Padre Miguel Lopes Neto, Diocese do Algarve, membro RedAlfamed e Universidade de Huelva

A morte do Pe. Matteo Balzano, que recentemente pôs termo à própria vida, é mais do que uma tragédia pessoal. É um grito angustiado de alerta para a Igreja e para a sociedade. Quantos mais padres terão de morrer, para que nos questionemos a sério sobre a sua saúde mental? Quantos mais suicídios, quantas mais vidas destruídas pelo sofrimento, escondido atrás de uma batina, serão necessários para que se olhe de frente este problema? Quantos mais terão de viver no silêncio, as suas dores, ou ver o seu trabalho e a sua pessoa julgados nas redes sociais, sem qualquer espécie de pudor, ou pior ainda, sem a misericórdia que devia ser uma constante no olhar dos cristãos???…
O suicídio, seja ele imediato ou disfarçado de autodestruição lenta, através do álcool, das drogas ou do abuso de medicamentos, ou somente de uma tristeza sem tamanho, tem vindo a crescer entre o clero europeu e latino-americano. Não é de hoje que os padres vivem sob pressão constante: exigências pastorais intermináveis, reuniões, jornadas, atividades e mais atividades. Tudo parece girar à volta do fazer, do organizar, do planear. De um gerir, tantas vezes, de coisas que não se centram diretamente no seu múnus ou nas suas características pessoais. Porque os padres não saem de uma fábrica, padronizados e todos prontos a exercer as mesmas funções. E, pelo meio desse ativismo desenfreado, esquecemo-nos do essencial: a relação humana, o cuidado mútuo, a escuta verdadeira.
Os padres tornaram-se, muitas vezes, prisioneiros de um modelo de Igreja, no qual o sucesso se mede pelo número de fiéis na missa, pelo número de vocações no seminário, pela quantidade de eventos organizados. Não há espaço para a contemplação, para o silêncio, para a partilha honesta das alegrias e das dificuldades. Vive-se para responder a expectativas externas, para corresponder aos gostos e às esperanças de paroquianos (tantas vezes, eles mesmos, marcados pelas infelicidades e desequilíbrios provocados por expectativas pessoais e relacionais impossíveis de atingir) e superiores. Quem não encaixa no molde é criticado, comparado, julgado, empurrado para a solidão, sem olhar às consequências. Por todos os que o rodeiam e sejamos muito claros: isso implica os colegas, os paroquianos, a família…
Na minha opinião (e este é um artigo de opinião) este é sinal de um caminho de ausência de relações humanas saudáveis e desinteressadas, através do qual daríamos espaço ao outro para que desenvolvesse e fizesse morada esta terra com os seus hábitos, gostos e o insubstituível direito à vida privada e discreta. O exemplo de Jesus Cristo é-nos dado, nas narrativas dos Evangelhos, sobretudo, no que toca às relações humanas; não nos transmite, uns atrás outros, regras para desenvolver planos e atividades pastorais, reuniões, jornadas. E eu reflito: se não formos sinceros, saudáveis e transparentes nas nossas relações, servirmos de exemplo a quem? Nada, nem ninguém.
Os presbíteros, para além de terem direito a uma vida fora da estrutura orgânica eclesial, têm direito a terem defeitos. Estamos legitimados a errar, por sermos filhos amados de Deus e pecadores. Faz parte da nossa condição humana podermos falhar. Podemos ter gostos que os nossos paroquianos não apreciam e não entendem. Não temos o dever, que muitos paroquianos e cristãos acham aceitável, de que outros nos carreguem com as suas preferências, esperanças e expectativas.
Teremos de suportar o permanente peso das críticas, das comparações cruéis, da pressão que transformou o amor em julgamento? “Ele não sorri”; “Ele não quer envolver-se em determinadas ações” … Quantas vezes eu e outros presbíteros ouvimos estas palavras? Não podemos continuar a viver de aparência, nem a exigir perfeição dos outros, enquanto esquecemos de ver o coração por trás de cada gesto. Não são os atos vazios, a decoração da Igreja, as cerimónias marcadas por liturgias pesadas e sem falhas, que farão de um sacerdote uma verdadeira testemunha de Cristo. Será o apoio, a escuta, o acolhimento genuíno.
Não podemos esquecer que Judas Iscariotes traiu Jesus Cristo, porque Ele não correspondeu às suas preferências, esperanças e expectativas! Não podemos admitir cristãos com os mesmos propósitos de Judas Iscariotes. A perseguição mais difícil de suportar, infelizmente, já não vem do exterior. Habita entre nós. Apresenta-se disfarçada sob o tradicionalismo e o conservadorismo anacrónico e superficial, com posições de autoridade, sorrisos forçados e discursos grandiloquentes. O espaço para a verdadeira caridade quase desapareceu. Falta cuidado genuíno. O amor capaz de ouvir, receber e apoiar tornou-se raro, ou seja, no meio desta cultura de exigência e aparência, a verdadeira caridade — a que acolhe, escuta, ampara — vai desaparecendo.
Ainda há quem acredite que um padre deve ser infalível, imperturbável, um ‘super-homem’, protegido pela batina. Mas a realidade é outra: nós os padres somos homens, com fragilidades, limites, necessidades e desejos de pertença e compreensão. Somos, sobretudo, irmãos nossos na Fé, o nosso próximo. E o que nos é pedido que façamos ao próximo? Que o olhemos como um “rosto que incomoda maravilhosamente a vida” e que “encontramos ao longo do caminho e pelo qual nos deixamos mover e comover: mover dos nossos planos e prioridades e comover intimamente por aquilo que vive aquela pessoa, para lhe dar lugar e espaço na nossa caminhada”, pois “é um rosto que revela a nossa humanidade tantas vezes atribulada e ignorada” (Francisco, 2019[1]).
Ser padre não é sinónimo de suportar tudo até à exaustão. Ser ‘in persona Christi’ não é ser mártir de um sistema que não cuida dos seus. A saúde mental e emocional dos presbíteros devia ser uma prioridade absoluta, não um tema tabu ou secundário. Quando um padre pede ajuda, não pode ser encaminhado para um terapeuta apenas ‘da confiança da diocese’. O caminho para a cura exige liberdade, confiança e respeito pela intimidade de cada um.
Fingir que tudo está bem, enquanto tantos sofrem em silêncio, sem apoio genuíno, a bem de uma imagem que não nos cura, nem nos acolhe, mas que vê no ritual o caminho do tratamento, é a antítese do que é necessário, ou seja, o acolhimento.
A Igreja precisa urgentemente de reaprender a ser comunidade de cuidado, de proximidade, de compaixão ativa. Precisa de aceitar que os padres têm direito a errar, a ter interesses próprios, a viver uma vida privada e discreta. Só quando percebermos que são, antes de mais, pessoas e que, sendo-o, demonstrarão genuína capacidade de compreender e ajudar os demais, haverá possibilidade de erguer uma Igreja mais humana e menos letal para os seus.
E deixo um lamento final: sei que este texto tocará muitos positivamente, por sentirem exatamente o que acabo de referir, por perceberem que não estão sós. E é verdade, não estão e Deus vela por cada um. Mas outros porão em prática, muito rapidamente, o tal empenho em opinar negativamente, avaliando a verdade e a sinceridade como falhas que impedem alguém de ser um bom presbítero, ou um presbítero com o desejo profundo e honesto de servir Nosso Senhor. Disse-o: não somos moldados fixamente; não desejamos todos ter o mesmo tipo de missão. E com estes comportamentos estamos a perder os talentos de muitos que, não sendo obrigatoriamente párocos, por exemplo, poderão ser exemplares noutras funções, pois o que verdadeiramente importa no compromisso sacerdotal é ser uma testemunha ativa e competente naquilo que se sente como vocação e que não é somente a vida paroquial. Ninguém é mais fraco por não ser pároco; ao invés pode ser um bom docente, um bom diretor de um departamento, um bom músico, etc. e assim cumprirem “a missão de ensinar todos os povos e de pregar o Evangelho a toda a criatura, para que todos os homens pela fé, pelo batismo e pelo cumprimento dos mandamentos consigam a salvação” (cf. Mt 28, 18). Fica o lamento, mas também a dica e a deixa: quem tem estes problemas é capaz de muito e de bem fazer. Não esqueçam.
Quantos mais clérigos têm de se suicidar para que finalmente se mude de caminho?
[1] Francisco (2019). Angelus. Visita ao Lar do Bom Samaritano, Jornada Mundial da Juventude, no Panamá. Vatican News, https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-01/papa-francisco-panama-jmj-2019-discurso-lar.html.
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