O presidente da Cáritas critica, em entrevista à Agência ECCLESIA, o aumento de impostos previsto pelo Governo na proposta de Orçamento para 2013, lamentando excesso de poder do mundo financeiro e económico no cenário atual
Agência ECCLESIA (AE) – Apresentado o Orçamento de Estado (OE) para 2013 ficou surpreendido com as medidas anunciadas pelo ministro das Finanças?
Eugénio da Fonseca (EF) – Fiquei surpreendido porque estava à espera, depois de tantas reuniões de Conselho de Ministros com vista ao reajustamento do orçamento e depois de se terem levantado vozes bastante credíveis sobre este e as consequências que ele poderá vir a ter na vida dos portugueses. Sem esquecer, os efeitos previsíveis que não são aqueles – segundo os peritos – que o governo anuncia.
AE – Então, esperava um recuo governamental…
EF – Sim, nalgumas propostas que se apressou a anunciar ao país. Efetivamente, isso não aconteceu. Estava à espera de um recuo significativo face aos clamores que se levantavam e se justificam. As pessoas não podem mais suportar impostos e este orçamento fundamenta-se, sobretudo, em onerar a carga fiscal e não vai, como era desejável, às despesas – àquelas que foram tão propaladas – que são inúteis e estão a alimentar uma máquina do Estado ineficaz. Só nos resta aguardar, agora, ao que se irá passar no parlamento.
AE – Os políticos ouvem a voz do povo?
EF – Não ouvem. Em todo o mundo, os políticos deixaram de comandar e deixaram de ser eles a governar. Quem governa o mundo é o poder económico. A promiscuidade existente entre capital e política tem sido um dos grandes obstáculos para que haja uma maior implicação dos políticos na governança. Só quando os políticos voltarem a tomar a condução da vida pública dos respetivos governos e o capital passar ser instrumental, como muitas outras áreas importantes para o governo de qualquer país, é que estes possam ouvir o povo. Eles, neste momento, estão mais interessados – daí é que lhes vêm os proventos – nos detentores do capital.
AE – Saímos de uma ditadura política para uma ditadura financeira?
EF – Sem dúvida. Não há regimes perfeitos, mas, até aparecer outro que justifique pela prática ser melhor que este, o regime democrático é aquele que melhor serve o bem comum. No entanto, hoje, o regime democrático não consegue ser uma democracia plena.
AE – O regime democrático está na rua?
EF – Não está e é bom que não esteja. Isso era uma perversão da democracia. Em relação à questão das pessoas se manifestarem, acho que o devem fazer – alguns é o único instrumento que têm à sua disposição para fazerem valer o seu sentir -, mas salvaguardando sempre os valores democráticos. Há órgãos de soberania que têm de ser respeitados. Ninguém se pode arrogar o direito de governar, seja o que for, a partir da rua. Esta poderá ser um lugar para, de forma civilizada, as pessoas se manifestaram. A ofensa e a calúnia não são manifestações. São arruaças que comprometem aqueles que, de forma civilizada e séria, querem mostrar – é a única forma que têm de o fazer – aquilo que pensam relativamente à atuação de quem nos governa.
Por outro lado, as manifestações não se podem ficar apenas por locais de protesto e reivindicação. Quem fomenta esse tipo de iniciativas – acho que ninguém está contra este direito – deve ter consciência dos objetivos muito precisos que pretende atingir e que esses objetivos sejam propositivos.
AE – Será que as arruaças nas manifestações não nascem do desespero ou do estômago vazio das pessoas?
EF – Poderá, mas também é preciso saber identificar os que não têm estômago vazio e que, muitas vezes, gostam mais da lógica de «quanto pior melhor» porque têm nos seus genes essa capacidade de serem mais parte do problema do que da solução.
Estive em Fátima, na peregrinação de 12 e 13 de outubro, e nunca me aconteceu ver tantos homens que vertiam lágrimas de forma silenciosa. Tentei interpretar aquelas lágrimas… Cada rosto era a dor e o drama de um emprego que se perdeu e de um futuro que está muito sombrio. Não foi preciso fazer muito barulho. É preciso fazer uma leitura sobre o porquê de ter acorrido tanta gente a Fátima…
Quando se manifesta o descontentamento de não ter o mínimo de condições para viver em dignidade é preciso algum controlo. Não adianta as ofensas e a violência porque isso até nos empobrece mais.
AE – As portas das Cáritas serão bastante solicitadas com o aumento de austeridade?
EF – Na Cáritas Portuguesa, as pessoas não virão bater à porta porque não temos essa competência direta. Essa competência é mais das Cáritas diocesanas e, sobretudo, das cáritas paroquiais e dos grupos organizados que estão nas paróquias.
Ao longo destes três anos, não deixou de aumentar o número de pessoas a procurar a ajuda da Igreja através destes grupos e com a generosidade de todos os portugueses que têm confiado, nos serviços que a Igreja presta aos mais pobres, os seus donativos. Tem sido tão difícil ajudar, cabalmente, todas as pessoas que nos procuram e todos os problemas que nos apresentam. Será mais difícil no futuro porque mais uma vez as medidas anunciadas vão recair sobre uma classe que já está altamente sacrificada e perfeitamente amarrada.
AE – Que classe é essa?
EF – A classe média.
AE – Essa classe ainda existe em Portugal?
EF – Ainda existe. Mesmo dentro da classe média tínhamos três faixas: média-baixa, média-média e média-alta. Alguns da classe média-alta já baixaram alguns níveis nestes degraus, agora a classe média-baixa está completamente empobrecida e muita da classe média-média está também a sofrer fortemente as consequências desta crise.
A classe média-alta, em casos identificados, – estou a pensar em algumas profissões designadas como liberais – está a ficar muito endividada.
AE – Para utilizar um termo muito comum, a classe média portuguesa baixou no ranking.
EF – Já que fala em ranking, havia um em que estávamos bem no alto: A disparidade existente ou o fosso entre ricos e pobres. Antes da crise, Portugal marcava pontos significativos. Estávamos em primeiro ou segundo na União Europeia (UE) onde a diferença entre ricos e pobres era abissal. Já aí se notava a vulnerabilidade porque nunca tivemos uma classe média bem definida. Cada vez que havia oscilações na economia, esta classe fragilizava-se. Para que haja um desenvolvimento equilibrado, em primeiro lugar não podemos ter uma sociedade como tínhamos [antes da entrada na crise] – com índices de pobreza tão elevados, já estávamos dois pontos acima da média da UE.
Portugal não pode ter a riqueza concentrada na mão de uns quantos, que são poucos, mas que a concentraram e, muitos deles, a adquiriram de forma ilegítima. Aqui, tem muita culpa a nossa justiça que foi sempre muito ágil para com os fracos e sente dificuldade – deixou-se enredar nas próprias teias que a lei permitia – nos julgamentos dos fortes.
AE – Mas o conceito de justiça é muito abstrato…
EF – Não se pode culpar os juízes, mas sim as leis que colocam nas mãos dos juízes. Há aqui uma grande responsabilidade do poder legislativo. Este deve aferir as propostas técnicas com a realidade. Esse tem sido um drama do nosso país.
AE – Portugal está no «grupo dos ricos», mas com laivos de país do terceiro mundo?
EF – Somos um país com trejeitos de ricos. Aparentamos riqueza. As políticas que nos trouxeram tinham essa lógica: De querer parecermos ricos e colocarmo-nos ao nível de outros países – nomeadamente da UE – na criação de estruturas. E posso citar a criação das estruturas sociais e nas exigências que se colocavam na construção de muitos equipamentos sociais. Eram, realmente, trejeitos de quem gostava de ser rico, mas não tinha condições objetivas para o ser e não o queria assumir.
AE – A civilização coloca também os focos direcionados para certos paradigmas de felicidade…
EF – São os pseudoparadigmas do dinheiro e do parecer.
AE – Vivia-se numa sociedade fictícia?
EF – Sem dúvida. Não é só em Portugal porque esta crise é mundial. Esta surge porque, durante muitos anos, a economia mundial assentou em mentiras. Uma falta de ética profunda. Por causa dos mercados e das cotações da bolsa criaram-se valores para essa mesma economia que não eram nada reais. Um dos exemplos da mentira da economia, que ninguém consegue por cobro, mas era urgente que este adamastor fosse vencido, chama-se «offshore». Aí, as pessoas colocam muito dinheiro, escondendo, mascarando, para fugirem a determinadas responsabilidades sociais.
AE – Existem razões fulcrais para a existência destes «paraísos fiscais»?
EF – Nenhuma. Existem porque há interesses de uns quantos – os tais poderosos – para poderem lavar o dinheiro que não querem colocar ao serviço do bem comum. A existência de «offshores» é uma evidência, por parte de quem os sustenta, da desresponsabilização do bem que devia ser para todos.
AE – Uma das formas de combate ao crime fiscal passa pela eliminação das «offshores»?
EF – Nunca se conseguirá ter uma justiça fiscal autêntica sem se destruir esse adamastor. Criticam-se também alguns grupos económicos porque fugiram com os seus capitais para outros países, mas é fundamental existir uma moldura fiscal europeia em que todos os benefícios e todos os encargos sejam iguais no espaço europeu.
AE – A escritora Agustina Bessa-Luis afirmou: «O país não precisa de quem diga o que está errado; precisa de quem saiba o que está certo». Onde estão as soluções? Onde está a luz que possa iluminar a vida sombria das pessoas?
EF – Essa é que é a aflição… Muitos de nós identificamos os problemas – e não os podemos calar -, mas temos de fazer um esforço para encontrar as soluções. O drama que sinto é que ninguém tenha, até agora, aparecido com propostas exequíveis. Não basta dizer que é preciso isto ou aquilo… É preciso saber em que condições, vamos conseguir adquirir esses direitos.
AE – É uma das vozes que defende o prolongamento do prazo das metas impostas pela troika. Uma forma de «apertar o cinto» lentamente…
EF – Essa é uma solução que me parecia ser urgente tomar. Não percebo bem o porquê de isso não se fazer. Como as metas são muito altas para um país com tantas debilidades económicas era fundamental prolongar o prazo. Assim, estendíamos as exigências e estas seriam mais suaves. Se não entrássemos tão tardiamente no pedido de ajuda talvez as coisas tivessem sido também mais suaves.
Quando há tanta gente, de grande autoridade, a dizer que a solução poderia passar pelo alargamento do prazo, não percebo porque não se envereda por esse caminho. Ouço dizer, com alguma frequência, que Portugal está doente e tem de ser curado porque não é uma doença mortal. É bom que tratemos o doente para que ele não fique com uma doença crónica. Isto é o somatório de muitos e muitos anos, de governos que olharam mais para o seu umbigo do que para o país.
AE – A doença está diagnosticada, agora falta encontrar o antibiótico para o vírus do défice?
EF – Mas se os antibióticos não são tomados com a regularidade prescrita ou não produzem efeito, – parece que é isso que está a acontecer, o último ano deu provas disso -, ou então se é tomado em dose excessiva mata o doente. O meu receio é que, depois de paga a dívida, tenhamos uma grande franja da sociedade portuguesa totalmente desmobilizada.
AE – Aristóteles já dizia «A comunidade politicamente mais perfeita é aquela em que a classe média está no poder e ultrapassa em número as duas outras».
EF – Verdade. Temos de ter uma classe média bem forte, porque é aí que se sustenta o desenvolvimento integral do país.
AE – Com palavras governa-se bem…
EF – Treinadores de bancada há muitos. As pessoas devem ter a predisposição para ser parte da solução. Na sociedade portuguesa, existem pessoas que estão, constantemente, do lado dos problemas e nunca do lado da solução.
AE – Com o agudizar dos problemas, as receitas da Cáritas também serão afetadas? Os Portugueses deixam de ser tão solidários.
EF – Às vezes, somos surpreendidos. Estamos numa fase em que o povo está a ficar cansado de ser tão solicitado e está também a sofrer as consequências da crise. Está a ficar sem recursos para apoiar, como apoiava até aqui. O indicador que temos, foi a campanha de ajuda às vítimas dos incêndios, que ficou muito aquém daquilo que esperávamos. Mas também é verdade que, aí, não houve uma envolvência tão grande da comunicação social.
Aguardemos pela próxima iniciativa a realizar, a campanha dos «Dez Milhões de Estrelas», na altura do Natal. São esses os termómetros.
Por outro lado, para mantermos viva esta consciência que as pessoas devem – dentro das suas possibilidades – estarem solidárias com os outros – a questão da solidariedade é um modo de estar – fizemos a campanha para chamar a atenção da solidão dos idosos. Foi muito bem acolhida na sociedade portuguesa. Algumas pessoas disseram que agitou as suas consciências e passaram a estar mais atentos à realidade dos pais.
No dia 17 de outubro, iniciámos, também, a campanha «Fome de partilha, solidariedade e justiça».
AE – Nessa campanha lançaram os 10 mandamentos para um futuro sem fome?
EF – Sim. Mandamentos para uma regra de vida, mas não é, de forma nenhuma, para compararmos com o decálogo que Deus deu a Moisés. Esperemos que esta campanha possa produzir efeitos em termos de consciência.
Por muita generosidade que o povo português possa ter, ficará sempre aquém das reais necessidades que muita gente sente e nos procura para as resolver. O Governo não pode ficar, como tem estado, tão distante da ajuda que as pessoas precisam.
AE – O Governo está ausente das questões sociais?
EF – Não digo tanto. No último ano, foi desenvolvido o programa de emergência social que ajudou em algumas áreas, nomeadamente, no apoio às instituições de solidariedade social para que dessem maior sustentabilidade a determinadas respostas sociais.
Está anunciado um reforço ao Ministério da Solidariedade e Segurança Social no próximo orçamento de Estado que saúdo. No entanto, é fundamental rever esse programa porque, hoje, existem situações novas que precisam de serem incluídas no programa de emergência social.
AE – A Cáritas é consultada pelos partidos políticos sobre o pulsar da realidade social em Portugal?
EF – Sim, alguns grupos parlamentares pedem-nos sugestões para medidas que pensam tomar. Ao nível do governo temos tido um diálogo muito próximo com o ministro da Solidariedade e Segurança Social. Uma pessoa muito disponível para o diálogo. Agora, os resultados do diálogo é que não são muitas vezes aqueles que desejaríamos.
Com o Ministério da Saúde temos tido também algum diálogo. Tivemos uma colaboração bastante profícua que fez com que mais pessoas pudessem aceder à isenção das taxas moderadoras por insuficiência económica.
AE – O desenvolvimento local é uma das formas de ultrapassar a crise. As cáritas paroquiais estão sensibilizadas para esta realidade?
EF – A Cáritas Portuguesa, em sintonia com a Comissão Episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade Humana, está num programa que visa uma maior animação da pastoral social ao nível das paróquias: Programa «+Próximo». Reconhecemos que muito está a ser feito pelas paróquias deste país… Mas este tipo de ação pastoral precisa de recrutar mais gente, pessoas mais novas e com capacidades para responder aos desafios que Bento XVI tem feito: “Capacitação dos agentes da ação pastoral nesta área para o exercício da sua missão”.
Temos feito um esforço para que a ação da cáritas não se confinasse apenas à dimensão assistencial. A dimensão da promoção humana avançou muito, mas o desenvolvimento sócio local tem sido mais difícil porque exige uma disponibilidade maior.
AE – A pastoral social é o parente pobre da pastoral da Igreja?
EF – Considero que a pastoral social tem de merecer por parte das comunidades cristãs uma priorização maior do que aquela que lhe tem sido dada. Deve-se dotar esta pastoral com agentes que possam corresponder com maior eficácia aos desafios que se colocam a esta ação da Igreja.
AE – As jornadas mundiais da juventude reúnem sempre à volta do Papa muitos milhares de jovens. Onde estão esses jovens depois destes grandes acontecimentos eclesiais?
EF – Também faço essa pergunta muitas vezes. Em termos da pastoral juvenil – não incluo todos os movimentos juvenis da Igreja – estamos muito tempo com eles em reflexão. Ainda não se conseguiu dar o salto da reflexão para a ação. Do pensamento para a prática. Temos jovens implicados na solidariedade, mas em ações muito pontuais.
Atualmente, estão a ressurgir muitos crismas, há cada vez mais candidatos a este sacramento que é de compromisso. Gostava de ver, na formação dos crismados, que houvesse esta componente de formação na área da caridade. Gostava também que existisse um tempo de estágio dos candidatos ao crisma onde, durante dois ou três meses, fizessem ação concreta, em favor do próximo, nas estruturas da Igreja que se dedicam a esse trabalho.
AE – A caridade é a fé em ação…
EF – Neste ano, em que se celebra o «Ano da Fé», era bom que não se desligasse a fé da caridade. Já que estamos também a celebrar os 50 anos de abertura do II Concílio do Vaticano há uma recomendação conciliar que nunca se pode perder de vista: “É preciso saber ler os sinais dos tempos”.
AE – Está na hora de revisitar os documentos conciliares, as soluções para os problemas vigentes estão lá…
EF – Essa sugestão é importante. Não vale a pena estarmos a reclamar um novo concílio porque este está ainda por cumprir. Esta é a hora, talvez tardia, de colocarmos, nas mãos dos nossos cristãos o pensamento social da Igreja que tem nos documentos conciliares o seu vértice estruturante. O défice de conhecimento da Doutrina Social da Igreja (DSI) é muito importante. Quando se diz que não compete aos cristãos fazer política – no sentido mais específico do termo – porque lhes basta fazer a sua intervenção onde estão – sociedade, empresa… – para a transformação da sociedade e basta-lhes para isso a DSI, eu concordo absolutamente. Mas é preciso que os cristãos conheçam a DSI.
AE – A formação em DSI é um problema de base?
EF – Basta olhar para os catecismos e não está lá. Basta olhar para os compêndios de Educação Moral e Religiosa Católica e não está lá. Até mesmo noutro tipo de ensino. Falta desafiar os cristãos a conhecê-la. A partir do momento em que é conhecida, torna-se galvanizadora da vontade de maior intervenção social dos cristãos.
AE – A DSI é uma vacina ou antídoto para o capitalismo selvagem?
EF – O pensamento social da Igreja não sacraliza nenhum sistema, mas aponta caminhos para aquilo que devia ser o sistema mais respeitador da pessoa e da sua dignidade. Mas não tenhamos ilusões, devemos ter um regime que olhe para o capital como algo de necessário – ele não é o demónio -, mas que esteja ao serviço da pessoa. O capital tem de ser um meio e não um fim absoluto, como tem sido até agora.
AE – Recentemente, a União Europeia foi contemplada com o Prémio Nobel da Paz. Esta atribuição acontece quando muitos europeus estão na rua a protestar. É um galardão questionável?
EF – Fiquei perplexo com a decisão de atribuir o prémio à União Europeia (UE). Não sei se a UE tem sido fator de paz, da verdadeira paz, para a UE ou se tem apenas limitado a gerir conflitos latentes existentes no seu seio. Quando temos no espaço europeu países de primeira e países de segunda e que prevalece o domínio desses países sobre os outros, não sei como pode haver tranquilidade e harmonia…
Neste momento em que se trouxe à evidência as fragilidades da UE, que se tornou excessivamente económica e deixou de ser tão união, para salvaguardar os interesses económicos em alguns países.
AE – É um prémio politizado?
EF – Considero que sim. Se foi um prémio de potenciar a autoestima dos europeus… Não estou a imaginar Portugal fora do espaço europeu, como não imagino a desintegração da UE. No entanto, é urgente que se volte a refontalizar a UE.
Em conflitos em que intervieram os Estados Unidos da América (EUA), a União Europeia tomou o partido desajustado pelos EUA. Tudo isto apenas pelo fator do petróleo, mais uma vez por razões económicas.
AE – Num determinado contexto, Evita Perón referiu que «A violência nas mãos do povo não é violência mas sim justiça». Considera que a Europa é um barril de pólvora?
EF – Não concordo com a afirmação, mas considero que a Europa está sob um barril de pólvora. Nunca a violência é justa, seja nas mãos de quem for. A violência gera violência.
Se a Europa não arrepiar caminho e não for capaz de rever os critérios pelos quais se tem orientado estamos em lume brando de uma conflitualidade que pode ser muito maior do que as pequenas quezílias que têm acontecido.
AE – Pequenas quezílias, mas envolvem milhões de pessoas…
EF – Pequenas, quando se fala de violência, mas que afetam milhões e são desastrosas no plano económico. A política da UE de defender os interesses de determinados Estados membros tem sido desastrosa e a prova do desastre é esta: A crise económico-financeira que rebentou nos Estados Unidos acaba por ter na Europa resultados mais desastrosos.
AE – A forma de atuação da UE é como um martelo pneumático que esburaca o tecido familiar?
EF – É uma boa imagem. Neste momento, nota-se – olhando do lado de Portugal – que a palavra solidariedade está cada vez mais fugidia dos dicionários europeus.
AE – Desaparece o conceito de solidariedade e, em simultâneo, nasce o termo austeridade?
EF – Sem dúvida e que contraria o princípio da solidariedade e que, por falta de equidade, gera a injustiça.
AE – Com o aumento da carga fiscal, o sentimento de injustiça nas famílias ganha novos contornos e, muitas delas, são obrigadas a entregar as próprias casas às entidades a quem pediram o crédito.
EF – Muitas delas têm de regressar a casa dos pais. Vou entrar em contradição com o que disse anteriormente e, neste caso, dou graças a Deus pela inoperância da justiça. Se a justiça fosse mais célere, o drama era maior. Muitos dos processos que colocariam as pessoas na rua, emperram nos tribunais.
AE – As nuvens negras pairam sobre a sociedade portuguesa.
EF – Muito. Não gostaria de dizer isto porque me compete dar esperança às pessoas. Recentemente, as pessoas chegavam aos atendimentos das Cáritas e diziam: “Ajude-nos que eu vou ultrapassar isto”. Agora dizem: “Ajude-nos… e como vai ser daqui para a frente?”. Este é que é o grande drama. As pessoas sofrem e não sabem porque fazem esta austeridade. Espero e desejo muito que as pessoas não enveredem por caminhos duma radicalidade extrema, como é o desistir de viver.
AE – Desistir de viver?
EF – Sim. Isso não resolve nada e, quando isso se faz, deixam-se os encargos para outros. Peço a essas pessoas que procurem logo ajuda porque essa não é a solução. Por imperativo da nossa missão, a cáritas estará com as pessoas até ao fim.
AE – As pessoas não mereciam uma explicação sobre a dívida? Ouve-se com frequência: «Os políticos é que fizeram a dívida, então eles que a paguem».
EF – Quando se fala de corresponsabilidade não se pode colocar tudo no mesmo nível. Há, objetivamente, responsabilidades diferentes. É lamentável – isso é que leva o povo a ter essa postura e essa forma de pensar – que se tivesse identificado tantas situações dolosas gravíssimas, de roubos declarados ao erário público em que o Estado, os governos, resolveram o assunto ejetando mais dinheiro para dentro dessas instituições. Nunca exigiram responsabilidades a essas pessoas. Ninguém perguntou a quem enriqueceu, a olhos vistos, de onde apareceu aquela riqueza. Até em nome do tal sigilo bancário… Depois os processos prescrevem. Isso é muito injusto.
AE – Mas pedem-se responsabilidades a quem roubou uma lata de atum no supermercado.
EF – Isso é de uma tremenda injustiça. Isso não invalida reconhecer que, alguns portugueses, porque não estavam bem preparados para algumas situações se deixaram seduzir por publicidades enganosas. Deixaram-se seduzir por acesso a estatutos que prometiam bem-estar onde ele não estava. Durante anos, mesmo antes de haver crise, cheguei a falar desses malfadados cartões de crédito. Algumas pessoas gastavam o vencimento que ainda não tinham.
AE – Perante este cenário, é urgente uma mudança de estilo de vida?
EF – Sou apologista dessa mudança e ela vai acontecer. Não fomos pela razão, agora vamos pelos factos. Não podemos continuar a ter o mesmo sistema e estilo de vida. Agora, não vamos pedir aos pobres que abdiquem daquilo que é elementar para que os ricos andem a gastar escandalosamente. Não me venham dizer que os ricos devem gastar porque o dinheiro é deles. O presidente da República disse numa intervenção: “A riqueza só era legítima se fosse posta ao serviço do bem comum”. É neste sentido que ela é legítima.
O que se passa nesses mundos do futebol… Às vezes tenho pena que o povo não reaja a essas situações.
AE – O futebol serve de analgésico para os sofrimentos do quotidiano?
EF – O ir ao futebol é um analgésico. Mas é naquele momento. Depois tenho de vir para a realidade. Agora, se passo a vida toda a discutir aquilo é uma alienação. Temos de mudar de vida e que esteja de acordo com as nossas reais possibilidades.
AE – Podia aplicar-se uma maior taxação às fortunas?
EF – Sem dúvida. O aumento da carga fiscal é preocupante, mas o que me vai preocupar também é o número de pessoas que vão fugir aos impostos. Quem foge são aqueles que podiam pagá-los. Neste país, ainda não se conseguiu uma reforma mais equitativa da arquitetura fiscal. Continuamos sempre os mesmos a pagar… O povo foge porque não vê os seus impostos bem aplicados. Este não devia ser o princípio de fundo.
AE – A taxa elevada de abstenção eleitoral – basta ver o que aconteceu nas eleições dos Açores – leva-nos a concluir que as pessoas deixaram de acreditar nos órgãos de soberania?
EF – Nota-se uma grande falta de participação do povo. A rua pode ser um meio de pressão, mas é nas urnas… Tenho receio que se houvesse eleições – espero que não porque seria mau para o país – ia acontecer o mesmo. A abstenção seria outra vez um desastre. Porque é que as pessoas se demitem destas coisas?
AE – O Governo fala com alguma frequência no aumento das receitas e na diminuição das despesas. Mas os resultados não coincidem com as previsões.
EF – Ao nível das despesas fazem-se coisas muito paliativas e procura-se receitas de uma forma rápida (via da tributação às pessoas) quando se devia ir buscá-las através da via da produção. Os governantes apostam naquilo que é mais fácil.
AE – A coesão social está em perigo?
EF – Nunca tivemos coesão social em Portugal. Com 18% de pobres – quase dois milhões de pessoas – antes de haver crise, não podia haver coesão social. Agora, esta coesão social ainda está muito mais rota. Para existir coesão social tem de haver harmonia entre as pessoas, das perspetivas de futuro das pessoas e do seu sentido cívico.
AE – A partilha de emprego poderia ajudar o país a sair deste drama?
EF – Há que repensar novas formas de trabalho. Primeiro, antes de redistribuir o trabalho, existe tanta área por explorar. Tanta área produtiva por explorar.
AE – Aproveitar os recursos da terra e do mar de forma sustentável?
EF – Sim. Tínhamos de ter a coragem de voltar ao mar e voltar à terra. Foi um descalabro dos governantes, muito anterior a estes, que hipotecaram o mar e a terra por pressão da União Europeia. Para voltar à terra e ao mar – este não tanto porque tudo se construiu na orla marítima – é preciso aproximar determinados serviços, de primeira linha, das pessoas. Só assim as pessoas podem voltar para a terra porque voltar para esta é voltar ao interior do país. Não é desertificando o interior do país de bens e serviços essenciais que se consegue motivar as pessoas.
AE – A rede de autoestradas que o país possui não contemplou o futuro.
EF – Muitas delas foram boas, mas outras foram um autêntico desperdício. Elas não ligaram determinados pontos vitais. Esses pontos estão isolados e, hoje, seriam muito importantes para a produção.
Mas também existem outras áreas onde se devia apostar, tal como o turismo. O que aproveitamos deste sol e as condições do Atlântico que nos banha. Reduzimos quase tudo ao Algarve. Muito pouco se tem feito nesta área.
AE – Voltando à redistribuição do trabalho…
EF – Tínhamos que equacionar e taxar os segundos empregos, sobretudo aqueles que não se justificam. Porque há empregos que são complemento salarial, visto que há muita gente que tem ordenados muito baixos. Temos muitas pessoas sem necessidade – alguns já usufruem reformas principescas – que não deviam ter outra ocupação.
Não advogo que as pessoas aos 65 anos tenham de passar para a reserva e não fazer nada. As pessoas devem trabalhar até acharem que têm condições. Mas deixem também aqueles que querem fazer algo pelos outros, sem serem remunerados, fazer.
AE – Para aqueles que procuram o primeiro emprego, a emigração é solução?
EF – Não. E lamento – agora já amainou – que em determinada altura se fizesse a apologia disso. Estamos a deixar partir quadros muito importantes para o desenvolvimento do país. A emigração é sempre um recurso de desespero. Não estou a falar daqueles que partem por opção própria, por questões pessoais, para obter outro tipo de qualificações. Falo daqueles que até ficariam no país, mas porque não têm trabalho ou porque não lhe foi concedida a bolsa para puderem estudar cá, se viram obrigados a deixar os seus familiares e demandarem a outras paragens. Isso é uma injustiça muito grande e não me digam que eles vão voltar.
LFS