Quando o Papa João XXIII era Representante Pontifício na Turquia e na Grécia, uma grande fome e miséria atingiu a Grécia. O Núncio Apostólico conseguiu uma razoável oferta monetária que pensou aplicar nos ortodoxos mais pobres. Contudo dizia, se eles sabem que a oferta veio da Igreja católica através de mim, preferem morrer de fome a aceitá-la, porque na sua visão o que nós queremos é a conquista e o poder. Esta mentalidade anti-romana tem muitos antecedentes históricos, mas um domina todos os outros – a quarta cruzada que saqueou as riquezas de Constantinopola no ano de 1204. 2 – A guerra santa da 4ª cruzada foi um sacrilégio que terminou com a ruína da cidade de Constantinopola, confirmou a inimizade fundamental entre oriente e ocidente e envenenou todos os países ortodoxos, com as consequências que ainda hoje dilaceram a unidade da Igreja, tendo provocado uma fractura que o Concílio Vaticano II não conseguiu ainda hoje sanar. O Papa Inocêncio III aprovou a quarta cruzada para libertar o túmulo de Cristo em Jerusalém, mas a dependência do Doge de Veneza, que forneceu os barcos para transportar o exército cristão, levou à pilhagem da cidade de Constantinopola para pagar as despesas. Em lugar de atacar os infiéis muçulmanos que tomaram a cidade santa de Jerusalém, os cruzados pilaram, trucidaram e mataram outros cristãos. Contribuiu para esta chacina e espoliação da cidade, o pedido do jovem Alexis, filho do imperador Isaque que, deposto do trono por seu irmão, lhe arrancou os olhos e o colocou na prisão. Este jovem Alexis deslocou-se à Europa e prometeu riquezas incontáveis aos cruzados se eles libertassem seu pai, de forma a mais tarde herdar o trono. Convenceu, além disso, que os cristãos gregos se submeteriam à autoridade do Papa e que assim terminaria o cisma que afligia a cristandade desde há dois séculos. Quando os cruzados atacavam as muralhas da gloriosa cidade, o usurpador do trono fugiu e o imperador cego foi colocado no trono juntamente com seu filho. Alexis pediu aos venezianos para levantar o cerco à cidade; aqueles trazem dois tronos em ouro para pai e filho com a esperança do pagamento das despesas da expedição. Quando abrem os cofres do tesouro imperial encontram-no vazio! Os venezianos prometem vingar-se, o povo revolta-se com a venda das relíquias e ícones sagrados e o clero recusa submeter-se a Roma. A multidão invade o palácio imperial, depôe o imperador e o filho que são postos na prisão, exigem a saída dos estrangeiros e nomeiam um novo imperador que obriga Alexis a ingerir uma bebida envenenada antes de o estrangular com suas mãos. O velho imperador morreu de maus tratos na masmorra. Alexis Murzuphle, o novo imperador, não se sente obrigado a nenhum pagamento e não aceita unir-se a Roma. O Doge de Veneza convenceu os cruzados a atacarem a cidade e partilharem das suas riquezas, esperando a nomeação de um novo Patriarca e imperador latinos, convencendo que o massacre dos gregos era legítimo. Os venezianos entram na cidade, saqueiam, matam e incendeiam, roubam os cavalos de bronze, a pala de ouro e até o ícone da padroeira da cidade – a Nicopeia – que transportam para Veneza! Os cristãos do oriente nunca mais esqueceram a carnificina e não perdoam. A instalação de um império latino fantoche teve curta duração, mas teve a finalidade de impedir que o Papa excomungasse os cruzados, como já decidira fazer. O Papa Inocêncio III hesita, condenou a atitude dos cruzados, mas como os turcos atacavam a Europa não quis dividir a cristandade. O clero de Constantinopola reúne-se em Niceia e resiste às tentativas de reconciliação, até aos nossos dias. Duas línguas e duas culturas afrontavam-se, os gregos diziam que os latinos eram brutos e sem cultura, os cruzados desconfiam das subtilezas dos gregos que classificam de perfídia. Até ao ataque de Constantinopola, a violência verbal e a suspeita não constituíam motivo de ruptura. O saque da cidade fez explodir a ira acumulada ao longo dos séculos, transformou-se num autêntico cataclismo. Constantinopola, que «foi o esplendor de todas as cidades e a luz do mundo bebeu o cálice da cólera» (Olivier Clèment) destruiu-se a cultura e a ciência que de alguma forma, protegeu a civilização cristã do islamismo. 3 – O movimento ecuménico com as igrejas cristãs do Oriente, desde a Grécia até à Rússia, sente-se afectado pelo saque de Constantinopola. Os Papas, desde Paulo VI, têm-se humilhado, pedido perdão, ajoelhado perante patriarcas, mas a ferida ainda não sarou. As relações com os ortodoxos russos e o seu Patriarca estão ainda muito frias, os gestos proféticos de João Paulo II atenuaram mas não desfizeram o gelo que vem do passado, até porque não são todos discípulos do Patriarca Atenágoras. Quando visitamos a actual Istambul, o que farei dentro em breve, os guias turcos interpelam-nos sobre estes factos históricos instigados pelo clero ortodoxo, principalmente quando nos encontramos na mais bela basílica de todos os tempos – a Agia Sophia (Sabedoria Divina) levantada no século VI pelo imperador Justiniano. A queda de Constantinopola, no ano de 1543, conquistada por Ahmet II, dizem os gregos, é o resultado do saque da sua antiga cidade que nunca mais se restabeleceu das feridas de 1204. Os ortodoxos orientais têm dificuldade, apesar dos pedidos de perdão dos Papas, dos encontros ecuménicos e teológicos, de se libertarem da tentação de que o cristianismo ocidental é activismo, conquista, poder dos quais a tomada e saque de Constantinopola é o símbolo mais eloquente. Apesar de tudo, os caminhos para a unidade prosseguem para além de todas as fracturas abertas no coração dos ortodoxos e católicos. Os muros de separação não chegam ao Céu nem ao trono de Deus… Funchal, 02 de Setembro de 2007 †Teodoro de Faria Bispo Emérito do Funchal