Quaresma na Primavera

Ir. Marta Silva

Como é possível que haja tanta gente a gostar da Primavera? É incrível como se continua, nas escolas primárias por este país fora, a compor tantos textos poéticos sobre este tema.

A razão prática que mais rapidamente me ocorre para o facto da Quaresma calhar nesta altura é a magnífica oportunidade que as alergias nos dão para praticar a penitência. Não há dúvidas: os olhos inchados, as dificuldades em respirar e em alinhar dois pensamentos coerentes que um espirro não venha interromper obrigam a entrar, quer se queira quer não, por um caminho de despojo. E este, bem aproveitado, bem pode ser de libertação e de retorno gozoso à condição de criatura que topa com os seus limites.

A Primavera não é de fiar, porque pressagia em amanheceres gloriosos um consolo de calor que depois não cumpre. Atraiçoa pelas costas com constipações… e desconcerta‑nos com tantas promessas e possibilidades que deixa entrever! Há algum tempo que faça lembrar tanto um adolescente?

E no entanto, faz falta ter a adolescência a alguma distância para conseguir apreciar a sua beleza, para resgatar a ternura e destilar a generosidade exuberante dos inícios por entre o descontrole, o susto e o êxtase ao descobrir o próprio e incontrolado poder.

A vida que começa… mas ainda não. O frio que acaba… mas ainda não. Já… já? Ainda não! Por isso é preciso continuar a pedir, como no poema de Sophia de Mello Breyner, “que o Teu Reino antes do tempo venha” – com o melhor adjectivo alguma vez encontrado para qualificá‑la – “em Primavera feroz precipitado.”

A luz da Primavera é feroz, porque “há muitas coisas que eu não quero ver”. Mas não cega: é dura porque revela tudo cruamente. A Revelação acontece à nossa frente, e põe tudo à mostra de modo evidente… o que não quer dizer que o vejamos. Deve ser por isso que a meio da Quaresma lemos a passagem da cura do cego de nascença (Jo 9).

De repente, no bloco de terra gelada, há um risco de verde. Tenro, frágil, suave. E vence o bloco. Não digo “vencerá no outro mundo”, ou “acredito que no fundo, teve uma vitória moral”. Venceu mesmo, já, está aí diante do nosso nariz. A mais mínima flor do campo supera e cobre todos os horrores que se queiram enumerar. Não digo que uma flor equivale a dez bombas nucleares. Digo que qualquer pequeno traço de beleza é infinitamente mais poderoso que qualquer monstruosidade. Digo que um gesto de ternura, um grão de bem, tem mais peso que quaisquer males; digo que o ser anula o não ser; e digo que a vida resgata a morte. Já resgatou!

Quando as gemas de novos ramos querem rebentar sobre o tronco que, depois da poda, pouco passa de toco, lembram‑se bem do Inverno. Aliás, apoiam‑se e alimentam‑se dele, crescem sobre o antigo. A Nova Criação não é ex nihilo. O caminho para a Páscoa não apaga o meu passado. Aliás, é ele que me capacita para chegar aqui. O meu pecado é que me faz conhecer o perdão de Deus. Descubro quanto sou amada graças à minha culpa.

Claro que dói! Mas os espaços novos no coração são ganhos à força de o partir e rasgar. O facto de existir uma pena associada, é que faz com que algo valha a pena… por isso, como pensar em esquecer a pena que lhe deu o valor?

Quando as gemas de novos ramos querem rebentar sobre o tronco que, depois da poda, pouco passa de toco, não são outra vez os mesmos rebentos do ano passado. A Nova Criação, é mesmo nova. A árvore já não é a semente, é outra coisa. A irrepetibilidade de cada momento traz o selo da eternidade a que aponta.

Talvez o movimento de traslação à volta do Sol traga a Terra outra vez ao ponto de Primavera. Mas o círculo que descreve não está preso num samsara fatídico, a roda faz o carro avançar, e estamos sempre mais perto! Já… mas ainda não…

Eis que o Inverno já passou, a chuva parou e foi-se embora; despontam as flores na terra, chegou o tempo das canções, e a voz da rola já se ouve na nossa terra; a figueira faz brotar os seus figos e as vinhas floridas exalam perfume.. Levanta-te! Anda, vem daí, ó minha bela amada! (Cantar 2, 11-13)

Marta Silva, aci

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