo em que vivemos.

Estas condicionantes não poderão, de alguma forma, descaraterizar a própria celebração?

Esperemos que não. Com a Liturgia não se brinca, ela é obra em ato, por isso há de ser o momento da celebração desse mesmo Mistério, de uma maneira séria, bela, simples, atendendo a que é uma exceção. Esperemos que seja temporária, que passe o mais rápido possível. Mas até lá, e para – como dizia São João Bosco – nós possamos ser bons cristãos e honestos cidadãos, é preciso ter em atenção a nossa saúde e a dos outros, a saúde pública, o bem comum.

O desconfinamento começou no início do mês de maio, havia quem advogasse o regresso das celebrações comunitárias um pouco mais cedo. Qual é a sua opinião? Pensa que poderia ter havido alguma irreverência do episcopado, das comunidades católicas, e também alguma pressão para que as condições estivessem reunidas para um regresso mais cedo?

Era bom que acontecessem durante o tempo pascal e felizmente isso acontece, ainda que nos dois últimos dias, para se celebrar dignamente e com a solenidade possível a Páscoa, porque muitos dos nossos irmãos e irmãs não tiveram essa possibilidade – outros, se calhar já em razão da participação em exéquias, outros momentos mais confinados, puderam fazê-lo – tiveram de acompanhar através dos meios de comunicação social, mas sem aquela presença efetiva e afetiva.

Certamente, todos queríamos que acontecesse mais cedo, eu também me incluo nesses, gostaria que tivessem começado bem mais cedo. As nossas orientações estavam prontas e foram aprovadas no dia 8 de maio, mas são as próprias circunstâncias deste contexto. Na prudência e na segurança quisemos começar, como corpo, conjuntamente.

Tenho dito a muitas pessoas: sofra, ao menos, com paciência, se não puder sofrer com alegria, porque isto também conta para que nós sintamos ainda mais verdadeiramente membros de um corpo, que tem Cristo como cabeça. Isto não é uma questão de ritos, é uma questão decisiva, vital, não é exclusiva, como vimos neste tempo – em que encontramos outras formas de oração familiar, pessoal, comunitária -, mas nós não vivemos sem a Liturgia, o mesmo é dizer: não podemos viver sem a Eucaristia. Porque, sem ela, não existe Igreja.

O que é que prevê que se possa vir a passar no próximo fim de semana? Uma retração, devido aos receios dos fiéis, ou uma grande afluência às Eucaristias, porque as pessoas estão desejosas da celebração?

Será muito imprevisível. Conversando entre o presbitério, na nossa diocese, porque celebramos a Missa Crismal no dia 22 de maio – foi um tempo de nos renovarmos na esperança e de partilharmos tantas preocupações, incertezas -, disse acreditar que acontecerá com calma, serenidade, porque as pessoas têm uma grande consciência da gravidade da situação que estamos a viver. Eu vejo nas ruas, noto essa plena consciência, esse cuidado. Houve uma psicologia do medo, que foi em crescendo.

Sabendo que as orientações estão a ser implementadas nas igrejas, a começar nas nossas catedrais, nos santuários, nas capelas, temos todas as razões para celebrar com a melhor dignidade possível, com a solenidade possível, a plenitude da Páscoa que acontece no Pentecostes. E também o encerramento do mês de maio, que para nós é tão significativo, o mês da Mãe. Aí, com certeza, terá de haver mais alguma cautela nas manifestações possíveis de rua, no diálogo com as autoridades civis, de segurança, sanitárias, para que não se facilite, não se corram riscos, mas que não se deixe de celebrar por medo ao medo.

E o que dizer às pessoas que, eventualmente, não possam ter acesso porque se lotou a capacidade do espaço litúrgico?

Eu não sei como é que isso está a acontecer nas outras dioceses, vamos ter oportunidade de partilhar, mas aqui nós multiplicamos o maior número possível de Missas. Já está a ser preparado e, no que diz respeito às aldeias, não temos qualquer dificuldade a esse nível; no que respeita às cidades e vilas, estamos a tentar que já aconteçam as celebrações ao ar livre, com as medidas necessárias, porque a celebração é um ato gratuito e chegar alguém e dizer: não tem lugar, não pode ser… Não sei como isso se possa gerir, noutros ambientes, mas Deus queira que não venha a acontecer isso, porque está-se a diluir noutras formas de oração, também, ao longo da semana, e o sábado será, de facto, o nosso grande teste nas celebrações. Queremos acreditar na competência, na inteligência, no bom senso.

Foto: Santuário de Cerejais (Bragança)

“Quanto à questão da Comunhão, o importante é que ela exista”

Há um conjunto de orientações que estão a presidir a esse regresso. Que trabalho foi feito em conjunto com a Direção-Geral da Saúde, o que é que foi da competência de cada parte? A forma de comungar, é competência de quem?

As orientações da Conferência Episcopal Portuguesa são uma espécie linhas-guia; são 79, ainda não chegaram à plenitude de um número redondo, quer dizer que devem ser aplicadas em cada diocese, o responsável é cada bispo, é o primeiro liturgo de cada diocese. Elas foram feitas numa cooperação recíproca com a Direção-Geral da Saúde, com as demais autoridades e a Conferência Episcopal, no seu Conselho Permanente e seus órgãos próprios, aprovou.

Como dizia, são meramente indicativas e são exceção à regra. Não devemos tomá-las demasiadamente à letra, a não ser aquelas que falam de perigos à saúde dos outros.

Quanto à questão da Comunhão, o importante é que ela exista, a Comunhão com Cristo, não é a questão da forma e do modo de a fazer.

Mas é importante, por exemplo, permanecer a indicação de apenas comungar na mão?

Sim, a nossa indicação é para que seja só na mão. Da nossa parte, aqui, temos conversado: se alguém aparecer – porque há algumas pessoas que insistem, pela sua formação – terá de haver maiores cuidados. Mas ninguém deixará de receber a Comunhão, porque não é possível que tal aconteça.

Todos têm acesso à Comunhão e isso exigirá um maior esforço. Agora, nós temos de ser corresponsáveis, cada um tem de tomar isto muito a sério, se calhar nunca se apelou tanto à responsabilidade de cada um como agora. Não é uma questão de alteração, não muda em nada a substância e esperamos que não se criem outros ritos, nem se criem outras formas, nestas celebrações, porque alguns querem ir muito para além do que está indicado; outros querem ficar muito aquém. Tem de se criar uma harmonia e, sobretudo, o tal bom senso humano e pastoral. Teremos, pelo menos neste primeiro tempo das celebrações litúrgicas comunitárias, de ser muito corresponsáveis. Onde elas já estão a acontecer, as experiências são muito positivas e não vamos criar problemas onde eles não existem.

É importante essa articulação com as autoridades, mas não se pode dar a imagem de que a independência da Igreja face a outras entidades pode ser questionada? Em especial através desta publicação dos cartazes, oriundos da Direção-Geral da Saúde, das normas que são seguidas… Esta articulação não pode gerar confusão?

Desde o início da pandemia, como conhecemos também, de resto, de outras conferências episcopais, dissemos que estávamos na inteira colaboração recíproca com as autoridades civis, sanitárias, como sempre estivemos. Não há aqui nenhuma interferência de nada nem de ninguém, os cartazes são meramente indicativos, porque depois cada um, nas suas dioceses e nas suas paróquias – e tenho visto aqui, na minha diocese – faz a adaptação, com os logotipos, por exemplo. Está aqui em causa um diálogo para um bem maior. Poderá ter existido, nos inícios, a relação com base na liberdade religiosa e não na Concordata, no respeito pela Igreja Católica, não sei…

Isto é para um bem maior e se nós lutamos pelo bem comum, pela dignidade integral da pessoa humana, queremos que ninguém se contagie no âmbito de uma celebração litúrgica comunitária. Queremos, sim, que as celebrações sejam contagiantes de luz, de verdade, de paz. Penso que isso é um não-problema, pelo menos do que me é dado saber.

Compreendemos o cansaço, o desgaste, até na perspetiva de querer recomeçar mais cedo, mas é o recomeçar. Vamos começar de novo e isso exige de todos uma atitude de conversão. Depois, caso a caso, resolvem-se os problemas, mas tinha de haver estas linhas-guias, numa colaboração muito estreita com as autoridades civis e sanitárias.

Repetindo: nós queremos ser bons cristãos e honestos cidadãos.

“Teremos de encontrar as formas mais seguras e mais criativas, expressivas da nossa fé”

Aproxima-se a solenidade do Corpo de Deus, a celebração dos santos populares, enfim, uma época rica de manifestações religiosas que acontecem na rua. Como viver este tempo com o distanciamento social que se exige?

De muita vigilância, uns com os outros, no verdadeiro e autêntico sentido de cuidar uns dos outros. Mas, como aconteceu até agora, com criatividade, com muita maneira nova de fazer as coisas; não querer fazê-las como há dois meses ou como no ano passado, no que respeita às festas e procissões, às expressões da piedade popular, mas sem deixar de as fazer.

Foto: Santuário de Cerejais (Bragança)

Como se irá fazer na Diocese de Bragança-Miranda?

Irei ter alguns encontros com autoridades civis e forças de segurança para articular isso mesmo, mas para nós é uma questão decisiva, até na coesão social e na coesão territorial. Fazer com segurança, com dignidade, com a solenidade possível, mas podem – e até me atrevia a dizer devem – ser feitas. Vivemos de símbolos e sabemos que, ao longo da história, o medo criou deuses. Se nós perdemos a nossa identidade, mesmo em tempo de tempestade, e não confiamos naquele que está no meio de nós, que está de igual modo com todos, se Ele estiver no meio, se isto for por causa da nossa adesão, pela vida em Cristo, há de celebrar-se com a dignidade e a solenidade possível, em coerência com outras coisas da vida quotidiana que já estão a acontecer.

Nas orientações da Conferência Episcopal, a última, diz-se que peregrinações, procissões, festas, romarias devem permanecer suspensas.

Mas não se esqueça da última coisa que lá vem escrita: até novas orientações.

E são essas que estão a chegar, então?

Eu penso que sim. Essas novas orientações serão localmente. Temos também Assembleia Plenária, em breve, e conjuntamente havemos de encontrar essas formas criativas.

Serão a nível diocesano que elas se vão encontrar?

Não se pode seguir a lógica do não, tem de ser um sim responsável, criativo, de vida.

Está aberta a porta para termos já a procissão do Corpo de Deus?

Não sei. Poderá haver de um modo contido, por exemplo, nalgumas igrejas amplas. Estou aqui a pensar no caso da Catedral de Bragança, ela existirá, mas internamente. Há aqui uma aldeia eucarística, que está na origem de um Instituto de Vida Consagrada com o carisma da Eucaristia, havemos de arranjar maneira de a celebrar, saindo por exemplo só o pálio com a custódia, transportada com as luvas e as máscaras, e as outras pessoas, terminada a Eucaristia, vão para as suas casas, participando desde as janelas e portas. Teremos de encontrar as formas mais seguras e mais criativas, expressivas da nossa fé, sob pena de sermos vítimas de nós próprios, isto é, de andarmos com a cara nas nuvens, que muda a forma e o perfil segundo o vento.

Há aqui um mal maior que nos impediu do bem maior que é a celebração em comunidade. É bom dizer que as celebrações que foram realizadas, todas, foram um ato da comunidade, porque não há celebrações privadas, a Liturgia é sempre um ato da comunidade, porque é sempre uma obra de Cristo e da Igreja, no seu todo, não é só daqueles que têm aquele privilégio ou aquela graça de terem celebrado em pequenos grupos, capelas, seminários ou Institutos de Vida Consagrada. É também uma oportunidade única de formação litúrgica, de educação no verdadeiro sentido da nossa pertença e da participação nesta Boa Notícia, que é Cristo, e não querermos ficar de fora.

Poderá ficar de fora neste sentido de não participar plenamente, ativa e conscientemente, à parte daqueles que têm mais idade, algum problema de saúde, mas acreditamos que todas as condições e todos os mecanismos estão a ser pensados para que possa acontecer esta expressão da nossa fé, esperança e caridade em Jesus Cristo.

“A razão do adiamento é uma razão de fé ou uma razão social? Eis a questão”

Em relação aos casamentos, a melhor possibilidade é mesmo adiar?

A razão do adiamento é uma razão de fé ou uma razão social? Eis a questão. Nós, nas orientações, pusemos a perspetiva da celebração de todos os sacramentos e sacramentais.

O adiamento foi, se calhar, num momento crítico desta pandemia. Mesmo as orientações, dizem que é no contexto da pandemia, se ela passar em breve, como todos nós auguramos, isso deixa de ter sentido.

Mas eu conheço algumas pessoas que mantiveram a celebração do Batismo e do Matrimónio, eu próprio fui celebrar alguns desses momentos marcantes. Não deveremos nunca embarcar numa ansiedade ou no pânico, que depois nos limita e nos torna reféns de não sei bem o quê, desses tais outros deuses que podemos estar a criar.

É evidente que é necessária toda a prudência, a obediência às indicações e às orientações é para nós um caminho bom e seguro, mas o que diz respeito à vida sacramental e à participação, de modo especial, no sacramento dos sacramentos que é a Eucaristia, não pode, agora – neste tempo, depois desta tribulação, desta privação de mais de dois meses -, acontecer.

Acredita que são razões sociais que estão a levar aos adiamentos?

De muitos casos que conheço, é. O Batismo, a Primeira Comunhão, o Matrimónio, passaram a ser um ato social. Não sei, na formação das pessoas, o que é o mais importante, se a celebração da fé ou o ato social, com a boda associada e tudo aquilo que fomos construindo, ao longo do tempo.

É evidente que eu não critico isso, mas temos de colocar estas questões no sentido mais profundo da vida: por que é que eu vou adiar, por que é que eu tomo esta decisão?

Todos os sacramentos e sacramentais podem ser celebrados, seguindo estas linhas-guias, salvaguardando a saúde pública, o bem comum, a dignidade da pessoa humana.

Foto: Diocese de Bragança-Miranda

No geral, considera que os católicos perceberam o confinamento e a necessidade de não haver celebrações comunitárias? Ou poderá persistir um sentimento de incompreensão, por realizações que acabaram por contrariar as boas práticas?

Tudo isso é possível, acredito que este tempo de pandemia foi um grande teste à nossa fé. Acredito que todos nós passamos por isso, não sei se alguém dizer de outra maneira se está a falar a verdade completa. E é normal que haja estas reações, são compreensíveis, humanas, porque às vezes vemos só a nossa pequena comunidade, a nossa paróquia, mas aqui – como dizia o Papa Francisco – estamos todos na mesma barca. Ou nos salvamos todos, ou nos perdemos todos.

Nós quisemos optar por esta salvação de todos. E quisemos ir pelos caminhos da prudência, do especial cuidado de todos e de cada um, sobretudo dos mais frágeis, daqueles que estão mais em risco. Acredito, também, daquilo que me é dado experimentar, que as pessoas acataram, embora com um enorme sofrimento – a começar por nós, os pastores. Quem queria mais do que nós que as celebrações começassem mais cedo? Quem quer mais do que nós as festas, as procissões, toda a expressão da fé e da piedade? Agora, com os critérios da segurança, da saúde pública, da razão e não apenas da emoção.

A fé é o maior risco da vida. Celebrá-la com dignidade, com serenidade, é muito importante para nós. Queria deixar também esta palavra: isto é um tempo de passagem, estas orientações, estas linhas-guias, são para a salvaguarda. Viu-se em conjunto, nesta boa articulação, entre as autoridades civis, sanitárias, eclesiásticas, no seu todo, que este era o caminho e foi o discernimento possível.

Neste sofrimento, na cruz pela qual todos passamos, desejamos a cruz florida, que a Liturgia seja a expressão deste canto de amor, que seja este vento de Pentecostes – que não nos faze mudar de ideias nem de identidade, mas nos sacode, no sentido de nos confrontar nesta vida, em Cristo. Esse é o maior bem.

Ao mesmo tempo, aconteceram tantas coisas belas na Igreja, algumas que ainda se desconhecem, nas famílias, nas paróquias, nas unidades pastorais, nas dioceses – como dizia um autor italiano, Erri De Luca, neste tempo o conselho que ele dava aos jovens e aos mais velhos é: sê obsessivamente grato. Nós temos de estar gratos pelo dom da vida, pelo dom da fé, por tudo o que de belo acontece, mesmo em tempo de tribulação, mesmo em tempo de pandemia. Oxalá que esta pandemia seja contagiante daquilo mesmo que a Liturgia celebra, que é Cristo.

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Agência ECCLESIA

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