Primeiros passos de um Pontificado

Padre Ricardo Figueiredo, Diocese de Lisboa

Foto: Patriarcado de Lisboa

Os primeiros discursos de quem inicia uma nova missão são sempre reveladores da consciência da vocação que se recebeu e do ministério que se é chamado a desempenhar. Isto é particularmente verdade quando se fala do Papa, porque até o que simboliza a mudança do nome mostra que há um desígnio a cumprir. Obviamente, isto só se entende à luz da fé, em que o sentido chamado vocacional mostra que o Papa não é «one man show», mas sinal e símbolo de uma presença que ultrapassa a sua individualidade.

Diplomacia

O discurso ao Corpo Diplomático acreditado junta à Santa Sé, de 16 de maio, apresentou o programa de Leão XIV para o papel da Igreja Católica nas relações com os Estados e, sobretudo, na relação com a humanidade no seu todo, enquanto a Igreja compreende que é uma força moral que se sente chamada a desempenhar uma missão no palco mundial. Neste sentido, também aqui se pode recordar Leão XIII, que foi capaz de ultrapassar o trauma da queda dos Estados pontifícios e apresentar a Igreja de forma nova na sua relação com o mundo.

Leão XIV propõe como chave hermenêutica das relações diplomáticas o «sentido de família». É uma imagem decisiva para o que se pretende para as relações entre Estados: ao contrário de um campo de guerra, em que cada um se defende, o «sentido de família» compagina individualidade e sentido de pertença; aspirações pessoais e sentido de caminho comum. Deste modo, pode-se ultrapassar os complexos que entrincheiram pessoas, comunidades e nações, e abrem-se novas possibilidades de construção de fraternidade e unidade.

O Papa desenvolve este percurso com as nações sintetizando-o em três palavras. A primeira é a paz, e aqui não deixa de apontar o sentido cristão desta palavra, que é entendida pelos crentes em sentido maximalista: não apenas ausência de guerra, mas a paz que é dom de Deus, que se «constrói no coração», como o próprio Leão XIV afirmou.

A segunda palavra é justiça, como um apelo social que o Papa colocou na linha de Leão XIII e da Doutrina Social da Igreja. Neste âmbito é de sublinhar que Leão XIV colocou o tema à luz de um dos princípios fundamentais da Doutrina Social católica, a subsidiariedade, sobretudo apelando ao papel da família. A Beleza de Ser Pequeno, como chamou o economista E. F. Schumacher, que no seu percurso académico foi conduzido aos princípios da Doutrina Social da Igreja, e de forma particular ao princípio da subsidiariedade, de forma natural e óbvia. Com efeito, este princípio continua a ser uma das chaves fundamentais da proposta social da Igreja e tão necessária, sobretudo quando se quer um Estado que domina e controla tudo, não só materialmente, mas também no campo das ideias e da cultura. É preciso voltar a colocar a família como célula básica da sociedade.

A terceira palavra apontada por Leão é verdade. É fundamental que a Igreja se veja sempre como arauto da verdade no mundo, não por teimosia ou pertinácia, mas porque ela é fundada por Cristo e é o Corpo Místico de Cristo, que disse de Si mesmo: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6). O Papa liga este tema à paz, pois «não é possível construir relações realmente pacíficas, mesmo no seio da comunidade internacional, sem a verdade», afirma. Aqui a Igreja Católica sente-se responsável para um anúncio que lhe é irrecusável.

Inteligência Artificial

A escolha do nome Leão coloca o Papa em linha com aquele processo de recomposição do catolicismo de que foi protagonista o Papa Leão XIII. Gioacchino Pecci fez aquela transição da Igreja num mundo em rápida aceleração e hoje essa velocidade é ainda maior. Leão XIV não se mostra indiferente a isso, muito pelo contrário. Nos seus primeiros discursos encontramos já linhas de uma reflexão que vai prosseguir e, quem sabe, resultar em algum documento pontifício sobre o tema (não ignorando, obviamente, a muito pertinente Nota Antiqua et nova, dos Dicastérios para a Doutrina da Fé e da Cultura e Educação, de 28 de janeiro de 2025). Uma resposta da Igreja a este tema é sempre necessária, como em relação a qualquer outro desenvolvimento da técnica humana, na linha daquilo que já em 1965 o Concílio Vaticano II indicava: «É preciso, que, no meio de todas estas antinomias, a cultura humana progrida hoje de tal modo, que desenvolva harmónica e integralmente a pessoa humana e ajude os homens no desempenho das tarefas a que todos, e sobretudo os cristãos, estão chamados, fraternalmente unidos numa única família humana» (Constituição pastoral Gaudium et Spes, n.º 56).

Em primeiro lugar, a consciência que o «mundo virtual» produz uma «perceção alterada da realidade», como dizia no discurso ao Corpo diplomático, já antes referido. Os documentos da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre a sinodalidade, tinham apontado dados relevantes sobre o tema, sobretudo na relação entre «virtual» e «real», apontando uma perceção que necessita ser estudada, refletida e aprofundada.

Em segundo lugar, é no âmbito destas transformações que Leão XIV convoca a Doutrina Social da Igreja, como o próprio afirmou no discurso à Fundação Centesimus Annus: «a Doutrina Social da Igreja é chamada a oferecer chaves interpretativas que coloquem em diálogo ciência e consciência, proporcionando assim uma contribuição fundamental para o conhecimento, a esperança e a paz». Neste sentido, é fundamental a aceção de doutrina que Leão XIV propõe no mesmo discurso, não ignorando as dificuldades que o conceito cria em muitas pessoas: «torna-se urgente a tarefa de mostrar, através da Doutrina Social da Igreja, que existe outro significado promissor da expressão “doutrina”, sem o qual até o diálogo se esvazia. Os seus sinónimos podem ser “ciência”, “disciplina” ou “saber”. Assim entendida, cada doutrina é reconhecida como fruto de busca e, portanto, de hipóteses, vozes, progressos e fracassos, mediante os quais procura transmitir um conhecimento fiável, ordenado e sistemático sobre um determinado assunto. Deste modo, uma doutrina não equivale a uma opinião, mas a um caminho comum, coral e até multidisciplinar rumo à verdade».

Em terceiro lugar, o apelo a «educar para o sentido crítico», como também afirmou no discurso à mesma fundação. Este desenvolve-se no diálogo, de forma particular não ignorando os pobres. Neste âmbito, e lançando uma análise do nosso tempo, o Papa aponta alguns vetores em que este discernimento é necessário: «Hoje há necessidade generalizada de justiça, uma exigência de paternidade e maternidade, um profundo desejo de espiritualidade, sobretudo por parte dos jovens, dos marginalizados, que nem sempre encontram canais efetivos para se exprimir. Existe uma busca crescente de Doutrina Social da Igreja, à qual devemos dar uma resposta!», afirmou no discurso referido anteriormente.

Um olhar para dentro da Igreja

As homilias da Missa de solene início de pontificado são sempre programáticas para a vida e missão da Igreja sob cada um dos pontificados.

Assim, João Paulo II, quando convocou toda a Igreja a não ter medo de abrir as portas a Cristo, num momento em que no período de receção imediata do Vaticano II era necessário concentrar esforços. Fê-lo indo até aos confins do mundo, mas também em obras como o Catecismo da Igreja Católica e o Código de Direito Canónico e restante legislação da Igreja.

Bento XVI meditava sobre a missão do Papa como Pastor que busca a ovelha perdida e Pescador que leva todos para Cristo, uma proposta de aprofundamento que realizou no seu pontificado, sobretudo no diálogo com a cultura.

Francisco propôs uma visão da Igreja como Serva de Cristo, enviada a curar e a cuidar as feridas do mundo, o que realizou de muitíssimas formas – visitas, discursos, documentos – ao longo dos doze anos de pontificado.

Leão XIV, por sua vez, apresentou o seu «programa» em torno de dois temas: o amor e a unidade. Como bom filho de Santo Agostinho, a acentuação do tema da unidade, ainda que nos custe reconhecer que a Igreja parece muitas vezes estar dividida, é expressão de uma consciência muito particular do Papa: sabe das divisões e sabe-se enviado por Deus a curar as feridas. Por isso, convoca toda a Igreja, com particular sublinhado na edição publicada: «Irmãos e irmãs, gostaria que fosse este o nosso primeiro grande desejo: uma Igreja unida, sinal de unidade e comunhão, que se torne fermento para um mundo reconciliado», afirmou na Homilia de 18 de maio.

Esta acentuação está ao serviço da natureza, identidade e missão da Igreja, como já se afirma desde o Vaticano II: a Igreja é sacramento, isto é, sinal e instrumento de Cristo, sinal da unidade dos povos, que na Igreja se realiza; profeta e anunciadora de uma vida nova que só de Deus depende e só em Deus é originada.

***

É certo que estamos a percorrer ainda os primeiros passos do pontificado de Leão XIV, mas já é certo que é em tudo um Papa profundamente atento aos temas da ordem do dia, sendo, por isso, o Papa que Deus quer e a Igreja precisa. Muitos outros discursos e homilias já foram feitos e completam ainda mais estes aspetos que aqui assinalamos.

Estamos diante de tempos novos e, como sempre, o papado procura estar à altura das necessidades da Igreja e do mundo. Quando os cardeais se reuniram em Conclave, escolheram o sucessor de Pedro, não o CEO da Igreja Católica. Em todo o caso, não deixa de ser interessante que alguns especialistas do mundo empresarial reconheçam nos gestos e atitudes de Leão XIV um exemplo do que é um CEO de sucesso. É caso para recordar o que Jesus recomendava aos seus discípulos: «sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas» (Mt 10, 16).

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