Presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), é o convidado da entrevista conjunta Ecclesia/Renascença, para uma conversa sobre os novos desafios que se colocam ao sector, num momento em que o governo se prepara para apresentar o Orçamento de Estado
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Um dos desafios imediatos passa por uma maior cooperação com o Estado na área da Saúde, até porque o SNS não consegue dar resposta às necessidades de muitos utentes. Até onde pode ir esta colaboração? Vamos ter Misericórdias com Unidades de Saúde Familiar?
Vamos. A nossa cooperação com a área da Saúde situa-se sempre onde se deve situar, na complementaridade com o SNS. Portanto, ficamos muito preocupados quando verificamos que há mais de um milhão e meio de pessoas, de portuguesas, que não têm médico de família. Aqui há uns meses arrancamos com o projeto ‘Bata Branca’, que foi uma primeira forma de começar a atender pessoas que, de outra maneira não seriam atendidas.
Esse projeto está esgotado?
Não. Nós apenas propusemos a evolução para aquilo que chamamos assim, enquanto não tínhamos outro nome, para um ‘Bata Branca 2.0’, e que eu penso que tem ainda muito para dar nesta nova modalidade…
É uma parceria entre o Estado e o setor social, na área da Saúde?
Sim, na área dos cuidados de saúde primários. O Governo perguntou-nos se estaríamos disponíveis para avançar para o modelo C. Estamos com certeza; precisamos, naturalmente, de olhar para a lei, de olhar para os indicadores que vão ser pedidos, mas pela nossa experiência nas outras áreas da Saúde, nomeadamente na área hospitalar e na área dos cuidados continuados, não é nada que não consigamos fazer…
Vamos então ter Unidade de Saúde Familiar tipo C a breve prazo?
Exatamente.
A nível hospitalar, há espaço para maior cooperação?
Há um espaço brutal de maior cooperação, sobretudo porque os nossos hospitais, em maio-junho, julho, digamos assim, esgotam a capacidade daquilo que o Estado nos pode fazer, o que não faz sentido nenhum quando há centenas de milhares de consultas por fazer, e segundo os últimos números, 75 mil cirurgias não oncológicas por fazer também, e nós podemos fazê-las.
Só para ver se podemos ir um pouco mais longe no que diz respeito à questão das Unidades de Saúde Familiar tipo C. A previsão é de que possam existir a breve prazo?
A previsão é de que possam existir a breve prazo. Precisamos, naturalmente, de conhecer a lei e as portarias associadas. Portanto, digamos, todo o esquema legal de apoio para vermos como podemos atuar. Sabe que nós não queremos apenas fazer; nós queremos fazer bem, e porque queremos fazer bem, precisamos de preparar bem as coisas para sair tudo bem e as pessoas que vierem às Misericórdias dizerem fui à unidade das Misericórdias e tudo bem, e os profissionais que trabalham connosco poderem dizer é muito bom trabalhar nas Misericórdias.
Há pouco falamos dos hospitais: uma das áreas em que, aparentemente, os resultados não são os melhores é a que está relacionada com a solução para os chamados internamentos sociais. O que falhou no protocolo estabelecido com o Estado para que o número de doentes internados com alta hospitalar não tenha diminuído e de que forma julga ser possível melhorar também esta situação?
Vamos lá ver. Primeiro isto não tem a ver com os nossos hospitais, tem a ver com os hospitais do SNS que se deparam com o problema no momento da alta com pessoas que não querem sair do hospital, porque não têm para onde ir. Portanto, a nossa capacidade era limitada, era e é limitada.
Se pensarmos que houve uma altura em que os responsáveis do Estado me disseram que, por exemplo, o Hospital Amadora-Sintra libertava, naquela época, cerca de 40 pessoas por semana – ou melhor, precisava que a houvesse solução para essas pessoas com alta-, isso em 4 semanas são 160 pessoas. Os lares, segundo a legislação portuguesa, não podem ir além de 120 pessoas, ou seja, precisávamos de um lar por mês para essas situações. Já imaginou a dimensão do problema? Isto é um problema mais grave, que vai mais fundo, que se cruza muito, por exemplo, com a questão da habitação e também com a responsabilidade das famílias, algo que é importante que nós também prestemos atenção a isso. Portanto, nós acolhemos aqueles casos, e drenamos os que eram mais prementes – recordo que é o Estado que seleciona as pessoas, não somos nós -, e tentamos recolocá-las nalgum lado, em muitos casos até colocando-as nas famílias, porque também encontramos muitos casos em que a família fugia um bocado à sua responsabilidade.
Isto é um tema persistente, nós já tivemos oportunidade de falar dele no passado. Mantém-se uma questão que tem a ver com as comorbilidades de quem chega a essas unidades? O doente teve uma doença, essa doença foi tratada e curada no SNS, mas tem uma história, tem um historial médico atrás, que depois as instituições não têm capacidade de tratar…
Está a colocar muito bem a questão, porque uma coisa é uma pessoa que teve um acidente, que partiu um braço e que é operado ao braço e não tem para onde ir – e pode estar connosco ali durante algum tempo até encontrar um local e poder regressar ao mundo do trabalho. A questão é diferente se a pessoa partiu um braço porque caiu, porque tinha uma demência, ou porque fugiu. E o hospital trata do braço, mas não trata da demência. Eu diria que cada caso é um caso e isto tem de ser estudado seriamente, percebendo nós que, por outro lado, os hospitais têm uma pressão brutal, e como estão de porta aberta, basta haver uma crise, uma gripe, uma situação complicada para as pessoas entrarem por lá dentro e os profissionais não terem onde pôr as pessoas e, portanto, tem de haver aqui um equilíbrio.
E são pressionados também para libertar as camas, que é preciso ter isso em consideração…
Tudo isto é uma pressão para libertar as camas. Tudo isto é uma pressão para libertarmos as camas. E é natural e faz sentido que assim seja, não é nada de mais… Isto é virtuoso, que o administrador hospitalar ou que a organização da administração do hospital queira libertar camas para poder acolher pessoas que estão verdadeiramente doentes.
É preciso é que haja soluções…
É preciso que, em conjunto, arranjemos soluções que sejam transitórias, porque se estivermos a fazer soluções duradouras, então estamos a fazer lares em cima de lares. E penso que muitas dessas pessoas, até pelas suas idades, etc., não cabem neste perfil.
Do seu ponto de vista e da reflexão que fez até agora, neste caso específico dos internamentos sociais, vai ser necessário alterar o protocolo que foi estabelecido com as instituições do setor?
O protocolo tem três anos e vai ser preciso atualizá-lo em vários aspetos, nomeadamente porque a experiência que, entretanto, adquirimos pode ser muito interessante que a transpúnhamos para o quadro do protocolo e possamos cuidar de mais pessoas, ajudar a resolver a pressão para libertar camas.
Já por diversas vezes abordámos o tema do envelhecimento da população e das dificuldades do Estado em responder às diversas situações. Mantém a ideia de que o Estado não vai conseguir fazer uma rede pública de lares?
Claramente. Não tenho dúvidas nenhumas. E até me interrogo se, havendo um ou outro local no nosso país que obviamente precisa de mais lares, eu penso que pode haver soluções igualmente virtuosas, mais confortáveis para as pessoas, e das quais destaco claramente aquilo que ando há anos a dizer, que deve ser o novo pivô do envelhecimento, que é o serviço de apoio domiciliário. Só que as pessoas só preferirão ficar nas suas casas em detrimento de um lar quando se sentirem com confiança na sua casa. Como dizia há uns anos uma senhora, “eu não queria acordar morta”…. sem ninguém a quem pedir ajuda. Há um medo, não é? Hoje a tecnologia permite fazer coisas espantosas no sentido da proteção e no sentido da segurança. O ponto é que nós criamos as condições para que, resolvido o problema tecnológico, também tenhamos as equipas humanas que podiam impulsionar a solução.
E essa é a questão, se o Estado recorrer efetivamente ao setor social, há capacidade para dar a resposta que o país precisa?
Há capacidade, não tenho dúvidas nenhuma sobre isso.
Para todas as necessidades?
No apoio domiciliário, claro, todas as necessidades.
E vê no atual governo essa vontade de dialogar e de cooperação, até para responder às necessidades que o país tem neste momento?
Eu vejo no atual governo uma determinação forte em resolver este problema, porque este problema tem mesmo de ser resolvido, não dá para adiar mais. Nós vivemos muitos anos, se formos levantar as antigas entrevistas, e não é preciso ir muito longe, pois basta ver o que tenho dito à Renascença e à Ecclesia e vocês podem todos verificar que eu digo um bocado a mesma coisa há muitos anos. Vou atualizando a minha resposta em função das novas oportunidades tecnológicas que nos estão colocadas, mas continuo cada vez mais convencido de que mais do que o lar, o que nós precisamos é que as pessoas estejam nas suas casas devidamente protegidas. E eu dou o meu exemplo. Eu não quero acabar os meus dias num lar, eu gostava de acabar os meus dias entre os meus livros, com os espaços que eu conheço, na minha cama ou numa cama do meu espaço, do meu quarto, com as minhas memórias, com as minhas raízes, por onde andaram os meus filhos quando eram pequeninos, por onde andaram os meus pais e os meus avós.
Mas isso obriga a uma rede eficaz de acompanhamento domiciliário?…
Obriga a uma rede de 24 horas sobre 24 horas, 7 dias por semana.
E estamos preparados para isso; o setor social está preparado para isso?
O setor social está preparado para implementar isso, com os custos, obviamente, que isso tem para o Estado e para as famílias.
Não querendo aparecer aqui contra a corrente, mas de qualquer forma tenho de lhe perguntar: pensa que ainda serão necessários, no futuro, num curto prazo, mais lares e mais estruturas residenciais?
Nalgumas zonas do país, claramente. É evidente que se nós conseguíssemos, e temos de conseguir, alargar e utilizar o PRR para isso, para alargar, como devemos alargar a rede de cuidados continuados, vamos libertar muitas camas em lar. Repare, o que estava no PRR era fazer 5 mil camas de cuidados continuados. Eu diria que mais de metade dessas camas era para pegarem pessoas, que hoje estão nos lares, e que em boa verdade deviam estar na unidade de cuidados continuados. O que significava, de um momento para o outro, mais de 5 mil lugares em lar. Mas, mesmo assim, nas grandes zonas urbanas do Porto de Lisboa, com certeza que serão precisos nos lares.
Um dos momentos de maior dificuldade, porque passaram Misericórdias e outras instituições particulares de solidariedade, foi o período da Covid. Já se pode dizer que a normalidade está de regresso, ou ainda há situações para resolver desse período?
Digamos, do ponto de vista médico, a normalidade, o novo normal, aquilo a que se chamava o novo normal, está um bocado abandonado, de facto. Eu tive até durante algum tempo de contrariar uma ideia que certa comunicação social divulgava, de forma contínua, e que passava com grande destaque, nomeadamente nas televisões, de que havia muitos óbitos em lares, mas Portugal teve uma taxa muito baixa. Hoje voltamos e os lares estão completamente cheios outra vez. O que significa que a população portuguesa, por um lado porque tem confiança, por outro lado porque tem necessidade, continua a pedir, nomeadamente às Misericórdias, que é aquela área que eu domino melhor, mas também aos outros parceiros do setor solidário, lugares em lares e os lares estão cheios.
O doutor Manuel Lemos também preside à Confederação Portuguesa de Economia Social. Pergunto-lhe se nota no Governo, em particular na atual ministra, uma vontade de maior cooperação com este setor específico?
Deixe-me citar uma pessoa insuspeita, o grande gênio da gestão, o Peter Drucker, que disse um dia que o século XX foi o século das empresas, o século XXI será o século das organizações sem fins lucrativos. Não tem sido fácil, mas as organizações sem fins lucrativos, as organizações que em Portugal e no direito latino se chamam de direito social, as organizações sociais cresceram muito nestes 24 anos, portanto digamos que estamos a avançar nesse sentido. Eu penso que há um passo decisivo que precisa de ser dado, que é a nossa integração na concertação social…
Já está mais perto?
Sim, eu penso que está mais perto, porque penso que começa a haver essa convicção, e veja-se por exemplo, o senhor presidente da República que sustentou isso publicamente nos 30 anos do CES, ou então o presidente do CES, doutor Francisco Assis, que também suscitou essa questão. Sabemos que o novo presidente do CES vai rever essa legislação e, portanto, algum dia vamos ter essa realidade…
Acredita que vai ser com este governo e com esta ministra?
Eu acredito que sim, mas há uma coisa que marca o meu percurso, que é a resiliência. Se não for com esta, há de ser com outro a seguir.
Nos próximos dias vai decorrer na Lourinhã um debate em que se pergunta se o Estado Social está ameaçado. Essa ameaça é real se não houver uma atualização significativa das comparticipações do Estado?
Estamos aqui a reduzir o setor social à questão financeira. É evidente que o Estado tem de pagar o justo custo. Na última semana saiu uma norma contabilística que diz que o trabalho das instituições nas áreas da cooperação é uma prestação de serviços. Antes era visto, do ponto de vista técnico, como um apoio ao financiamento, portanto tinha um subsídio ao financiamento. Isso até muda, do ponto de vista contabilístico, tudo nesta matéria. O Estado tem de pagar o justo custo da resposta social. Nós não queremos ganhar dinheirinho com isto, não é para isso que existimos, por isso somos sem fins lucrativos. Mas o justo custo tem de ser cumprido, a não ser que o Estado decida que não quer. Não vejo isso na Europa, não vejo isso em nenhum dos partidos do arco legislativo. Alguns preferiam uma resposta pública, mas a resposta pública é mais cara, portanto não pode ser a questão financeira a estar em cima da mesa.
A questão financeira é uma questão central, mas não é a questão de saber se vamos ou não ter Estado social. Isso é uma decisão que terá de ser do governo. A Assembleia da República tem de decidir sobre essa matéria. Não estou a ver os partidos políticos votarem contra.
Mas para isso vai ser necessário melhorar os acordos de cooperação?
Claro. E está no programa de governo, que o Estado entende que o pacto para a cooperação tem de ser atualizado; ou seja, a comparticipação do Estado tem de ser de 50%. E isso é o mínimo porque por exemplo, no caso das crianças em perigo, o Estado tem de pagar 100%, não tem de pagar 50%. Portanto, há respostas em que o Estado tem de pagar a totalidade. Ou, por exemplo, a questão da rede nacional de cuidados continuados. é uma resposta pública que o Estado tem de pagar 100% dessa resposta. Mas voltando às outras respostas o Estado tem de pagar, no mínimo, 50%. E permitam-me aqui que recorde as palavras do engenheiro António Guterres, quando assinou com o padre Melícias o pacto de cooperação, ele disse que o Estado deve pagar, no mínimo, 50% e desejavelmente 60%.
E vê bons sinais nesse sentido?
Vemos bons sinais, como vamos ver nos próximos dias.
Já se reuniu com a ministra? Tem reunião próxima sobre a matéria?
Já me reuni com a ministra e, nomeadamente, com a senhora secretária de Estado, que tem sido incansável no sentido de perceber melhor quais são as nossas questões. Ela acompanhou há muitos anos no Parlamento esta área pelo partido que agora está no governo. Foi sempre muito sensível. E, portanto, julgo que em breve vai haver novidades… Não me cabe a mim dizer isso, mas eu diria que para a semana vamos ter novidades.
Indo diretamente à questão do Orçamento do Estado, porque ele está agora na ordem do dia. O governo vai propor, quando se sabe aos parceiros, um aumento de 4,9% do salário mínimo. É um pouco acima do que estava previsto para 2025. Este é mais um fator de preocupação para o setor social, porque efetivamente representa um aumento de custos. Vai agravar a preocupação com a sustentabilidade das instituições?
Claro, e vai condicionar a negociação para o ano de 2025, porque um aumento deste género tem consequências. Senão, repare: o Estado paga-nos 12 meses, mas nós pagamos aos trabalhadores 14. E, em cima disso, pagamos a TSU. E, em cima disso, pagamos os seguros. E mais umas coisitas. Portanto, temos de somar isso tudo, e depois dividir por 12. O acordo de 2025, para além da recuperação para os tais 50% de comparticipação tem de acomodar esse aumento. Senão vamos reduzir, e em vez de nos aproximarmos dos 50%, vamo-nos afastar dos 50%…
Doutor Manuel Lemos, que expectativas tem em relação ao orçamento? Que propostas tem o Presidente da União das Misericórdias a fazer?
Para o orçamento, isso. Apenas que o orçamento tem de acomodar o justo custo das respostas sociais, ou pelo menos ir até aos 50% da comparticipação. Mas o aumento, por exemplo, do salário mínimo, esse com certeza tem de ser obviamente ponderado por quem faz o orçamento. E nós lá estaremos para, junto com os partidos políticos, darmos conta de quanto é que isso representa.
Falando nos partidos políticos, já na reta final desta conversa, como observador atento, o que é que prevê neste debate sobre orçamento? Antecipa uma nova crise política?
Não, não antecipo nada. Eu acho que a discussão vai ser muita, como sempre.
Estamos perante um otimista irritante?
Exato. Mas sabe, isso é uma característica das Misericórdias. As Misericórdias têm de estar conscientes da realidade, mas têm que ver sempre o copo meio cheio. E, portanto, foi isso que nós aprendemos com os valores da Igreja Católica, foi isso que nós aprendemos com os valores e a história das misericórdias. Fomos sempre capazes de resistir, de continuar, de nunca desistir, porque o nosso objetivo são as pessoas.
Vai haver orçamento aprovado?
Vai haver orçamento aprovado.
Não tem dúvidas?
Não.
Apesar de toda a envolvência política que se tem vivido nos últimos tempos? O cenário não aponta para aí?
Pois, mas há sempre uma 25ª hora, não é verdade? Portanto, eu acho que na 25ª hora os responsáveis dos maiores partidos políticos vão preferir um equilíbrio. O que está em causa não é o A ou o B ou o C, são os portugueses. E quem não contribuir para esse equilíbrio dos portugueses e para a satisfação dos portugueses e para a melhoria das condições de vida num país que continua a ser um país pobre; está a errar.
Nós não somos um país rico. Nós somos um país pobre, mas um país onde vale a pena viver. E eu sou sempre muito sensível a um país em que procuremos nós, nas Misericórdias e na sociedade em geral, “construir um país em que os idosos tenham presente e os jovens futuro”. Não é uma frase minha, mas é uma frase que eu repito muitas vezes porque foi de um grande político português chamado Francisco Sá Carneiro, que eu repito com gosto porque interpretou perfeitamente aquilo que eu já na altura pensava.