O mais importante ao longo da Quaresma, é o murmúrio da Mistério Pascal: a passagem da morte à vida (o baptismo) e o contraste do sofrimento e da paz, em Jesus Cristo (martelos de violência e palavras de conforto: Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem). Daí, que o Concílio Vaticano II tenha recomendado maior assiduidade à Palavra de Deus e à Oração, para que o tal murmúrio ganhe ambiente e disposição: ambiente de contágio, na família e na comunidade; disposição interior, em vista da conversão que há-de manter a diferença entre os critérios da fé e os critérios do mundo. Dito por outras palavras: é preciso que o espírito do Evangelho perfume os ambientes da família e da comunidade, de molde a apetecer o essencial e a rejeitar a mediocridade. E uma e outras coisa precisam de ser iluminadas pela Palavra e pela Oração. · Vamos contemplar duas figuras, que nos levam à vida prática. A primeira, vem narrada nos Actos dos Apóstolos (Act. 8, 26-40); um funcionário etíope viera adorar o Senhor, a Jerusalém, e de volta à sua terra, ia lendo o profeta Isaías. O Diácono Filipe, tocado pelo Espírito, aproximou-se e explicou-lhe o conteúdo daquela passagem, sobre o Servo de Yavé. E o etíope, uma vez elucidado (evangelizado), mandou parar o carro onde seguia e pediu a Filipe: “Eis, aqui, água… Que impede que eu seja baptizado?” … E, depois de subir da água, prosseguiu viagem, levando consigo a alegria da Boa Nova e o entusiasmo de a comunicar! · A outra figura, é o bom ladrão (Lc. 23, 39-43): crucificado como Jesus, foi ouvindo a Sua oração e a unção (amor-perdão) das Suas palavras; e deixou-se render ao essencial. Por isso, pediu: “Lembra-se de mim no teu Reino” … E ouviu como resposta: “Hoje mesmo, estarás comigo no Paraíso”! · Da primeira narração, podemos concluir o seguinte: a Palavra de Deus ilumina as nossas faculdades e dispõe-nos a acolher a promessa do Reino. Por isso, gera alegria no coração e uma confiança que se expande até ao apostolado. Com efeito, ser baptizado é dizer ‘sim’ com a vida, à mensagem do Evangelho. E como o Evangelho é ‘fermento’ ser baptizado e ser apóstolo, correspondem-se. Quando, pois, o ‘bem’ se deixa corromper (no seio da família ou na cultura do tempo), é sinal de que os baptizados deixaram de ser apóstolos. E, então, desvanece-se a perspectiva do ‘mais’ e do ‘sempre’, e só o que dá lucro e é imediato, parece que tem valor. Daí, que o concílio insista na necessidade de contactar a Palavra de Deus, pois, a Palavra de Deus é Deus mesmo. E, ao longo da Quaresma, essa prática deve empenhar as famílias e as comunidades, a ponto de justificar uma vida sacramental mais intensa, que dê aos ambientes uma respiração sadia e aberta à transcendência. Doutro modo, o lucro do ‘apetece-me’ ou ‘dá prazer’, fica pela mediocridade do tempo, e provoca uma certa asfixia de tudo o que é ideal ou leva para além do mesmo tempo. Tal como o etíope, depois de baptizado, é preciso respirar e transpirar: respirar o ‘dom’ de Deus, através da graça sacramental que se saboreia com a vida, e transpirar o ‘testemunho’ que fala da alegria que se sente e inquieta, e da confiança que sugere cantar os salmos e dar graças a Deus. Ora, o panorama que se vive, por conta do relativismo, por um lado, e do fundamentalismo, por outro, exige saber dar espaço às convicções pessoais e aos valores que se defendem em família e em comunidade (bem diferentes das ideologias e das ganâncias). · Da segunda narração deve colher-se uma experiência de vida que aproveita o sofrimento e a provação, como adubo que fecunda a sementeira. Pois, se o bom ladrão cumpriu a sua pena, e se sentia culpado, não adivinhava o mesmo na pessoa Jesus. E, no entanto, ambos sofriam até à morte. O modo de sofrer, porém, era diferente: enquanto o ladrão desesperava por ver perdidos o tempo e a vida, Jesus confiava a Deus a Sua causa e, na “causa” de Jesus, cabiam todas as causas humanas, mesmo a do ladrão arrependido (“Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso!”) Que certeza… que confiança… que ressurreição! Agora, imaginemos outros sofrimentos impostos: a velhice… a doença… a humilhação… E outros voluntários: a reparação… o serviço… a consagração… Tudo pode se convertido em ‘mais valia’, desde que pousados, de vontade e com o coração, naquele oferecimento de Jesus, a partir da Cruz: “Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu espírito”! Por isso, o ódio, a violência e demais excessos… julgam ter a última palavra, mas nem a morte a lucrou, no martírio de Jesus. a última palavra pertence ao amor e Deus é amor!. · É neste âmbito que deve ter lugar o jejum quaresmal, a abstinência e outras mortificações… E bem assim, a caridade para com os doentes, os idosos e demais necessitados… Pois a sociedade hodierna bate palmas, com facilidade, à saúde e ao triunfo, mas desvaloriza aqueles que não podem, não rendem ou não conseguem. E, daí, a necessidade de uma lucidez adquirida através do contacto mais frequente com a Palavra de Deus e com a Oração. E isto sem complexos e com humildade. O tempo da Quaresma inspira-se no Mistério Pascal e, até lá, faz caminho de solidariedade com todos; mas joga na diferença, por conta da esperança que leva e do amor que testemunha. Aliás, a lei da Quaresma é esta: participamos dos sofrimentos de Cristo, para participarmos também da Sua glória’ (Rom. 8, 17). E se ela respira um carácter sacramental, é devido à purificação que Cristo opera na Sua Igreja. Aliás, a mesma Igreja, ao longo de todo o caminho quaresmal, tem consciência de que o próprio Cristo é quem dá eficácia à penitência dos seus fiéis. Penitência que assenta no carácter essencialmente baptismal, uma vez que a Igreja é comunidade pascal, porque é baptismal. · Como vemos, o tempo da Quaresma não desperdiça valores, antes aproveita o itinerário vivencial de cada pessoa, em todo o seu realismo, para dar a certeza de que Jesus assumiu esse mesmo itinerário como experiência da Sua vida redentora. E, assim, a catequese, nas suas diversas formas, há-de ajudar os fiéis a captar esta ‘inteligência espiritual’ da Economia da Salvação. Por outra parte, a Igreja procura reler e reviver, em cada ano, e ao longo do tempo da Quaresma, os grandes acontecimentos da história, no ‘hoje’ da sua Liturgia. Assim, o Mistério Pascal da morte e ressurreição de Jesus ilumina todos os momentos do passado, do presente e do futuro (“Cristo, ontem, hoje e sempre”) e atrai-nos, como vértice de plenitude. · Claro que nada disto obsta a que Jesus fosse tentado na montanha e gritasse de coração suplicante no Jardim das Oliveiras: “Pai afasta de Mim este cálice”! Mas logo acrescentou: “contudo, não se faça o que eu quero, mas o que Tu queres”. Por onde concluímos que a Igreja, diante das injustiças do mundo, não pode simplesmente resignar-se; antes, tenta modificá-las, unida a Cristo e, como Ele, cofia no Pai do céu o seu futuro e o futuro do mundo trespassado não de cravos mas de ‘amor’. Este é o segredo da Redenção; e assim, não se entende Cristo sem Cruz, mas a Cruz é transparente se deixa ver Cristo e até Ele conduz. · Entretanto, acompanhando nós, o percurso da Quaresma que vai de Quarta-feira de Cinzas até ao início do Tríduo Pascal, com coerência de fé, adquirimos um desejo incontido de entrar na vivência do Mistério Pascal com o coração aberto e os olhos cheios de luz: pois Cristo ressuscitado é a nossa esperança! E a Eucaristia, por sua vez, garante essa presença real e vive (presença sacramental), ao longo de todo o ano. Por isso, logo após a celebração do Domingo (da Páscoa), sai da Igreja e é levada pelas ruas, solenemente, como anúncio da Ressurreição do Senhor e para conforto dias Seus discípulos. · Será preciso recomendar aos cristãos que vivam com unção, gratidão e júbilo esta experiência litúrgica (que é única) e possam dizer como Maria Madalena e, depois, com os discípulos: Vimos o Senhor! Aleluia! + Augusto César