Proliferação das armas, marginalidade social e desafios da inclusão social

Comunicação do Pe. Valentim Gonçalves na 3ª sessão da audição pública promovida pela CNJP. A questão central sobre a qual me debruçarei brevemente consiste em saber se a proliferação de armas constitui factor de marginalidade social, ou se, ao contrário é a marginalidade social que provoca uma apetência pelas armas. A questão apresenta-se como a nunca resolvida questão de saber se primeiro existiu o ovo ou a galinha. Mas, para o caso, e de uma perspectiva pragmática, também isso não é relevante. Na minha perspectiva, a proliferação de armas poderá estar ligada em primeiro lugar a poderosos interesses de ordem económica ou política e, dentro de uma hierarquia de poder, ligada a pequenos interesses económicos; num segundo momento, encontrará um ninho seguro em meios socialmente excluídos e marginalizados, acabando estes dois campos por se influenciarem mutuamente. Onde a exclusão existe, aí se encontra o meio adequado para proliferarem as armas, porque em qualquer meio social onde não impere a força da razão, terá de imperar a razão da força, que encontra nas armas um meio adequado à conquista de posições. Se repararmos na geografia da marginalização social, ou estivermos atentos ao que dela se vai dizendo na comunicação social, verificamos que as armas fazem parte do seu enquadramento. Recordemos o que há dias se escreveu nos jornais e se viu nas televisões sobre um acontecimento tão simples e rotineiro como foi a demolição de algumas barracas não incluídas no PER: nos principais diários da capital, a relevância foi dada à violência e a uns tiros disparados nas redondezas. Creio que é um dado indiscutível. Assim o dizem muitos dos que lá moram; assim o atestam os acontecimentos: É por esses lados que está o enquadramento de notícias que prenderam a atenção do público. Pensando num dos bairros em que eu trabalho, várias vezes ele foi notícia pelos piores motivos: – “Pelo menos cinco pessoas ficaram ontem feridas na Quinta do Mocho, em Loures, quando o ocupante de um veículo em circulação começou a disparar uma caçadeira” (Cm 14/02/05). – Ainda mais recentemente um dos seus jovens terminou a sua vida por um motivo fútil; porque uma arma estava presente, o pior aconteceu; o pior por causa de uma fútil a história: uma jovem, numa festa de aniversário, acompanhada por um vizinho, dançou com um jovem do outro bairro, o que não agradou muito ao primeiro, o qual, como resposta, barafustou e danificou o carro do segundo; sem mais, este pegou da arma e disparou uns tiros, tendo abatido o primeiro e mandado para o hospital, em estado de coma, um terceiro. – No passado mês de Março seguimos a história do “tubarão” de tráfico de armas, Marcos Fernandes, que à queima roupa matou dois agentes, às 2.10 h. da manhã, respondendo ao pedido de identificação feito por eles, despejando sobre eles, em simultâneo, dois carregadores da sua potente pistola Glok (28 balas ao todo). E a geografia das suas actividades identificava-se com áreas degradadas. – Mas já antes, no dia 04/02/02, tivemos o caso do assassínio de Felisberto Silva, com seis disparos, na Damaia. – No dia 17/02/05, o agente da PSP Ireneu Dinis foi abatido com arma automática, durante o cumprimento da sua missão, na Cova da Moura. – No dia 25/02/05, na Quinta do Mocho, seis pessoas foram atingidas por tiros disparados do interior de um carro em andamento. – Uns dias mais tarde, na Apelação, um jovem de 14 anos foi baleado junto a um café. – Recordo o caso de Osvaldo Vaz, o conhecido Celé, procurado por tráfico de droga, por homicídio de um polícia holandês, e por duas fugas da prisão, que foi morto numa aparatosa \operação montada pela PSP nos arredores de Lisboa, durante a qual ele resistiu com armas sofisticadas até ser abatido. A sua história de vida cruza bairros degradados. Mas, para além destes casos, que mereceram um lugar de destaque na comunicação social, temos as ocorrências do dia a dia registadas pela polícia nos autos levantados nas urgências dos hospitais, fruto de quezílias entre indivíduos ou grupos, de questões completamente desproporcionadas aos efeitos que produziram. Por quê tudo isto ? Qual a ligação entre estes acontecimentos e o espaço sociológico em que se verificam ? Na minha opinião isto tem a ver com a questão inicial. A exclusão social alimenta-se naturalmente da utilização ilegal das armas e a promoção do negócio das armas alimenta consolida a exclusão. Como motivos podem apontar-se aqueles que comummente todos aceitam (e que acabámos de escutar na conferência da Prof. Isabel Guerra), como o frágil acesso às oportunidades de bem-estar, a fragilização no acesso à literacia, o baixo nível económico, fruto de fraca qualificação laboral e de salários de miséria, etc. Eu deter-me-ei nalguns aspectos que considero menos debatidos: – A constatação de que o Estado pouco mais faz do que contentar-se com afirmar de que todos têm iguais direitos, mas na prática deixando a cada um entregue a si mesmo, o que equivale a deixar a sociedade entregue à lei do mais forte. (Quando falo do Estado refiro-me a todo um corpo que, embora a diferentes níveis encontre pessoas interessadas, competentes e cumpridoras, como todo, por falta de coordenação, falha no objectivo final. Tenha-se presente a frequente mudança de programa com a mudança de um ministro ou secretário de Estado). – A constatação de que o Estado não é garante dos direitos para todos e, quando há conflito entre eles, prevalecem geralmente os interesses dos mais fortes… não obviamente por má conduto dos que aplicam a lei, mas por causa do sistema que, sobretudo no campo da justiça, é demasiadamente formal e acaba por inviabilizar a realização da justiça material. E quando alguém, consciente da sua fragilidade, vê que a única defesa que tem é a que ele encontrar em si mesmo, então vale-se do que estiver ao seu alcance, até porque muitas vezes, ainda que fracassando, pouco tem a perder. Vivendo há mais de quinze anos com alguma proximidade das populações marginalizadas, tenho a sensação de que a justiça foi sempre a filha pobre dos valores defendidos pelo estado: conheci e acompanhei (por vezes no tribunal, como testemunha) algumas vítimas de violência, nomeadamente doméstica. Fiquei com a impressão de que o crime compensou; conheço mulheres que perderam o direito à casa, porque perante a violência do companheiro, tiveram que fugir para casa de familiares ou amigos e, embora tivessem dado conhecimento às autoridades, não conseguiram encontrar a autoridade competente para assumir o caso; quando a mãe recorda momentos em que o companheiro, não só a maltratava, mas também a ameaçava com uma arma branca em frente da filha de tenra idade a contemplar essa cena, penso nessa filha de ambos que agora precisa de acompanhamento psicológico; e na altura como provar e por que investigar o caso ? – Continuo a realçar a ausência do Estado no apoio que deve dar à família na educação, não só na escola, mas também e antes de tudo no seio da própria família, não se substituindo à família, mas, em casos de verdadeira necessidade, colaborando para encontrar outros caminhos que não o que habitualmente não aponta, mas que, virando as contas, coloca à sua frente: a marginalidade e a criminalidade. Há casos em que os pais se demitem das suas responsabilidades; há outros em que não o fazem, mas que necessitam absolutamente do apoio efectivo do Estado; digo efectivo, porque formal não lhes falta: é preencher questionários, responder a inquéritos, efectuar diligências numa outra instância que não esta; entretanto passam-se meses, talvez anos, a não ser que o miúdo ou a miúda façam alguma de tal modo feia que não haja outro jeito, e então ordena-se o internamento coercivo ou a prisão, se entretanto tiver atingido a idade; resolve-se formalmente a questão, já todos podem respirar e o problema permanece. – A acrescentar a estes factores, temos um outro que considera de extrema importância: o crescimento para a vida numa grande ausência de valores. Ainda que os pais os possuam, porque a vida que levam não lhes permite ter o mínimo de tempo para conviver com os filhos, acontece que eles vão crescendo sem essa bagagem fundamental para que a pessoa nela possa encontrar os instrumentos para gerir a sua vida por algo que ultrapassa a reacção instintiva; quem não aprendeu a conviver no respeito, na tolerância, na solidariedade e em tudo o mais que quisermos, ao primeiro confronto com o diferente vai reagir defendendo-se pelo ataque: quantas vezes não vemos as crianças com os seus golpes de artes marciais como marca típica do seu relacionamento com as outras o que aprendem muito facilmente também através dos filmes e dos jogos de computador; e por vezes, até o próprio vocabulário deixa atordoados os ouvidos de quem viveu de outra maneira, como me contava há tempos uma religiosa que ficou surpreendida com a linguagem de uma criança que mal deixara de usar fraldas e no entanto a obrigou a actualizar o seu vocabulário pelos vistos obsoleto. Crescendo assim não me admiro quando um jovem, em jeito de premonição, diz à mãe, arrasada e impotente perante a sua rebeldia: “olha que acontece muitas vezes que os filhos matam a mãe”; e ele já o tentara uma vez com gás. E, para uma mãe denunciar o próprio filho, é preciso muita coragem; é preciso saber que não está só; é preciso contar com a autoridade que, se for chamada, deve levar as coisas até ao fim… e isso normalmente não acontece. E neste contexto a violência de sentimentos, de atitudes contra tudo e contra todos, transforma-se também numa violência escudada nas armas que, entretanto, encontram nesses meios, um espaço vantajoso para serem traficadas e usadas. Elas andam nas mãos de muita gente e até entre os adolescentes já se verificam sessões de treino. E o protótipo, o modelo do herói vai-se padronizando: ser ágil, ligeiro de dedo, para se ir tornando um comandante do planeta. Recordo o estudo do P. Vicente França, que trabalha numa favela do Brasil e que veio defender a sua tese de mestrado numa das nossas universidades, versando sobre a violência nas favelas. Diz ele que, cada mês, no mínimo, celebra duas missas de sétimo dia por jovens entre os 15 e os 20 anos assassinados; nalguns meses chega a cinco casos. No “Diário de Pernambuco”, referindo-se ao seu trabalho, pude ler que é impressionante notar a percepção dos meninos e meninas dos 10 aos 13 anos; um deles diz: “Me dá uma raiva quando vejo os colegas brigando com faca ou estilete. Isso é muito perigoso.” Outro guarda o desejo de vingança revelando ao padre que se tivesse um revólver mataria quem matou seu pai.” Igualmente impressionante é ver como os miúdos desenham a escola: aparece um edifício, não rodeado de passarinhos, malmequeres ou corações, mas sim de facas, revolveres e granadas. Voltando à questão de saber porque é que em meios marginalizados proliferam as armas estou convencido de que quando o Estado se demite da sua autoridade de proteger os cidadãos, então são estes que vão procurar encontrar a maneira de se protegerem ou mesmo de se anteciparem. Vem-me à memória o relato de uma senhora que, vivendo com os filhos num bairro degradado, era como tal considerada disponível por uma série de homens que não deixavam de rondar a sua casa. Para se ver livre do incómodo e da imagem que tal situação poderia criar, penalizadora para ela e para os filhos, resolveu arranjar uma arma: dirigiu-se a um “aldrabão” que lhe vendeu uma a preço de ouro (relativamente às suas posses), e porque não foi só para decoração, carregou-a e disparou um tiro para os lados da casa de um dos importunadores; foi o suficiente para os fazer recolher ao seu canto. Outra autoridade ela não encontraria que fosse tão eficaz. Isto faz-me lembrar o que se passou no Brasil no passado dia 23 de Outubro, com o referendo sobre a proibição da venda livre de armas. O resultado surpreendeu e não surpreendeu. Surpreendeu porque, no seguimento de uma sondagem previa-se uma percentagem de 70% contra a sua liberalização e o resultado foi o contrário: À pergunta: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil ?” tivemos as respostas: 63,94 % votaram Não (à proibição) 36,06 % votaram Sim 21,84 % abstiveram-se. Pouco antes do referendo a conhecida revista “Veja” na sua edição de 05.10.05 introduzia um “Especial – referendo da Fumaça” indicando logo na introdução o que desejava: “Veja acredita que a atitude que melhor serve aos interesses dos seus leitores e do país é incentivar a rejeição da proposta de proibição”. E apresenta 7 razões para votar “Não” à consulta que pretende desarmar a população e fortalecer o contrabando de armas e o arsenal dos bandidos”. Aqui está o grande equívoco da questão. Obviamente que estes resultados exigem uma leitura cuidadosa e uma interpretação criteriosa. Temos que ter presente estarmos a falar de um país onde, em cada quinze minutos, uma pessoa morre por uso de armas; num país onde, no ano de 2003, foram baleadas fatalmente 39.325 pessoas (falando só das que foram do conhecimento oficial), o que significa que em cada dia foram mortas 107 pessoas. Temos que ter, além disso, outros importantes factores de análise que não podemos abordar aqui, mas que apenas aponto sinteticamente: – o fácil equívoco na interpretação da pergunta, nomeadamente por parte da população menos instruída. Quem é que estava tão seguro ao responder sabendo que o seu “não” queria significar “sim” ao comércio de armas ? – os interesses que estavam por detrás da campanha pró-armamentista, sabendo que o Brasil é um grande produtor de armas, situação em que o objectivo é produzir mais para vender mais. – o apoio da comunicação social ao pró-armamentismo, sabendo que, quando uma causa é por ela apoiada, normalmente acaba por vencer. Mas, deixando esta análise, eu concluo por aquilo que já referi em relação ao nosso caso: quando o Estado deixa de ser o garante do respeito pelos direitos dos cidadãos (de todos e não só de alguns – e aqui entraríamos num outro factor de interesse e que se chama a corrupção) e do respeito pelas correspondentes obrigações, então a sociedade deixa de ser o espaço de cidadãos, para se tornar uma selva, onde impera a lei do mais forte e não a força da lei. Obviamente que, nesta referência ao caso brasileiro, há uma diferença entre o Brasil e Portugal; há uma diferença entre a média de criminalidade do nosso país e a média nos países europeia. Mas, porque as manifestações de violência vão subindo entre nós, impõe-se travar essa tendência, antes que seja tarde de mais. E parece que a nossa sociedade ainda não despertou para o perigo. Por isso aqui viemos todos nós. Pe. Valentim Gonçalves

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