A incerteza do mar e a certeza da fé na comunidade de Caxinas
A ondulação do mar marca a vida dos pescadores de Caxinas, em Vila do Conde. Há décadas era a força dos braços que quebrava as ondas nos barcos de boca aberta. O mar é o mesmo, mas hoje são os motores que rasgam o caminho rumo à faina. As mudanças nas embarcações trouxeram a audácia de tentar novos mares e novos pescados, mas também por isso, trouxeram maiores tragédias e mais lágrimas.
Numa comunidade piscatória como Caxinas todos são pescadores na hora do luto. Casa sim, casa não conheceram-se lágrimas por alguém que ficou no mar. É no mar que os pescadores encontram o sustento, mas é também ele que em dia de tempestade tira a vida em terra que vive para a pesca.
Marisa Frasco conheceu a realidade do luto muito recentemente. As palavras e o negro carregado que veste não escondem a saudade do seu marido, José Pereira dos Santos, maquinista de uma embarcação. Depois de 15 dias ao largo dos Açores na pesca do espadarte, os tripulantes do «Fascínios do Mar» foram ao porto de Vigo descarregar o pescado. Na viagem de regresso a carrinha onde seguiam nove tripulantes despistou-se. O marido de Marisa foi uma das cinco vítimas mortais.
“O meu marido dizia-me muitas vezes que gostava do que fazia, mas temia muito o mar, por causa dos perigos. Dizia-me muitas vezes que se pudesse fazer o mesmo em terra preferia, porque tinha muito medo de morrer com a boca cheia de água”.
Este é um medo recorrente nos pescadores em Caxinas. Sameiro Graça recorda o medo que o seu irmão pescador tinha, mas foi o mar que o sepultou há três anos. Já perdeu, além de um irmão, também um tio e um primo. Vive com a dor da ausência mas nunca conheceu a revolta.
“Eu nunca me revoltei. Pelo contrário, eu sentia que precisava da força da oração, precisa da força de Deus na minha vida”.
É a fé que conforta quando as palavras dos homens se gastam. Marisa Frasco recorda a fé inabalável do marido e é aí que encontra forças para continuar a viver. “O meu marido era muito temente a Deus e acreditava na vida depois da morte. Ele dizia que falava com ele. Há dias descobri no meio de uns livros, poemas que ele escrevia onde falava de Deus, que tanto amava e ansiava. Parece que pressentia”.
É também a fé que conforta a mãe de José Pereira dos Santos. O dia em que soube da morte do filho, diz Maria Isabel Santos, foi o dia em que entregou o seu filho a outra mãe. “Senti que Deus estava ali, me estava a dar força e me dizia que enquanto ele tinha sido vivo tinha sido meu, agora que tinha partido já não era”.
É com saudade mas também com serenidade que assume que é Deus quem a conforta. “A dor que sinto, vem do amor. Porque não há amor sem haver dor. É isto que me conforta e fortalece a minha confiança em Deus”.
A certeza dos perigos do mar e a certeza de uma fé inabalável convivem no caxineiro, quer fique em terra ou esteja no barco. A cada entrada ou saída da barra, o pescador benze-se porque sabe “que sai para uma faina que pode sempre ser surpreendente”, conta o padre Domingos de Araújo, pároco há 34 anos em Caxinas.
Há muito que se habituou a ver os rituais dos pescadores. “Eles sabem que sair da barra ou entrar na barra é importante. Quando vão para o alto mar sabem que isso pode trazer dificuldades e quando entram, sabem que entram em porto seguro. Por isso invocam o Senhor à saída e agradecem ao Senhor à entrada da barra”.
Homem da terra, mas filho de pescador, o padre Domingos tem memórias da sua infância marcadas por redes e sargaço. Conhece bem o amor e o temor ao mar. “Costumo dizer que os pescadores não têm medo do mar mas têm temor, um grande respeito que os faz olhar para Deus numa perspectiva de pai e de filhos”.
A devoção a Deus e aos santos, “em especial aos que estão ligados ao mar, é muito forte num povo que parte de uma realidade concreta, dura e perigosa que é a vida do mar”.
Em 34 anos o padre Domingos enterrou 92 pescadores. “São homens a mais”, assume prontamente. Também prontas são as palavras de conforto do pároco quando o luto dá à costa.
“Não me abstraindo da realidade concreta que é a dor profunda da perda, procuro valorizar a vida e o acontecimento nobre que é uma pessoa morrer a trabalhar”.
[[i,d,1595,]]Quando em terra se pressentem os perigos do mar, as mulheres rumam à igreja de Nosso Senhor dos Navegantes, construída em forma de barco, para em conjunto rezar e procurar conforto.
É também nas dificuldades económicas que a solidariedade se faz presente. O padre Domingos Araújo diz que Caxinas não é terra de “gente rica, mas aqui ninguém passa fome”.
“A paróquia é uma família num sentido global. Quando morre alguém no mar, ligado ao mar ou motivado pelo mar, toda a comunidade de 18 mil pessoas se une e é uma família única”, garante.
A morte de um pescador toca várias famílias em Caxinas. “Há sempre uma relação entre as pessoas, seja familiar ou afectiva, e ninguém fica insensível”, traduz o padre Domingos.
Apesar das tragédias que a terra vai conhecendo, é necessário colocar os alimentos na mesa. Por isso, os barcos continuam a sair para a faina, num movimento contínuo como as ondas do mar…
Dizem
Que o amor
Se encontra nas coisas
Mais simples.
Então olho para a
Vida e analiso entre
O real e o imaginário.
Ai a vejo a passar
Pelo tempo…
… questiono se o
Amor não passa de simples
Palavras ou simples actos
Se a morte nos deixa
Ausentes de quem amamos
Então a vida não
Tem fundamento e o
Amor não faz
Qualquer sentido
Porque vivemos no
Ausente constante…
José Pereira dos Santos
PR/LS