Proteção de Menores: «Duração do abuso é uma variável que tem um impacto muito significativo nos efeitos sobre a pessoa» – Rute Agulhas

O Grupo Vita vai apresentar a 21 de janeiro o seu terceiro relatório de atividades. Este grupo de acompanhamento das situações de violência sexual de crianças e adultos vulneráveis, no contexto da Igreja Católica portuguesa, divulga ainda três estudos de investigação. Rute Agulhas, coordenadora do Vita, é convidada da Renascença e da Agência ECCLESIA

Foto: Lusa

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Começaria por lhe pedir um ponto de situação quanto ao número de contactos e pedidos de compensação…

Bem, até o momento o Grupo Vita recebeu contactos de 118 pessoas, na sua esmagadora maioria pessoas adultas – temos uma média etária de 54 anos. Destas 118 pessoas, o contacto foi feito sobretudo pelo telefone, também por email ou pelo formulário do nosso site. Algumas delas querem só desabafar, partilhar, quebrar o segredo que em média dura 40 anos – esses são os nossos dados.

Temos um universo de 68 pessoas que quiseram estar connosco e que pediram um atendimento, quase sempre presencial, por vezes online – também depende de onde a pessoa reside, até fora do país temos pessoas -, para podermos aprofundar aqui um bocadinho a situação. São muitas vezes pessoas que pedem apoio psicológico, apoio psiquiátrico, ou às vezes não sabem muito bem se precisam, se querem. Há aqui alguma ambivalência, às vezes, relativamente a estes processos…

Destas 68, tivemos algumas situações que não se enquadravam bem: nem eram crianças, nem eram adultos vulneráveis. Poderia ter havido uma violação do sexto mandamento: pessoas adultas que, já com outra capacidade de consentimento, teriam tido um envolvimento com alguém da Igreja.

Na prática, temos um universo de 62 pessoas – e essa caracterização vai ser feita de forma bastante detalhada agora neste terceiro relatório de atividades, do ponto de vista da caracterização sociodemográfica, do tipo de situações que reportam, onde é que aconteciam, como é que se sentiam, que impacto é que estas situações tiveram. Uma conclusão importante que nós já tínhamos, de alguma forma, percebido um bocadinho essa tendência no segundo relatório, portanto, quando a amostra era um bocadinho ainda mais pequena…

 

O relatório de 2024?

O de junho, sim. Portanto, nestes seis meses, com os novos casos, e agora com esta nova análise estatística, fica mais claro que, de facto, a duração do abuso é uma variável que tem um impacto muito significativo nos efeitos sobre a pessoa. Portanto, no fundo, é algo que a literatura nos diz há muito tempo, não é?

Quanto maior a duração, há a partir da maior o impacto, enfim, o impacto depende de uma multiplicidade de variáveis, não é linear, isto não é nenhuma tabela de Excel em que a gente, não é, diga, “olha, tem isto ou não tem isto”, logo o impacto é maior ou menor, mas há, de facto, um conjunto de critérios que devem ser tidos em conta. Isto até para fazer a ponte para os pedidos de compensação financeira: neste momento temos 61 pedidos, 40 por parte de homens. Temos sempre aqui, também já na amostra geral, uma percentagem sempre maior de pessoas do sexo masculino.

 

O que está em consonância com estudos que foram feitos noutros países…

É, exatamente, exatamente. As décadas, na nossa amostra, em que há uma maior prevalência destas situações abusivas, são as décadas de 60 e as décadas de 80 – 80 especialmente com vítimas de rapazes – e, portanto, muitas vezes também associados ao contexto do seminário, enfim, o que nos ajuda aqui um pouco a perceber esta assimetria em termos de género, que contraria os dados da sociedade civil, se sairmos deste contexto.

Estes 61 pedidos, na maior parte, são pessoas que nós já conhecemos, portanto, são pessoas que já falaram connosco previamente. Temos 15 situações novas, ou seja, 15 pessoas que nos contactaram desde que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e a Conferência dos Institutos Religiosas de Portugal (CIRP) falaram desta possibilidade e que nos contactaram única e exclusivamente para esse efeito.

 

O Vita defendia que não tinha material suficiente para validar algumas denúncias, justificando assim o facto de pedir às vítimas que contassem de novo a sua história – depois pediu à Conferência Bispal Portuguesa alterações ao regulamento. Quais eram? Foram todas atendidas nas adendas anunciadas, julgo que em novembro?

Sim. Antes disso, deixe-me explicar que as pessoas que já falaram connosco previamente ou com alguma entidade eclesiástica, e em que esse relato está documentado, não têm de o repetir. Não têm. Curiosamente, nós já fizemos oito atendimentos, no âmbito do processo das compensações, já foram atendidas oito pessoas e destas oito, a maioria quer falar novamente sobre o abuso e nós dizemos: “não, mas não tem de falar, porque já temos este relato, lembra-se? Já falou comigo ou já falou com a minha colega, temos aqui tudo escrito”. Muitas vezes as pessoas dizem: “não, mas eu preciso de falar, sinto-me aliviado”.

 

Mas também há a queixa contrária, das pessoas que não querem repetir…

Mas se já disseram, não têm de repetir. Se já disseram, se já relataram, seja junto de nós, seja por exemplo de uma comissão diocesana ou de um instituto religioso, isso está documentado.

 

Sim, o problema que tem existido e que tem sido comentado e até mediaticamente algumas trocas de posições tem a ver com o material que foi recolhido pela Comissão Independente.

Sim, mas esse nós não temos acesso absolutamente a nenhum…

 

Do que parece, portanto, aí nesse caso, dado que o âmbito do estudo era específico, sob anonimato e que o material estava destinado à destruição, tanto quanto foi dado a entender, neste caso os relatos têm de ser apresentados de novo…

Têm, porque se uma pessoa chega ao pé de mim ou de nós, da Comissão de Instrução e diz: “mas eu já contei tudo no formulário da Comissão Independente, ou eu até reuni com um elemento X da Comissão Independente e contei toda a minha situação”. Mas eu não sei, nós não temos isso em lado nenhum, nós não temos qualquer informação sobre isso. Portanto, é nestas situações, que ainda assim são residuais, devo dizer, que a pessoa de facto tem de nos contar aquilo que se passou, quando é que se passou, com quem é que se passou, porque nós naturalmente não sabemos…

Todas as outras pessoas que já relataram previamente, que são a maioria, portanto, só 15 de facto, é que nós nunca tínhamos visto antes e, portanto, vieram agora ter connosco com esse objetivo, as pessoas só relatam se quiserem. E como digo, até eu própria fiquei espantada, nestes oito atendimentos que já fizemos entre dezembro e agora início de janeiro, eu dizia “não, mas não tenho que dizer de novo, eu já sei, já contou, temos aqui o documento”… “não, mas eu quero falar, liberta-me, alivia-me”. Portanto, houve de facto aqui algumas pessoas que sentiram isso.

O feedback que temos até o momento destas oito pessoas que entrevistamos, sendo que temos mais agendadas e naturalmente todas as outras agora vão ser convocadas para breve, é um feedback muito, muito positivo.

 

O regulamento prevê a constituição de dois grupos, um para analisar os pedidos e outro para definir valores. O ponto de situação do grupo para definir valores já está criado?

Que eu saiba não, porque se estivesse eu teria de saber, é suposto o Grupo VITA indicar duas pessoas para esse mesmo grupo.

 

Ainda é prematuro dizer-se ou pensar-se quando é que as primeiras compensações financeiras vão ser pagas?

É, é prematuro porque nós estamos a fazer tudo – o Grupo VITA, a equipa de Coordenação Nacional que integra esta comissão de instrução ou alguém designado pelo instituto religioso -, estamos a tentar, já fizemos avaliação de oito pessoas, que nos próximos meses consigamos agendar todas as outras, sendo certo que há aqui também uma variável importante: somos nós que vamos ter com as pessoas, a sua zona de residência e portanto temos imensas deslocações ao norte do país, até às ilhas, exatamente estamos a tentar que as pessoas desloquem o menos possível. Portanto, estamos a fazer esses agendamentos com a celeridade que é possível, em termos de agenda, e eu acredito que quando tivermos talvez um número mais significativo, não vamos esperar pelas 61, que, entretanto, podem ser mais, estarem todas avaliadas para se constituir o segundo grupo.

 

Para não se correr risco do processo se arrastar indefinidamente…

Exatamente. A minha expectativa, aquilo que eu gostaria que acontecesse era que, em meados de março, abril, já tivéssemos um número suficiente de processos analisados por esta primeira comissão de instrução, permitindo o início de funções do segundo grupo. Houve aqui um prolongamento do prazo, essa foi uma das propostas que nós propusemos ao Regulamento em termos de alteração, a nossa proposta era até junho, ficou em março, mas ficou em março com uma condição clara que vem explícita no Regulamento e já vinha antes: não é uma parede, não é uma barreira o 31 de março. Se alguém nos contactar em abril ou maio, claramente que essas pessoas vão ser atendidas, na mesma.

 

Aquilo que vimos noutros países é que estas situações se vão arrastar no tempo, ou seja, vai haver pessoas que, no futuro, vão falar pela primeira vez…

Claro que sim, claro que sim. Nós sabemos muitas vezes também, e há pessoas que nos dizem isso agora, que ainda não sabem se querem pedir, que estão ambivalentes, já tive pessoas que disseram que não e depois a seguir dizem que sim, e já tive o contrário, já tive uma pessoa agendada que me liga a dizer “eu afinal não quero” e depois “afinal já quero”. Portanto, há uma ambivalência que é natural, que é expectável e, portanto, é natural que, em três meses que faltam, possa haver pessoas que não sintam ainda a capacidade de dar esse passo e, por isso, essa porta não se fecha a 31 de março.

Foi um entendimento, nós tínhamos pedido até junho, enfim, ficou até março, mas ficou aqui este entendimento de que é uma porta que não se fecha, como é óbvio, e é muito importante passar esta mensagem, porque uma revelação deste tipo de situações, sendo que da nossa amostra 40% das pessoas estão a revelar pela primeira vez na vida, agora, depois de uma média de 43 anos em silêncio, não é fácil, não é?

E, portanto, não é só porque a data no calendário vai avançando, que o 31 de março se aproxima, que as pessoas necessariamente conseguem ter essa capacidade, essa coragem e essa confiança também que é preciso ter no sistema e no grupo.

 

Aqui é uma questão que eu queria esclarecer, que tem a ver também com esta receção de testemunhas e de relatos. Há alegadas vítimas que dizem que o Grupo Vita não validou os seus testemunhos e que, por isso, não são incluídas nas compensações financeiras. Que casos são estes?

Foi apenas um caso que foi mediatizado, sim, e que foi devidamente fundamentada essa situação. Aliás, o relatório que foi feito até apareceu no ecrã da televisão, não é? Portanto, a pessoa partilhou com o órgão de comunicação social em causa. Portanto, sim, houve uma avaliação e foi entendimento de que aquela situação não preenchia os critérios. Foi uma apenas até o momento.

 

No primeiro ano de funcionamento, e de acordo com o relatório que foi apresentado em 2024, o Grupo Vita tinha recebido 105 queixas. No início da nossa conversa disse que neste momento serão 118. São casos atuais ou já prescritos, a maioria deles?

A maior parte deles são casos prescritos, porque já aconteceram há muito tempo. São pessoas adultas, temos uma média etária de 50 anos, mas temos aqui uma variabilidade que vai até aos 70 anos de idade. Temos menos processos, de facto muito poucos, com situações mais recentes. Isto acho que deve exigir ou implicar-nos aqui uma reflexão, não é? Portanto, se calhar não estamos ainda a conseguir chegar, e daí a importância da prevenção que falaremos mais adiante, às camadas mais jovens, às situações que estejam a acontecer agora ou que tenham acontecido mais recentemente. Portanto, situações que ainda não teriam prescrito mais recentes, tivemos cerca de duas ou três, que foram naturalmente de imediato sinalizadas às entidades competentes, à Polícia Judiciária e ao Ministério Público, como fazemos sempre, desde que o suspeito esteja vivo, naturalmente, mesmo quando prescreveu o crime.

O que nós tivemos foram duas situações importantes, que eu acho que é relevante: duas situações em que prescreveu do ponto de vista penal, civil, mas em que Roma derrogou essa prescrição. Ou seja, a Doutrina da Fé entendeu que aquelas situações deveriam passar por um tribunal eclesiástico. E temos essas duas situações na nossa amostra. Portanto, situações acontecidas há muitos anos, uma delas já se concluiu, a outra ainda está a decorrer, mas que tivemos aqui um processo de tribunal eclesiástico por decisão da Doutrina da Fé, o que eu acho que é muito importante, porque é algo que no nosso Código Civil e Penal não é possível acontecer.

 

Mas que é possível no direito canónico…

E é possível no direito canónico.

 

Também por iniciativa do Papa Francisco. Falando no Papa, ele acaba de lançar uma autobiografia em que dedica uma longa reflexão a esta questão dos abusos sexuais, e em que diz claramente: aquilo que as vítimas têm de saber é que o Papa está do seu lado. Por outro lado, tem-se passado uma ideia, não sei se é real, de resistência por parte de alguns bispos portugueses. Como é que tem sido a colaboração com os responsáveis diocesanos?

A esmagadora maioria das pessoas, das vítimas que nos contactam, acreditam que o Papa está do seu lado. Não questionam isso. Acham, muitas delas, é que ele está sozinho, a remar contra uma maré muito gigante.

Quando falamos dos bispos, e não só dos bispos, também dos superiores gerais dos institutos religiosos, não podemos ficar só nas dioceses, muitas vítimas sentem que da parte dos bispos ou dos superiores gerais não há essa mesma proteção, não há essa mesma, enfim, esta empatia, esta aliança. O que é que tem acontecido nalgumas situações? Algumas vítimas têm-nos pedido para falar com os bispos, para serem recebidas, e a mesma coisa aconteceu há duas semanas com uma superiora geral de uma congregação feminina. E o feedback que temos das pessoas que falam com os bispos, de uma maneira geral, claro que há uma ou duas exceções, é de que, “afinal, senti empatia, senti que aquela pessoa está ali, de facto, alinhada com as diretrizes que vêm de Roma e com aquilo que o Papa Francisco defende”. Portanto, eu diria que este é um caminho. Naturalmente que não há da parte de todos os bispos e da parte de todos os superiores gerais a mesma disponibilidade, a mesma empatia, a mesma abertura.

Nós já funcionámos há um ano e meio, o Grupo Vita, e, portanto, olhando para trás e fazendo aqui um balanço deste ano e meio, eu diria que isto tem sido um caminho gradual. A título de exemplo, numa fase inicial, muitas dioceses e institutos religiosos diziam que se calhar não precisavam de formação, porque já tinham tido algures no tempo por parte da entidade A ou B, ou porque não tinham casos, e, portanto, se calhar não precisavam de repensar estas questões… à data de hoje, 50% das dioceses já nos pediram ajuda do ponto de vista da formação para padres, diáconos, catequistas, professores de educação moral e religiosa católica (EMRC), agentes pastorais, etc.

E começamos a sentir este mesmo começo de pedidos por parte dos institutos religiosos. Os catequistas e os professores de EMRC, vou pô-los aqui um bocadinho à parte, porque desde o início mostraram uma disponibilidade muito grande, através do Secretariado Nacional da Educação Cristã (SNEC).

 

E tem havido já um trabalho com o SNEC?

Já, já, sim. Portanto, desde o início o SNEC se mostrou muito, muito recetivo, e, portanto, eu diria que os catequistas e os professores de EMRC são aqui um grupo particularmente sensível, motivado e a querer perceber como é que podem fazer.

 

Já que fala do contexto escolar, doutora Rute, o Grupo Vita recebeu pedidos de ajuda de situações ocorridas noutros contextos, que não o eclesial?

Sim, sim, sim. Tivemos até o momento, se não estou em erro, 18 pedidos de ajuda de situações que não tinham a ver com o contexto da Igreja. Destes 18, a maior parte eram situações de abuso, mas acontecidas noutros contextos, nomeadamente na família, por vizinhos, por tios, portanto, contexto intrafamiliar, que nós, naturalmente, depois encaminhamos para as entidades competentes.

Temos também pessoas que nos procuram com situações de violência doméstica, por exemplo, que também temos depois de procurar a estrutura de apoio mais indicada. Portanto, há pessoas que ainda às vezes pensam no Grupo Vita como uma porta também para outro tipo de situações e nós aí fazemos o devido encaminhamento. Acho que foram 18, se não estou em erro, até o momento.

 

O Grupo Vita tem acompanhado as situações em que os alegados abusadores foram suspensos e os processos arquivados? É uma questão delicada, porque as pessoas voltam ativo. Como é que se gere toda esta situação?

É difícil de gerir, é difícil de gerir porque para as pessoas, não é, para as vítimas, e mesmo para a sociedade, há muitas vezes esta sensação de impunidade, enfim, de que afinal isto se calhar não é assim tão rigoroso como deveria ser. Eu tento às vezes que algumas vítimas percebam a diferença entre haver a convicção, isto também acontece nos nossos tribunais civis, não é, às vezes há a convicção de que o abuso possa ter acontecido, mas não se conseguiu fazer prova e na dúvida, pro reu. E isto às vezes é mesmo muito difícil de gerir para uma vítima, e estou a pensar nas vítimas todas que acompanhei ao longo da minha vida profissional fora do contexto da igreja, e na igreja é especialmente difícil… há sempre esta sensação, ou seja, quando num tribunal civil há um processo que é arquivado, o juiz tem a convicção, mas não conseguiu fazer prova e arquiva, ninguém diz “o juiz está do lado do agressor, o juiz está a proteger o agressor”. Consegue-se perceber que, se calhar efetivamente, não se conseguiu produzir prova. Na Igreja a reação imediata é “estão a encobrir, estão a proteger”.

 

E daí haver mais dificuldade no seu regresso à atividade?

Sim, estes padres que depois foram arquivados os processos e que voltaram…

 

Só para ficar claro, obviamente os processos iniciam-se seguindo regras que, neste momento são muito rígidas, e algumas delas implicam que o processo inicie mesmo sem um conjunto significativo de provas e o arquivamento também pode ser na sequência da inocência…

Exatamente, pode ser na sequência da inocência, de não se ter conseguido fazer prova porque se passaram muitos anos e, até prova em contrário, as pessoas num Estado de Direito têm de ser consideradas dessa forma. Mas, de facto, é difícil para as vítimas lidar com esta situação.

 

São perceções diferentes…

Sim, que nós tentamos ajudar a integrar e a perceberem que efetivamente só o facto de Roma ter derrogado a prescrição, por exemplo, já é um sinal positivo: merece ser investigado, merece ser avaliado, mesmo que depois seja arquivado.

 

Nós sabemos que muitos abusos estão associados aos abusos de poder. Com o trabalho feito nos últimos anos, notam-se mudanças a este nível?

Não sei como responder a essa pergunta porque aquilo que eu sinto… as pessoas mais velhas, quando olham para trás, associam sempre a figura da pessoa abusadora, na maior parte sacerdotes, como alguém divino. Portanto, quando alguém é endeusado, naturalmente a assimetria de poder é muito grande.

De facto, são dois patamares completamente diferentes. Eu diria que hoje, pela forma como a religião é vivida, já não há esta assimetria tão grande, mas continua sempre a haver uma assimetria de poder a partir do momento em que um é adulto e outro é criança ou jovem, ou em que um é adulto e outro é um adulto vulnerável. Portanto, essa assimetria de poder existe sempre.

Eu diria que, ao longo das décadas, pensando aqui um bocadinho na forma como a própria religião tem vindo a ser integrada pelas pessoas, hoje a figura do padre já não é vista da mesma maneira como era, se calhar, há 40 anos. Mas continua a haver sempre uma assimetria de poder e por isso é tão importante nós empoderarmos as vítimas, para que de facto sintam que há aqui também este caminho de empoderamento e de escuta, e trabalhamos com as instituições eclesiásticas – seja uma escola, seja uma paróquia, seja um agrupamento de escuteiros, etc. -, no sentido de se criarem estruturas e uma cultura de cuidado e de proteção, códigos de conduta, regras de conduta que sejam trabalhadas, formação para todos estes intervenientes. Portanto, é também nesta perspetiva que é importante, mas a assimetria de poder mantém-se.

 

Das conclusões que também vão ser apresentadas dos três estudos, algumas irão nesse sentido. O que é que nos pode já adiantar?

Sim, nós iniciamos há um ano e meio cinco estudos, três estão concluídos e vão ser apresentados agora, e outros dois, que são os programas de prevenção primária, serão apresentados em maio.

Temos aqui dois conjuntos de estudos um bocadinho diferentes. Um primeiro estudo que nós fizemos foi tentar perceber a vivência do celibato por parte de religiosos e religiosas.

Tivemos uma amostra com homens e com mulheres. Uma das conclusões desse estudo é que, de facto, parece haver aqui um maior compromisso com o celibato e este parece ser vivido de uma forma mais satisfatória, quanto mais as práticas espirituais são regulares e quanto mais há um compromisso com a espiritualidade. E encontramos uma diferença de género: de acordo com a nossa amostra, que até não é assim muito grande e, portanto, precisa de ser aprofundada em estudos futuros, parece haver mais desafios para os homens do que para as mulheres. Pronto, isto significa, primeiro que temos de perceber melhor estas diferenças, porque é que homens e mulheres vivem o celibato de forma diferente e dá-nos também indicação de que a vivência do celibato será também mais fácil e mais integradora quanto melhor o bem-estar psicológico da pessoa. E, portanto, uma das sugestões que nós fazemos em termos de implicação futura deste estudo é de que, de facto, deveria ser normalizado nos programas de formação religiosa, nos seminários, quando as pessoas estão a fazer esse caminho, o suporte psicológico ser uma componente normalizada, transversal, para que as pessoas, de facto, possam também elaborar este processo.

Esta foi uma primeira área que nós quisemos perceber. Porquê? Porque as questões do celibato são sempre muito colocadas…

 

Sim, quando se fala de abusos, há sempre a questão se isso está ligado ou não ao celibato…

Exatamente. E, de facto, não há literatura que corrobore isso. Aliás, sabemos que a maior parte das situações abusivas acontecem na família e não são pessoas celibatárias. Portanto, quisemos começar, isto foi apenas um primeiro estudo, começar a estudar as questões do celibato.

Depois temos dois outros estudos, deste conjunto de três, um com catequistas e um com professores de Educação Moral e Religiosa Católica, porque eles são, acima de tudo, os principais agentes a utilizar ou a poder utilizar recursos preventivos junto das crianças e dos jovens. Os catequistas, com os seus grupos de catequizandos, e os professores nas escolas, sejam católicas ou públicas, enfim, mas estão lá professores de EMRC. E quisemos perceber como é que estes dois grupos se sentem perante este fenómeno, perante esta problemática, que competência é que acham que têm ou não para a trabalhar, se já o fazem, se não o fazem, que tipo de crenças é que têm que podem facilitar ou dificultar a aplicação de programas de prevenção.

 

Mas do que nos disse ainda há pouco, houve desde muito cedo uma disponibilidade de participar nesta dinâmica…

Foi desde logo, sim, aqui temos amostras grandes, porque temos aqui uma disponibilidade muito grande por parte destes dois grupos-alvo. O que é que nós percebemos com estes estudos? Que, de facto, os professores de EMRC sentem-se mais confortáveis do que os catequistas a abordar este tema, que já o vão fazendo, de alguma forma, apesar de muito pontual, porque aconteceu uma notícia, ou porque alguém faz um comentário na aula, portanto, não há um trabalho diário. Sentem que, havendo um programa, havendo um recurso, facilmente o podem integrar no seu trabalho diário, sentem essa necessidade. Naturalmente, encontramos também alguns mitos, algumas crenças disfuncionais, mas isso também não estranhamos que as existam, porque elas são transversais à nossa sociedade, não é? Mas sentimos que há uma maior disponibilidade e para os professores parece que é mais fácil integrar isto. Os catequistas sentem-se menos à vontade, ou seja, reconhecem que sabem pouco sobre o tema, precisam claramente de mais formação, têm mais dificuldade em perceber como é que podem integrar os temas da prevenção com os temas do catecismo, e queixam-se também de alguma falta de tempo. Por isso, sugerem sempre, o que faz todo sentido, que a prevenção tem de ser sistémica, tem de ser abrangente, não pode ser só na catequese ou na aula de Educação Moral, tem de ser com a família, tem de ser na própria escola, no próprio contexto onde as crianças estão. Portanto, no fundo, estes dois estudos vêm-nos dizer que é preciso continuar a investir na formação destas pessoas para se sentirem mais competentes, mais capazes, para poderem depois utilizar os recursos que estamos a produzir. Os outros dois estudos que serão apresentados em mais, são os dois programas de prevenção primária, um para crianças dos 6 aos 9 anos e outro para crianças jovens dos 10 aos 14, que é um jogo digital. Aquilo que os professores e os catequistas nos dizem é que “é ótimo que haja recursos, porque eu às vezes quero abordar o tema e não sei como”.

Às vezes também surge, e surgiram nestes dois estudos com professores e catequistas, um bocadinho uma ideia errada do que é que é prevenção. E confunde-se a prevenção com duas ideias, que é com a ideologia de género e com a ideia de que se vai falar de sexo para as crianças e se vai falar com uma linguagem sexualmente explícita.

Estas duas ideias estão erradas, portanto falar de prevenção é falar da promoção de comportamentos saudáveis, de relações saudáveis com os outros, é falar de aprender a diferença entre segredos seguros e inseguros, aprender a pedir ajuda, aprender que não tem de obedecer sempre ao adulto só porque é um adulto ou só porque é uma figura de autoridade, aprender, no fundo, a proteger aquele que é o maior tesouro, que é o corpo. Isto naturalmente com materiais lúdicos, que estão a ser vistos por pessoas da Igreja, que nós chamamos os embaixadores, que estão a rever estes materiais e, portanto, quando apresentarmos estes materiais em maio para crianças de 1.º ciclo e para 10-14 anos, serão materiais ajustados à idade, com uma linguagem adequada à idade. Há aqui este contexto da Igreja, que “embrulha”estes materiais, mas no fundo os grandes temas são os temas que a literatura nos diz, já há mais de 60 anos, que devem ser trabalhados com as crianças e que, de facto, não causam estresse, não causam alarmismo, não causam ansiedade.

 

Queria confrontá-la com declarações de há pouco tempo da presidente da Comissão Nacional da Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, que admitiu que nada se fez relativamente ao estudo que o governo anterior, do PS, tinha prometido sobre abusos nos diferentes contextos de socialização das crianças. Não há vontade de estudar aprofundadamente este flagelo social?

Pois, é verdade, nada se fez e esse estudo não foi feito. Nós próprios também já o dissemos, em vários quadrantes, que era preciso fazer na sociedade civil aquilo que está a ser feito na Igreja, perceber os abusos intrafamiliares, extrafamiliares, nas escolas, no mundo online, no desporto, ou seja, temos todo um conjunto de contextos onde os abusos acontecem. Não temos, em Portugal, um verdadeiro estudo de prevalência, o que nós temos são os novos casos que todos os anos vão sendo conhecidos, com a casuística que vai sendo partilhada pela Polícia Judiciária. Eu não sei se não é uma questão de vontade ou não, mas o que posso dizer é que, e isso também é público, recentemente houve uma disponibilização do Ministro da Educação, da parte da própria DGE, para pensar sobre isto.

Acho que não me compete a mim dizer se há ou não vontade política, eu diria que é importante repensar as estratégias políticas a este nível. Por exemplo, está agora a acabar a estratégia de promoção dos Direitos da Criança:  o que é que foi feito em concreto, que medidas é que foram operacionalizadas? Às vezes está tudo muito bem definido na lei, as diretrizes são muito claras, a legislação está bem pensada, mas depois, de facto, não é operacionalizado. Eu concordo que, de facto, o estudo já deveria ter sido feito há muito tempo.

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