“Integradas nas Jornadas de Teologia do Centro Regional do Porto, da Universidade Católica Portuguesa, [entre 5 e 7 de Março de 2001], a visita ao Porto e a conferência do Cardeal Ratzinger, constituíam, em si mesmas, um interesse e um apelo de participação acrescidos para o evento. E, de facto, quanto ao número de participantes, as expectativas foram largamente superadas. Não diria tanto quanto ao conteúdo da exposição, a meu ver, muito longa quanto à génese da Europa, breve e incisiva na análise da situação actual mas demasiado curta, apesar de sugestiva, quanto ao futuro. O tema da Conferência “Europa: os seus fundamentos espirituais, ontem, hoje e amanhã”, de sabor bíblico e jubilar, como antecipadamente a apresentou e ousadamente a interpretou o Bispo do Porto, situava-se perfeitamente no quadro global da reflexão a que se propunham estas Jornadas: “O cristianismo no limiar dos novos tempos”. Mas vamos à Conferência. Como disse, muito longa quanto à génese da Europa e dos seus fundamentos. Na tentativa de responder à pergunta “Europa, que é isso?”, o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, na peugada das posições do Cardeal Glemp, no Sínodo sobre a Europa, vai desenvolvendo a tese de que “a Europa é um conceito que só secundariamente é geográfico”. E insiste: “A Europa não é nenhum continente geograficamente evidente, mas trata-se de um conceito cultural e histórico”. A Europa ontem Somos depois conduzidos a um percurso, sobretudo histórico, mas também geográfico e necessariamente cultural, entre avanços e recuos, em que o Conferencista detecta, desde logo, duas revoluções históricas fundamentais, a saber: em primeiro lugar a substituição do antigo continente mediterrânico pelo continente do Sacrum Imperium, colocado mais a norte e no qual desde a época carolíngea a Europa é moldada como um mundo ocidental e latino; ao mesmo tempo, a permanência da antiga Roma em Bizâncio, com o seu alargamento para o mundo Eslavo”. Recordemos aqui, em jeito de parêntesis, que na Convocatória para o Simpósio dos Bispos Europeus, feita precisamente em Fátima, em13 de Maio de 1991, o Papa João Paulo II dizia ser necessário que as duas tradições espirituais se encontrassem. Segue-se, na análise, deste percurso histórico, a terceira reviravolta, cujo farol é seguramente a “Revolução Francesa”. Com ela a moldura do Sacrum Imperium desaba por completo. E, no plano das ideias, “a sacra fusão entre a História e a existência estatal foi abolida. As nações, identificáveis pela construção de um espaço comum linguístico que as definia, surgem agora como as únicas e próprias senhoras da sua história e adquirem assim um estatuto que anteriormente não lhes pertencia”. E, num penúltimo ponto de análise, ainda quanto ao “ontem”, o Conferencista refere-se à universalização da cultura Europeia e da sua crise, com a abertura em direcção à Àmérica e, em boa parte, à Ásia. O próprio renascimento do Islão evidencia, segundo o autor, a necessidade de fundamentos espirituais férteis e resistentes, numa Europa seduzida pela técnica e pelo bem estar. As grandes tradições religiosas da Ásia levantam-se como energias espirituais contra uma Europa que contesta os seus fundamentos religiosos e éticos. Vazia por dentro, a Europa, atingida por uma crise de circulação vital, precisa agora de um “transplante”. E assim chegamos aos problemas do presente e a alguns diagnósticos quanto ao futuro. O Cardeal refere as diferentes posições de Oswald Spengler e de Arnold Toynbee. O primeiro, presumindo de uma espécie de evolução segundo a lei natural, prenuncia a morte da cultura europeia. O segundo, tentando adivinhar a crise, que identifica com o secularismo, julga ser então possível percorrer o caminho da cura. A pergunta entre os dois permanece aberta, opina Ratzinger. E o nosso Conferencista esquadrinha, mais uma vez a resposta, nas raízes históricas, aludindo ao processo do laicismo, nos países latinos, e a um caminho diverso em ambiente germânico, que parece sugerir como adequado o modelo segundo o qual “uma Igreja não misturada com o Estado garante melhor os princípios morais do conjunto, de tal modo que a promoção dos ideais democráticos se afigura como uma obrigação moral adequada à fé”. Retomando o fio da História Contemporânea, o Cardeal Ratzinger analisa também o fenómeno do socialismo, bifurcado em posições opostas: uma totalitária (o comunismo) e outra democrática (o socialismo democrático), este mais próximo da Doutrina Social da Igreja. Se este último até contribuiu para a formação da consciência social, o primeiro (o comunismo) consuma a inversão dos valores que construíram a Europa. E conclui: “A verdadeira catástrofe que deixam para trás não é de natureza económica: ela consiste na devastação dos espíritos, na destruição da consciência moral”. A Europa hoje Surge finalmente a pergunta: “Onde estamos hoje”? Como devemos continuar? Segundo os pais da construção europeia, o caminho é de regresso. E o fundamento deve ser procurado na herança cristã do continente, moldado pelo cristianismo. E, para situar no concreto, a questão, o Cardeal analisa a Carta dos Direitos Fundamentais da Europa, aprovada a 14 de Outubro do ano 2000. O texto reflecte a consciência de que a comunidade económica dos estados europeus necessita também de um fundamento comum. A referida Carta, na parte que mais nos interessa, diz: “na consciência das suas tradições religioso-espirituais e morais, a União (Europeia) funda-se nos universais e indivisíveis valores da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da solidariedade”. Registemos que “liberdade autêntica e solidariedade efectiva” foi também o mote da carta do Papa aos participantes do VIII Simpósio dos Bispos Europeus. Não há – anota o Cardeal Ratzinger – qualquer referência a Deus na referida Carta. E, um pouco mais adiante, observa que, embora isso até se compreenda, “uma coisa não devia faltar: o respeito por aquilo que para o outro é sagrado e sobretudo o respeito pelo sagrado, por Deus, respeito esse muito razoável mesmo para aquele que não está preparado para acreditar em Deus”. Num esforço crítico de avaliação da Carta, Ratzinger, resume: “A colocação por escrito do valor e da dignidade da pessoa, da liberdade, da igualdade e da solidariedade, juntamente com os axiomas da democracia e do Estado de Direito, engloba uma visão da pessoa humana, uma opção moral e uma ideia de Direito que não se compreendem de modo nenhum por si mesmas, mas que são na realidade factores fundamentais da identidade da Europa que têm de ser respeitados também nas suas consequências concretas e certamente só podem ser protegidos quando se cria uma nova e adequada consciência moral”. De seguida, o cardeal refere-se brevemente a dois pontos onde se manifesta a identidade europeia: o primeiro: o matrimónio e a família; o segundo, a liberdade religiosa, de consciência e de pensamento. Nada de novo relativamente à conhecida doutrina do Magistério da Igreja. E muito pouco sobre o futuro.Segue-se a conclusão: “a Europa para sobreviver precisa incontestavelmente de uma nova recepção crítica e humilde de si mesma, sendo que a multiculturalidade não pode subsistir sem constantes comuns e sem a afirmação do sagrado não se pode aguentar”. A Europa amanhã? Sobre o futuro, apenas um aceno lúcido e humilde quanto ao caminho: “os crentes cristãos deveriam compreender-se como uma minoria criadora e assim contribuir para que a Europa ganhe novamente o melhor da sua herança e sirva toda a humanidade”. Mas se a história é profecia, como testemunha a Escritura, seria legítimo e saudável sonhar um pouco mais. É um exercício e um compromisso que caberá à Igreja e a cada um de nós, na construção de uma Europa do espírito, edificada sobre sólidos princípios morais. Uma Europa capaz de oferecer a cada um, autênticos espaços de liberdade, de solidariedade, de justiça e de Paz. Este sonho transcende toda e qualquer fronteira. E permite-nos um olhar de esperança, que é a nossa âncora, a primeira e única saída para o futuro”. (Atrium, n.29 (2001) 33-37). Bento XVI na Voz Portucalense Em Março de 2001, o Cardeal Joseph Ratzinger veio ao Porto, a convite do então Director Adjunto da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, António Marto (que entretanto fora nomeado Bispo Auxiliar de Braga). O evento, mais notável do que o que comunicação social se deu conta, foi objecto de várias referência neste semanário. Assim, no primeiro número do ano de 2001, escrevia em primeira página, com foto: “Cardeal Ratzinger vem ao Porto”, explicando que a finalidade era participar na Semana de Teologia. Pouco depois (24 de janeiro de 2001) dava-se conta da nomeação de dois novos cardeais portugueses (D. José Policarpo e D. José Saraiva Martins) e em 31 de Janeiro afirmava-se “Novos cardeais mudam lista de ‘papáveis'”, salientando-se que João XXII foi eleito aos 77 anos. Em 21 de Fevereiro publicava-se um texto de Geraldo Coelho Dias, com o título “A Liturgia, Paixão do Cardeal Ratzinger”, em que se evidenciava o seu texto Introdução ao espírito da Liturgia. Já na edição de 28 de Fevereiro se afirmava: “Cardeal Ratzinger falará em português”, e referia-se o tema da sua conferência: “Europa: seus fundamentos espirituais, ontem, hoje e amanhã”. No dia 7 de Março reportava-se a realização da conferência com o título “Os fundamentos espirituais da Europa: sua raízes cristãs”. Escrevíamos então, além de um registo do acontecimento e de um resumo da conferência, um Perfil para o Cardeal, que julgamos manter toda a actualidade (ver pág. 2). Vários periódicos registaram a sua presença, agora explorada pelos media, em conversa amena com pessoas da Igreja, com a simplicidade de quem coloca uma boina na cabeça e conversa a passar por meios dos jardins ou visita as caves de vinho do Porto. Poucos souberam então ler estes sinais. Preferiram permanecer com a ideia feita e falsa do homem sucessor do Santo Ofício, rígido, distante e dogmático. O que as pessoas inventam! Amaro Gonçalo