Prisões: Reintegração social deve começar «no momento em que o recluso entra» – coordenador nacional da Pastoral Penitenciária

Restrições da pandemia podem obrigar a mudanças na forma como se presta a assistência espiritual nas cadeias, mas a aposta vai continuar a ser a formação dos voluntários

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: RR/Joana Bougard

Foi recentemente autorizada a retoma da assistência espiritual e religiosa nas prisões, assim como as atividades de voluntariado. Era um momento muito aguardado?

Era Tremendamente aguardado pelos assistentes espirituais religiosos, pelas equipas de colaboradores e voluntários, e também pelos próprios reclusos, e creio também por grande parte das estruturas ligadas à direção geral.

 

Durante a pandemia foi possível aos capelães irem dando resposta às situações mais urgentes e mais graves?

De uma forma ordinária não. Ou seja, o regime de contenção de presenças externas ao ambiente prisional foi levado de uma forma muito estrita, o que é compreensível, porque a qualidade física dos nossos estabelecimentos prisionais é muito limitada, as cadeias não estavam preparadas para esta realidade, ainda temos celas coletivas, portanto, qualquer realidade externa ao estabelecimento prisional faz perigar, de uma forma muito drástica, a saúde dos reclusos. E temos uma transversalidade muito grande entre os estabelecimentos prisionais, para além dos jovens reclusos também temos os idosos reclusos, e obviamente que esta natureza obrigou a ter esta limitação, que foi custosa para todos, mas particularmente para os reclusos.

 

Mas, houve possibilidade de fazer contactos pontuais, por outras vias?

Houve a possibilidade clássica, que habita sempre, que é a carta, a caneta e o papel. O telefone, quando devidamente autorizado, e nalgumas cadeias onde havia possibilidades telemáticas, também se usaram.

 

Estamos a falar especificamente do contacto com os capelães. E com os voluntários?

Com os voluntários praticamente nada, a não ser a realidade escrita. Houve também um segundo trabalho que acho importante sublinhar, que foi o trabalho de segunda linha que os colaboradores e voluntários foram fazendo, acorrendo a algumas necessidades imediatas, como produtos de limpeza e higiene pessoal, às vezes alguma roupa. E falo disto porquê, será que nas cadeias não há roupa? As cadeias têm roupa, mas alguns reclusos vêm de meios muito empobrecidos, ou vêm do aeroporto diretamente, praticamente sem nada, e muitas vezes as próprias estruturas não têm rapidez suficiente para possibilitar, e nesse aspeto recorre-se bastante aos grupos de voluntariado e de ação sociocaritativa.

 

E junto das famílias dos reclusos?

Também, mas aí não estamos sujeitos à disciplina prisional, é mais fácil, mesmo tendo em conta a situação que estávamos a viver no país.

 

Esta experiência da pandemia vai implicar mudanças na forma como se presta assistência religiosa nas prisões?

Creio que sim, algumas mudanças. Em primeiro lugar porque foram quase dois anos de uma ausência efetiva. As cadeias, na sua generalidade, têm penas longas, mas temos estabelecimentos prisionais de passagem curta, e nesses praticamente vai ter de se fazer tudo a partir do zero. Penso que é aquilo que me vai acontecer quando começar a fazer a visita ao Estabelecimento Prisional de Caxias, onde grande parte dos rapazes já não serão os mesmos, porque é uma cadeia habitualmente de homens preventivos.

Penso que esta situação de ficarmos privados vai-nos obrigar a ter que reorganizar a nossa forma de estar, até com a direção, com as estruturas funcionais dentro do estabelecimento prisional, com outra lógica ou com outros recursos, em particular o recurso telemático.

 

Há uma forma tradicional de falar dos voluntários e colaboradores, que são os ‘visitadores’. Ouvi o testemunho de alguém que me dizia que agora estava quase ‘sem chão’, durante mais de 20 anos este foi o seu serviço pastoral, a pastoral penitenciária, e agora ficou sem saber o que fazer. Para quem assegura este tipo de voluntariado, a pandemia também deixou marcas?

Deixou muitas marcas. Nós tínhamos – e temos, espero eu – um conjunto muito grande de voluntários que fizeram da visita aos reclusos a sua causa de vida, e não ter este tempo e este espaço faz passar aqui quase uma ideia de tempo perdido, ou de realidade perdida. Estou em crer que muitos deles retomarão. Obviamente que esta retoma vai ser gradual. O início está a ser feito com muita delicadeza e cuidado, está-se a contar que a vacina resulte em termos comunitários para haver uma normalidade no regresso, mas entretanto todas as estruturas estão inseguras quanto a uma normalização da relação.

Estes voluntários e visitadores em alguns dos estabelecimentos prisionais já estão a começar a ser chamados, convocados pelas equipas. Não podem aparecer no número em que apareciam, vão aparecendo dois, três, particularmente aqueles que já estão vacinados, e começam também, de uma forma muito gradual, a contactar com os reclusos em pequenos grupos, para depois, espero eu, no próximo ano pastoral já estarmos todos em pleno.

 

A experiência da pandemia foi naturalmente muito marcante para os reclusos. A população prisional esteve esquecida, em sua opinião?

Ela não esteve esquecida… vamos ver, esquecida por quem? Obviamente que pela Pastoral Prisional não esteve esquecida, pela Igreja não esteve esquecida. Tivemos algumas reuniões com a Direção-Geral (da Reinserção e Serviços Prisionais) para saber como lidar com esta situação, percebemos e acatamos algumas das debilidades e das contingências que os serviços prisionais têm na sua própria estrutura, a situação não é desejável por ninguém.

Na vida dos reclusos sempre que privamos este processo de entrada de uma realidade que funciona em termos de gratuidade fazemos decrescer a qualidade da própria vida dentro do estabelecimento prisional. Porque, como sabem, o espaço prisional é um espaço que não se constrói numa base de confiança, pelo contrário, vive assente numa desconfiança permanente, e a presença da Igreja, a presença de realidades associativas naquela comunidade permite atenuar alguns processos desumanizantes que são normais. Digo ‘normais’, não deveriam ser, mas numa forma prática são normais, porque estamos num contexto em que ninguém quer estar, nem o recluso, nem o guarda, nem quem lá está.

 

A pergunta ia mais no sentido de esta não ter sido uma prioridade na opinião pública…

Obviamente que não foi, mas aqui temos um problema estrutural em termos culturais. Nunca esqueço esta premissa, porque essa é a nossa luta de fundo: o alterar o olhar que a própria sociedade tem sobre o que é a prisão, o seu fenómeno, e depois as suas soluções.

Todos temos o discurso relativamente facilitador de dizer ‘bom, os estabelecimentos prisionais, humanisticamente falando, são lugares onde se deve fazer a reintegração’, mas efetivamente clamamos e bradamos sempre pelo aumento das penas, acusamos os estabelecimentos prisionais de não serem vindicativos o suficiente, e já estamos aí a bramir outra vez para que haja um aumento de penas para um conjunto de crimes. Crimes graves, com certeza, mas esse aumento vai pôr em causa este princípio: queremos as cadeias apenas para fazer depósito de uma humanidade em que já deixámos de acreditar? Ou queremos, de facto, ter aqui um sistema social que ainda possa oferecer um tempo, que não deixando de ser punição, pretende ser um tempo de purificação ou de transformação? Aliás, o Papa Francisco é muito claro nesse horizonte.

 

Foto: RR/Joana Bougard

Há uma semana o nosso convidado (desta entrevista) falava também na reinserção social dos reclusos dizendo que, tal como existe, não previne que reincidam no crime. O que é que em sua opinião seria prioritário em termos de reinserção social dos reclusos?

O que é que se deve ir mudando… Tem de se começar a reintegração social a partir do momento em que o recluso entra no estabelecimento prisional, não posso dizer que posso trabalhar numa reintegração social no momento em que a porta do estabelecimento prisional se abre para a liberdade do recluso…

Não vos consigo dar números, mas uma maioria apreciável dos nossos reclusos são homens que nunca chegaram a ficar devidamente capacitados para uma vida em sociedade, e a tendência, se estes instrumentos não são adquiridos, é que voltem. Depois temos também uma margem muito grande de reclusos e reclusas que não se conseguem reconciliar com a própria sociedade, e uma entrada não reconciliada será sempre uma entrada violenta e agressiva.

O padre João Gonçalves (anterior coordenador nacional da Pastoral Penitenciária, que faleceu a 8 de dezembro de 2020) dizia sempre que devíamos começar ainda antes de eles entrarem, começar com uma prevenção clara e evidente, sem vergonha nem receio, que as próprias comunidades paroquiais e os movimentos podem interpretar com bastante facilidade, e depois, a partir do momento em que se entra, um trabalho interdisciplinar que tem que envolver os vários intérpretes, particularmente o recluso, quiçá também a própria vítima. Porque não podemos esquecer toda uma lesão que é provocada, e que para termos uma reconciliação é necessário que, de facto, todas estas realidades possam ser envolvidas neste processo.

 

Há algumas experiências de escolas de reconciliação, mas em larga escala provavelmente é mais difícil…

Estes processos não pode ser industrializados.

 

Falamos ainda há pouco da dimensão ‘vingativa’ da pena. É preciso sensibilizar a sociedade em geral para a importância da reinserção?

É, muito. Não sei se é pela crise individualista a que as sociedades ocidentais chegaram, e pela sua perda de sentido de bem comum, o facto é que quem prevarica, quem falha, deixa de ter possibilidade de novamente poder ser integrado no conjunto de todos.

Penso às vezes que as nossas cadeias funcionam quase como interpelações profundas dos insucessos sociais enquanto sociedade e realidade, e enquanto não conseguirmos valorizar um bem comum, um bem que é de todos, particularmente a dignidade humana, vamos olhar sempre para as prisões esperando vingança, mas uma vingança para consolar corações, perdas, e não propriamente com este princípio que é ‘não fica ninguém para trás’, e esse é de matriz cristã.

Obviamente o processo mais ou menos sociológico de descristianização vai-se começar a verificar nestas realidades, onde os que não estão integrados, as margens, começarão a transformar-se em realidades invisíveis, ou só serão notícia quando se confirmar a necessidade dessa invisibilidade. Um bocadinho como nas cadeias, só somos notícia quando um recluso foge , ou uma coisa dessas…

 

Falávamos do Papa Francisco, ainda há pouco. De que forma é que as imagens das visitas a prisões, em viagens internacionais, ou do lava-pés a reclusos ajudam a dar visibilidade a essa realidade?

O Papa Francisco tem lutado, neste seu pontificado, por trazer a periferia para o centro. Naquilo que é a sua capacidade real de influenciar as consciências e os corações, ele tem procurado fazê-lo e temos sentido essa mesma realidade: se há uns tempos, o visitador era alguém que surgia do quadro relacional do capelão, hoje em dia temos pessoas que, sem nenhuma relação com a Capelania ou com o capelão, vem procurar informação à Pastoral Penitenciária, quer fazer, sente-se motivado, inclinado a servir esta causa, de alguma forma. Nesse aspeto, é um Papa cinco estrelas.

 

Voltando à realidade da pandemia: sabemos que a vacinação nas prisões começou por abranger os guardas prisionais e os reclusos mais idosos, mas só está a avançar agora para os restantes reclusos. Em Lisboa serão vacinados este domingo, 4 de junho, e no Porto dia 7. Não devia ter sido prioritária e ter começado mais cedo, dado o perigo de contágio devido à partilha de celas e balneários?

Na minha opinião, seria, com certeza, mas tenho sempre algum receio, porque eu não conheço a equação toda, não tenho acesso à informação que os decisores tiveram. Estranhei um pouco não se seguir a mesma lógica seguida na realidade civil, porque há idosos nos estabelecimentos prisionais, com 70, 80 anos, e foi estranho não os ver vacinados quando os outros idosos estavam a ser vacinados. Houve aqui uma dificuldade de dar transversalidade deste direito aos reclusos, mas, como disse, não parece que tenha sido intencional ou uma realização maquiavélica, da parte dos decisores. É difícil integrar mentalmente o espaço prisional no nosso espaço normal e habitual.

 

Foi nomeado coordenador nacional da Pastoral Penitenciária já em 2021, num momento particularmente difícil como este da pandemia. Quais são as prioridades da sua equipa?

Nós pegámos nesta matéria a partir do momento em que nos foi comunicada a necessidade de substituir a tarefa do padre João Gonçalves, que estava muito limitado pela doença. A equipa transitou quase toda da equipa anterior, tivemos de escolher mais um ou dois nomes, porque o ‘know how”’ que foi realizado é admirável e é valioso.

Nos primeiros encontros que temos tido, as linhas prioritárias que o padre João tinha definido estão a manter-se, portanto, vamos procurar fazer com que os nossos voluntários e colaboradores continuem em processo de formação. A realidade da Pastoral Penitenciária não pode viver só de uma entrega genuína, por parte dos voluntários, tem de haver aqui alguma formação específica – seja no ordenamento jurídico, seja também algumas competências de caráter psíquico, e até na leitura do próprio perfil. Posso querer muito ajudar, dentro de um estabelecimento prisional, mas posso não ter condições psíquicas, reais, para o fazer. O ambiente é um ambiente que é trabalhado na desconfiança. Há corações bons, lá dentro, mas às vezes pode demorar algum tempo até lá chegar… Por isso, é necessário este trabalho, esta intuição que sempre esteve presente, no trabalho do padre João Gonçalves, e esta será uma realidade a ser concretizada.

Outra é reforçar e motivar as equipas da Pastoral Penitenciária espalhadas pelas 49 cadeias mais uma – que é a Cadeia Militar, dependente diretamente do Ordinariato Castrense, e que integramos também na nossa realidade -, acompanhar e ver até que ponto esta pastoral consegue reorganizar-se neste novo arquétipo, que já não é o capelão residente, dentro da cadeia, que tinha a obrigação de instruir os reclusos, mas nesta experiência eclesial, em que a comunidade eclesial consegue fazer chegar-se, a ela própria, à realidade das prisões. E depois manter vivo o protocolo que foi assinado com a Cáritas, para a ação sociocaritativa, nas várias instâncias de que a Pastoral Penitenciária vai necessitar, seja para as famílias dos reclusos, seja a intervenção nos processos de reintegração e a sua transformação, para que eles sejam simples e pequenos o suficiente para serem realizáveis ao nível das comunidades, não em realidades grandes ou institucionalizadas, que depois correm o risco de ser uma continuação do próprio processo de reclusão, que é algo que vai atrasar, em vez de ajudar.

Depois, obviamente, valorizar ao máximo possível o quadro da ação dentro do estabelecimento prisional. Um dos problemas que existe em todos os estabelecimentos prisionais é a inatividade, e ela, no quadro humano, é uma deformação: um homem que não tem um projeto, que não tem uma ocupação, um desafio, definha-se. Definha a sua capacidade humana, a sua capacidade relacional, a sua autoestima. Queremos ver até que ponto conseguimos dinamizar, fazer entrar dentro do estabelecimento prisional, com a delicadeza que a circunstância nos merece sempre. Penso sempre em dois navios enormes, a tentar juntar-se um ao outro, com imensos cuidados, para que não se afundem, permitindo, então, grandes janelas abertas para os reclusos continuarem a olhar a sociedade como o seu espaço próprio, não apenas as grades como a sua natureza.

 

Há quantos anos se dedica à assistência religiosa nas prisões?

Desde 2001, 2002. Já há alguns anos…

 

É capelão no Estabelecimento Prisional de Caxias e no Hospital Prisional de São João de Deus.

Sim, comecei pelo Hospital Prisional, na circunstância muito comum de o capelão anterior ter adoecido. Na altura, era pároco em Caxias e o cardeal D. José Policarpo pediu-me para dar uma mãozinha enquanto não se resolvesse nada. Bom, foi resolvido e resolvido está: acompanho aquela casa neste tempo todo, muito particularmente.

 

Um padre faz diferença numa prisão?

Faz.

 

Foto: RR/Joana Bougard

É uma presença pedida e procurada?

É. Pelos reclusos, pelos guardas prisionais, pelos funcionários, pela equipa médica. Continua a ser aquilo que é na paróquia, há uma transversalidade. Às vezes falo nisso às pessoas, a realidade é transversal. Não é uma realidade diferenciada.

 

A  21 de junho vai decorrer em Fátima o XVI Encontro de Assistentes Espirituais e Religiosos. Será ocasião para falar dos novos desafios e prioridades?

Sim. A ideia surgiu de uma intervenção que o Santo Padre fez às equipas judiciárias que trabalham com os jovens em risco. No conjunto de intenções que lhes entregou, havia uma dirigida aos capelães, em que dizia: “Avançai. Não tenhais medo, olhai para Jesus que também foi para casa de Zaqueu e foi apontado como aquele que foi dormir na casa do pecador”.

Houve aqui uma quebra, também pela morte do padre João Gonçalves, e há necessidade de retomar um élan que já existia. O desafio é avançar, com as propostas que já conhecíamos, mas que precisam de ser assumidas e integradas, e vamos também pedir à Direção-Geral que nos diga, um pouco, no que é que gostaria de contar connosco, o que é que espera de nós, o que é que foi esta experiência. Depois, pedi a um dos nossos capelães, de Bragança, que nos diga também qual seria a reflexão que gostaria que os padres e os diáconos deveriam ter em conta.

Se Deus quiser, em julho, reuniremos também com os nossos colaboradores e com os voluntários. E vamos manter também a nossa peregrinação a Fátima, para oferecer o nosso próximo ano pastoral.

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