Estamos em pleno mês de novembro. Nesta altura, vemos a natureza a despir-se da vitalidade e da beleza da primavera e da pujança do estio. Lembra-nos que, neste mundo, tudo muda e tem um fim, a vida é caduca e transitória, decrépita e passageira. Um dia todos vamos partir e vamos desenvencilhar-nos das vaidades, afetos, apegos e sonhos da nossa aventura terrena. E o que é que devemos esperar? A Igreja ensina-nos os novíssimos do homem, as últimas realidades que vamos encontrar no fim ou depois desta vida: morte, juízo, inferno, paraíso.
Quanto à morte, temos poucas dúvidas, ou nenhumas. Quanto ao juízo diante de Deus, será inevitável. A vida não poderá deixar de ter uma justa avaliação e se confrontar com a sua grandeza ou miséria, pelo que se fez ou deixou de se fazer. Quanto ao resto, a ver vamos. Todo o crente espera entrar no céu, o “lugar dos doces”, como me dizia um colega mais velho, marcado pelos tempos de carestia e pela catequese dos tenros anos da vida. Dizia-lhe a catequista: “Quem se portar bem e viver uma vida santa vai para o céu, onde vai ter quantos doces quiser”, doces que só viam uma ou duas vezes ao longo do ano. Uma imagem oportuna para incutir nas crianças que no céu faremos a mais bela experiência de vida, em plena comunhão com Deus, já que seremos semelhantes a Ele. Quanto ao inferno, a Igreja ensina-nos que é uma “possibilidade”. Mas não o inferno que exageradamente se andou para aí a ensinar e a pregar. Nas palavras do teólogo Joseph Moingt, “entrar na morte, mais nada.” Ou seja, ficar para sempre reduzido a pó, mergulhar no mar do esquecimento, afastado de tudo e de todos, a perdição eterna. O mesmo teólogo não deixa de questionar os exageros que se pregaram por aí sobre o inferno, em profunda contradição com a mensagem evangélica: “Porque se há-de pensar uma morte que se prolongaria por suplícios e chamas, e imaginar ainda por cima um Deus que se comprazeria em que os seus inimigos ardessem? Entram na morte definitiva, no não-ser. São «riscados do livro da Vida», como diz a Escritura.”
Pelo meio, temos o purgatório, o momento da purificação, a que se dá mais atenção neste mês de novembro, denominado o «mês das almas». Um mês para todas as famílias recordarem vivamente e fortalecerem a sua comunhão com os seus familiares defuntos, pela oração, e de os cristãos rezarem uns pelos outros e por todos os defuntos. Como vemos, duas ideias ou verdades estão presentes e enformam todo o mês de novembro: a comunhão dos santos e o purgatório. Pela profunda solidariedade que existe entre todos os membros da Igreja em Cristo, os nossos atos de piedade e oração feitos com amor, de modo especial a Eucaristia, auxiliam a purificação dos nossos irmãos que se encontram no momento do purgatório, para poderem aceder à visão de Deus, entenda-se, para poderem mergulhar no imenso oceano do amor de Deus e comungar totalmente a vida de Deus pela eternidade, a plenitude da vida.
Ainda me recordo de algumas pregações que escutei nos infantes e juvenis anos da vida, onde se procurava incutir medo e se fazia uma descrição terrível e sanguinária da situação das almas, qual repórter a quem foi dado ver os insondáveis mistérios do outro mundo, e vou percebendo, como pároco, que estas crenças espúrias e pavorosas ainda estão muito enraizadas no pensamento de muitos cristãos. Será oportuno, por isso, que se faça uma purificação do purgatório. E é bom que a Igreja se preste a renovar a sua doutrina e o seu discurso, acabando de vez com o Deus terrível e vingativo que pregou e alimentou na sua doutrina, o Deus todo-poderoso que tem prazer em esmagar o ser humano ou em vê-lo sofrer. Já o tem feito e é bom que o continue a fazer. A visão do purgatório que a velha praxis catequética nos ensinava é insustentável. Aliás, a divisão do destino final do homem em «três andares» (céu, purgatório e inferno) sempre gerou um mar de perplexidades e, inclusive, contribuiu para o anedotário coletivo. As pinturas que vemos em muitos dos nossos altares e alminhas das encruzilhadas não deixam de nos colocar muitas perguntas e suscitar muita confusão. O purgatório não é um lugar de sofrimento físico e não é um lugar para castigar as almas, com tormentos e sevícias horríveis de toda a espécie.
O Catecismo da Igreja Católica afirma: «O purgatório é o estado dos que morrem na amizade de Deus, mas, embora seguros da sua salvação eterna, precisam ainda de purificação para entrar na alegria de Deus». Após a morte, por força de uma humanidade ainda pobre ou inacabada, de algum pecado e imperfeição que levamos em nós, Deus submete-nos a um momento de purificação, que não é só “limpar-nos” do pecado, mas também capacitar-nos para O amarmos como Ele nos ama. Quando contemplarmos a grandeza e a beleza do amor de Deus e o quanto Ele nos ama e percebermos o quanto não correspondemos a esse amor na vida, por causa da mediocridade e mesquinhez do nosso amor, sentiremos uma grande “dor” no coração. Podíamos ter sido muito melhores do que aquilo que fomos, e tudo por culpa nossa. O sofrimento será pelo facto de não nos vermos em comunhão total de vida e de amor com Deus e com os outros. Encontraremos lá um fogo, mas um fogo que abrasa e salva, e não que queima para castigar ou fustigar.
O Papa Bento XVI, na sua Encíclica «Salvos pela Esperança», descreve isto de forma magistral: «Alguns teólogos recentes são de parecer que o fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador. O encontro com Ele é o acto decisivo do Juízo. Ante o seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos. As coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação. O seu olhar, o toque do seu coração cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa «como pelo fogo». Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos no final sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo totalmente de Deus. Deste modo, torna-se evidente também a compenetração entre justiça e graça: o nosso modo de viver não é irrelevante, mas a nossa sujeira não nos mancha para sempre, se ao menos continuámos inclinados para Cristo, para a verdade e para o amor».
Quanto aos que põem em causa a existência do momento do purgatório, no livro, Diálogos Sobre a Fé, Joseph Ratzinger, sublinhando que o purgatório cedo foi objeto de fé por parte dos cristãos, afirma: “Se o purgatório não existisse, seria preciso inventá-lo, porque poucas coisas são tão espontâneas, humanas e universalmente difundidas, em qualquer tempo, em todas as culturas, do que a oração pelos próprios defuntos queridos. (…) Orar pelos próprios mortos é um movimento espontâneo demais para ser sufocado; e é um testemunho belíssimo de solidariedade, de amor, de auxílio, que ultrapassa as barreiras da morte. Da minha recordação ou do meu esquecimento depende um pouco a felicidade ou a infelicidade de quem me foi caro e passou agora para a outra margem, mas não deixa de ter necessidade do meu amor”.