Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes 2007

Intervenção de D. Manuel Clemente durante o acto de entrega do Prémio a Manoel de Oliveira Pela terceira vez se atribui o Prémio Padre Manuel Antunes do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. Depois de ter contemplado um poeta (Fernando Echevarria) e um cientista (Luís Archer), reconhece agora a vida e a obra de um cineasta, Manoel de Oliveira. E em todos eles sublinha-se a excelência da humanidade que pessoalmente concretizam. Mas não é apenas nem principalmente por sucessão de tópicos culturais. É por inteiro cabimento e justificação, evidenciando percursos e obras que nos aproximam deveras daquele horizonte último em que poderemos realizar a nossa humanidade comum. Para os crentes, aí nos ligamos em verdade de criaturas, na relação (religião) com o Criador. Para os cristãos, isso mesmo se esclarece na vida de Jesus Cristo, em quem Deus se oferece e o homem se encontra, à luz de um definitivo Natal. Também à luz duma filmografia. Em recente entrevista, Manoel de Oliveira diz a dado passo: “Penso mais no que está para além da morte…” (Diário de Notícias, 12 de Dezembro de 2007). Mas não é só agora que tal transparece. No conjunto da sua obra, há tais concentrações ou alargamentos de planos que já induzem um alcance assim. E não temeroso, antes apetecendo o definitivo, total, realizador. Nem com medo da vertigem. Apaixonado juvenil de velocidade, filmou o rio e a sua faina com cenas estonteantes de sugestão e ritmo. Como depois, em história infantil de correria e jogo. Mas, já então, sobressaindo o recorte de cada figura, a densidade de cada personagem. Ressaltava, em suma, a humanidade de cada figurante, ou melhor, cada figura da humanidade transportada. Foi andando a vida do Autor, em pontuação cinematográfica. Digo andando, não digo correndo. Como quem saboreia e constrói, como quem repara e se detém, se detém cada vez mais, andando sempre… – E é isto possível, em termos cinematográficos? – Não é o cinema, até por etimologia, movimento, ritmo e imagem apressada? – Não se distingue do teatro, que, classicamente, preferia a concentração cenográfica, a redução imagética de sentimentos e falas? Pontos recorrentes da controvérsia… Como técnica e criação, o cinema é arte, destacada do teatro. E é cinema o que Manoel de Oliveira nos dá, quer quando corre ou desliza como os seus Douros, quer quando só a fala corre, como nos seus Vieiras. Mas o movimento de Oliveira foi ganhando a sua fonte, ainda mais nos olhares do que nos gestos, ainda mais em cada palavra do que na corrente delas. Não ficou menos “cinematográfico”, porque usa meios que o teatro não consegue nem pretenderá. Ficou certamente mais humano, porque respeita e sonda a profundidade e o mistério de cada personagem, de cada um de nós, de nós todos. O que é reconhecido. Na citada entrevista de há dias, Manoel de Oliveira manifesta surpresa: “Como é que uma nova geração [de realizadores] que aparenta ser laica escolhe O Acto de Primavera, que é tão religioso?”. Poderíamos responder: escolhe quando se escolhe a ela mesma, a “nova geração”, como nos escolhemos todos afinal, quando nos apegamos a rostos e a personagens concretos, que, sendo tão naturais e espontâneos, nos revelam no que temos de inultrapassável e, aliás, comum. E, acrescentado algo mais, naquele Acto de Primavera, também escolhe o que o próprio Deus escolheu, para se encontrar definitivamente connosco. Permita-me que lhe diga, Manoel de Oliveira: dessa Primavera não o tirará nenhum Outono, nem a si nem à sua obra. Todos os que tivemos a dita de ser alunos do Padre Manuel Antunes, figura cimeira da cultura portuguesa no século XX e, por isso mesmo, inspirador deste prémio, lhe ouvimos a reprovação dos que se ficavam no como sem saber o porquê. Sem zanga, que não tinha, achava-os “praticotes”… Bem pelo contrário, contentíssimo estará o grande mestre, no hoje eterno em que vive, por ver o seu nome e seu prémio ligados a Manoel de Oliveira, em quem toda a prática é teoria, obra fundamentada e expressão preenchida. Em quem os rostos e as falas, sendo únicos e recortados, valem por si e além de si mesmos, num além em que cabemos todos. Manoel de Oliveira, honra-nos a nós, os promotores do Prémio Padre Manuel Antunes, ao aceitá-lo assim. Levará consigo uma “Árvore da Vida”, obra do escultor Alberto Carneiro, que passará a ilustrar cada atribuição. Agraciando Manoel de Oliveira, agradecemos também a Alberto Carneiro, que soube moldar excelentemente a ideia que temos, duma vida manifestada em sucessivos frutos de inteligência e coração. Da agricultura à cultura, se quisermos, respeitando o étimo e a respectiva semântica, da natureza à humanidade. Muito obrigado a todos. Como obrigados ficamos à vida, à obra e à pessoa de Manoel de Oliveira. Porto, 21 de Dezembro de 2007 D. Manuel Clemente, Bispo do Porto e Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais

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