Monsenhor Vítor Feytor Pinto esteve 28 anos na Coordenação da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde.
Em entrevista à Agência ECCLESIA, Monsenhor Vítor Feytor Pinto recorda um caminho de humanização que importa continuar e não esconde a sua preocupação perante a política de cortes orçamentais que, no seu entender, não podem matar a pessoa.
Agência ECCLESIA (AE) -Na sua mensagem para o Dia Mundial do Doente, o Papa interpela à fé à caridade e à capacidade de dar a vida por aquele que sofre.
Monsenhor Vítor Feytor Pinto (VPF) – Essa é a grande temática que o Papa nos propõe, relacionar uma coisa com a outra. Recordo que já Bento XVI na sua Carta Apostólica “A Porta da Fé”, afirmava que a fé sem a caridade seria um espiritualismo desencarnado. Mas acrescenta também, as obras sem fé, sem radicarem na experiência de Jesus Cristo, são agitação fútil e que cria imensas dúvidas. Ora, o Papa Francisco pega precisamente nesta perspetiva para consagrar o Dia Mundial do Doente à relação da fé com a caridade, de termos amor aos nossos doentes às pessoas que estão em sofrimento e oferecermos-lhes através da fé, a experiência de Jesus Cristo que é sempre uma experiência salvífica.
Os cuidadores saibam dar a vida por aqueles a quem assistem, e dar a vida é através de uma conversa pequenina que se tem, de uma visita que se faz, de uma palavra, de um olhar… há muitas maneiras de dar a vida.
Mas cuidar de quem sofre é uma tarefa muitas vezes exigente, a isso se chama em técnica médica a compaixão. Compaixão não é ter pena é levar o peso daquele que sofre.
AE – A grande evolução verificada nos sistemas de saúde e a facilidade de acesso aos cuidados médicos, terá provocado nas comunidades cristãs um enfraquecimento no zelo com que cuidavam dos seus doentes?
VFP – Eu diria mais, é uma das originalidades mais fortes da chamada pastoral da Saúde, instituída pelo Papa João Paulo II. Ele quis que o mundo da saúde não fosse apenas centrado no doente mas também na educação para estilos saudáveis de vida. E quando se está doente temos de facto de cuidar dessas pessoas que estão doentes ensinando-as a viver o próprio sofrimento ou a própria situação de ansiedade que a doença trás.
Isto não se realiza apenas no hospital, até porque o hospital é hoje um lugar de passagem, o doente rapidamente volta para casa. Então se temos muitos doentes em casa temos o dever sagrado de cuidar desses doentes que devem ser assistidos ao domicílio.
Mas importante também, é saber que tipo de doentes temos na nossa comunidade. Podem ser doentes crónicos, deficientes, pós operados, podem ser pessoas na proximidade da fase terminal da vida. É importante conhecer que tipo de doentes e onde eles se encontram. Podem estar na residência, mas também podem estar na rua… e depois a grande questão: Quem cuida destes doentes?
Já que queremos dar uma assistência completa porque é o homem todo que está em questão, temos que nos preocupar com a dimensão social, para prover a estas necessidades, a assistência médica, garantir que os acompanhamos à urgência, os acompanhamos ao centro de saúde, enfim lhe damos o apoio mais necessário quando o doente está mais só porque a família foi trabalhar…
AE – Quem assegura este trabalho? São técnicos, são voluntários?
VFP – É um trabalho que tem de ser assegurado por assistentes especializados nesta área, assistentes da pastoral da saúde e ao mesmo tempo por voluntários. Na minha comunidade paroquial temos umas dezenas de pessoas que se dedicam a este trabalho.
Temos de ter pessoas bem preparadas para realizar esta tarefa e aqui, os ministros extraordinários da comunhão têm um papel importante a desempenhar porque levam o melhor que a Igreja tem à pessoa que está em sofrimento. Levam Jesus Cristo presente no sacramento da Eucaristia. Mas a pastoral da saúde que tem uma carga espiritual muito forte, tem de estar ligada à pastoral social. Então é centro social e pastoral da saúde que na comunidade paroquial dão o apoio integral à pessoa que está doente.
Para mim é um grande desafio quando o Papa nos diz que devemos ser responsáveis pelos outros, que devemos dar a vida pelos outros e, dá-se a vida pela palavra, dá-se a vida pelo exemplo, dá-se a vida pelo exemplo, por uma visita que se faz num momento de grande sofrimento, há muita maneira de dar a vida e nós temos que dar a vida pelos nossos irmãos doentes.
AE – É também necessário trabalhar a dimensão cristã do sofrimento humano?
MVFP – O sofrimento não é só dor física, atenção, nós temos que distinguir claramente entre dor e sofrimento. A dor é física e essa neutraliza-se com relativa facilidade, mas o sofrimento que é dor moral, é dor envolvente. O sofrimento, só realmente através de uma perspetiva espiritual é que se consegue compensar. Portanto, a pastoral da saúde face ao sofrimento, mais do que à dor, tem um papel importantíssimo. E quando se fala de sofrimento é sempre numa perspetiva de proximidade com o sofrimento de Jesus Cristo o que é uma dimensão complementar. De facto eu tenho de saber lidar com o sofrimento como elemento importantíssimo para a minha vida. Porque o sofrimento purifica, o sofrimento permite redimensionar a vida, o sofrimento abre perspetivas de esperança que eu vou cultivar.
Depois, num enquadramento religioso, se eu sou crente, eu sei que Jesus Cristo não sofreu apenas na cruz, a sua vida foi toda ele um caminho de grande sofrimento identificado com o sofrimento dos seus irmãos pobres, dos seus irmãos escorraçados e marginalizados. Ora, todo aquele que é cristão, para além da dor, vive o sofrimento numa união com o mistério da Paixão de Jesus mas também a todo o mistério de sofrimento que Jesus viveu e que Jesus converteu em serviço aos irmãos.
Mas há uma dimensão muito importante, é que aquele que está em sofrimento também é apóstolo, pode ajudar os outros que ao seu lado não entendem o que é sofrer.
AE – Na verdade quem enfrenta a dor e o sofrimento, e se encontra por vezes na iminência da morte .pode assumir para os outros um verdadeiro testemunho de vida…
VFP – O Senhor D. Manuel Falcão, que foi Bispo de Beja,e que nos deixou há uns anos, na última parte da sua vida durante dez anos fez hemodiálise. Um dia dizia-me assim: Ó Padre Vítor, já batizei quatro. Enquanto estava a receber apoio médico à sua deficiência renal, tinha ao seu lado outros doentes. Descobriu que alguns não eram batizados, despertou neles a ideia do encontro com Jesus Cristo na fé, ajudou-os depois a descobrir que o sacramento significava a sua fé e conseguiu batizar quatro pessoas adultas que efetivamente andavam muito longe do Evangelho.
Este é um caso de uma pessoa doente, em hemodiálise, que não está ali calada sem fazer nada, está a ajudar os outros. E não estava a rezar o terço estava a evangelizar. Sabemos que a oração do terço também é evangelização se é oração pelos outros, mas aqui era uma evangelização direta, concreta.
Quantos doentes podem fazer isto? Quantos santos numa fase difícil da sua vida, no sofrimento, não fizeram isto, é muito interessante. Lembro a celebérrima Beata Alexandrina de Balazar e a sua missão, durante 33 anos em grande sofrimento a ajudar todos os que sofriam. Não só os que tinham dor, mas os que tinham sofrimento no corpo e no espírito, no coração.
AE – Durante os muitos anos que este na Coordenação da Pastoral da Saúde assistiu a um grande desenvolvimento do Sistema Nacional de Saúde. Teme que todo este avanço qualitativo fique comprometido, e comprometa também o trabalho da Pastoral da Saúde?
VFP – Durante estes 28 anos a Pastoral da Saúde privilegiou três coisas: A humanização, a ética e a importância da espiritualidade com terapia. São três aspetos completamente inovadores a acompanhar a evolução técnica que efetivamente a medicina alcançou.
O progresso na medicina tem sido notório e é isso que permite que fiquemos muito pouco tempo nos hospitais, os exames, o diagnóstico e a terapia processam-se num curto espaço de tempo. Mas neste quadro de tecnicismo à o perigo de uma maior desumanização. A interação que tínhamos com a pessoa, temos agora com o computador, os técnicos têm que estar muito atentos a isto.
Os aparelhos não podem constituir uma cortina que dificulte o contacto pessoal. Mas a humanização também é para os técnicos, eles também têm de ser tratados humanamente. O doente pode perder a dignidade pela maneira como é tratado mas muita não são tratados com a dignidade que merecem. Por vezes os técnicos, os médicos, enfermeiros, os terapeutas não são tratados com a dignidade que merecem. Então aí há toda uma responsabilidade fundamental da sociedade de humanizar a saúde. E depois uma ética personalista, que não pode ser contratualizada, há valores que têm de ser sempre bem respeitados, bem promovidos. A chave está na dignidade humana, no respeito pela liberdade e pela dignidade humana.
AE – Então esta é uma área que não pode estar simplesmente à mercê da economia, das determinações orçamentais.
VFP – Claro que não, de forma nenhuma. A pessoa humana está à frente da economia, a economia é que serve a pessoa e não o contrário. Aliás o Papa, na Evangelii Gaudium, é nisto de uma clareza meridiana. A certa altura fala dos desafios feitos ao mundo contemporâneo e depois diz claramente, não à prioridade do dinheiro. Diz expressamente: não a um dinheiro que está centrado em si próprio e mata a pessoa. Diz isto textualmente. Eu peço muito que leiam o capítulo segundo da Exortação Pastoral Evangelii Gaudium, porque é de uma grande clareza. O Papa não se centra na análise dos sistemas, essa tem sido por vezes a tentação da Igreja, estudar as teorias dos sistemas… não, não, vamos à prática e a prioridade absoluta é a atenção à pessoa, o respeito pela sua dignidade e liberdade. Apoiar tudo isto numa relação de amor.
AE – É com preocupação que assiste às notícias do Sistema Nacional de Saúde que dão conta da escassez e do abandono de certos tratamentos em virtude dos elevados custos económicos?
VFP – Terá que haver a maior cautela. Eu admito e considero que os responsáveis pela saúde em Portugal têm esta preocupação e esta dificuldade orçamental, mas não podem de forma nenhuma, pela preocupação orçamental, sacrificar o essencial e o essencial é a pessoa. Que importante será, que todos aqueles que trabalham em saúde e todos nós Igreja com os voluntários que trabalhamos também em saúde, demos atenção à pessoa. Porque nós padres também podemos cair no mesmo. Em vez de nos relacionarmos com a pessoa damos-lhe um sacramento e vamos embora. Damos um sacramento e não nos relacionamos com a pessoa, eu não posso dar a comunhão e ir embora, não posso administrar a unção dos enfermos e ir embora, eu tenho que me relacionar e esta relação não permitirá nunca que o sacramento seja uma cortina entre mim e o doente. Tem de ser uma ponte que estabeleço com o doente e que permite que ele fique comigo e eu com ele, continuando toda a linha de ação redentora que o trabalho de Pastoral da Saúde deve promover.
AE – Durante estes 28 anos trabalhou muito para apagar aquela ideia que a proximidade do padre significa a eminência da morte, mas antes uma oportunidade de acolhimento e oportunidade de vida.
MVFP – Essa é a dimensão da espiritualidade. Quando falo de espiritualidade estou a falar de cultura, e antes de falar de Jesus Cristo a uma pessoa que não acredita, eu tenho de estabelecer com ela uma relação cultural onde os valores desempenham um lugar fundamental, o valor da verdade, da justiça, da liberdade, do amor, da solidariedade, mas não basta. Depois é preciso dar a dimensão integral da relação, não uma relação de levar o alimento a casa ou de a levar ao hospital, é uma relação continuada num quadro de amizade e proximidade. Nisto o Papa Francisco está a ser um exemplo porque é um homem que se faz próximo e quem trabalha na Pastoral da Saúde tem de saber fazer-se próximo. E depois é a espiritualidade transcendental, é revelar a cada um o Deus que salva através de Jesus Cristo que deu um sentido completo à nossa vida.
HM