Médico do Hospital de São João, consultor da Academia Pontifícia para a Vida e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida é o convidado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Vamos começar pela questão da eutanásia. Que sinal é dado pelo Parlamento com este processo legislativo, num momento em que a sociedade multiplica – ou deveria multiplicar – esforços para salvar vidas?
Esta discussão, neste tempo e nesta hora, no Parlamento é talvez um pouco paradoxal. Quando, na verdade estamos empenhados numa tragédia da dimensão que temos em que queremos salvar vidas surge a votação neste tempo critico que vivemos. E é paradoxal por esta razão de uma cronologia que se torna aqui coincidente, mas eu penso que a nossa preocupação tem que ser distante desta coincidência cronológica. De facto, o que aqui está em causa é a compreensão que se faz da dignidade da vida humana, da dignidade do viver humano, agudizado certamente neste tempo de pandemia que vivemos, mas ela é anterior à pandemia, ela existe durante a pandemia, e ela continuará depois da pandemia. Aquilo que está aqui em causa verdadeiramente e retomando aquilo que tem sido a justificação que vamos ouvindo nos media de que a reflexão já vem de algum tempo; esta circunstância da pandemia que vivemos não tem necessariamente que a alterar; e a verdade está exatamente aí. Porque esta reflexão que deve acontecer antes, durante e depois da pandemia é de alguma maneira distante destas condições concretas e particulares da pandemia porque ela é inerente ao ser humano no seu viver de sempre. Esta é que é a questão que tem de ser colocada que é: como é que hoje, o Parlamento que nos deve representar do ponto de vista político e daquilo que é o compromisso social perante a dimensão do viver humano, a dimensão da vida humana; como é que ela é pensada nos seus alicerces, nos seus fundamentos e na sua projeção para o nosso quotidiano. A questão é anterior à pandemia e a nossa preocupação deve ir exatamente a esta reflexão inicial, estruturante que é: Qual é o valor da vida humana e qual é o respeito que se deve ter, que limites se podem ou não colocar a este respeito pela dignidade da vida humana.
Há cerca de um ano defendeu em entrevista à Renascença que o Parlamento não tinha legitimidade para legislar sem ouvir a população. Considera que este pode ser mais um motivo para o presidente da República vetar o diploma?
Eu penso que sim. Penso que ouvir a população na sua maior dimensão pode eventualmente ajudar aqui a refletir de alguma maneira e de uma forma mais particular aquilo que deve ser feito perante esta situação. E isso porque o pulsar que nas consciências, nas pessoas têm acerca desta questão que têm muitas vezes na sua vida familiar a experiência deste viver o final de vida, pode ajudar à reflexão que deve ser feita. A reflexão política, enclausurada num ambiente parlamentar pode não traduzir efetivamente aquilo que é o querer da população na sua maioria. Se bem, se bem que continuo a pensar que sendo mais uma ferramenta que pode ajudar aqui a dirimir e a pensar as questões tão duras, tão complexas que têm a ver com o final de vida, apesar de tudo isto não deve ficar sujeito a um escrutínio de maioria ou de minoria. Há reflexões que têm a ver com a estrutura vertebral de uma sociedade que têm de ser pensadas exatamente nesta dimensão daquilo que é o sustentáculo da dignidade de uma sociedade. Passa por aqui também, por estas questões que depois se particularizam em cada um, mas que têm sempre uma inserção naquilo que é uma dignidade absoluta de uma sociedade humana.
Como é que um consultor do Papa explica ao seu conselho que um país com cuidados paliativos tão deficitários é capaz de legislar sobre a possibilidade de se pedir a morte?
Continuamos de novo na linha do paradoxo que vamos tendo. Mas deixe-me retomar esta questão: os cuidados paliativos têm naturalmente um ponto muito certo de serem refletidos, estruturados, desenvolvidos, pedidos, implementados.
Certamente que uma sociedade que percebeu a importância dos cuidados paliativos, não como uma mera disciplina acrescentada da medicina, mas como uma dimensão estruturante daquilo que é o cuidar na sua essência mais radical do ser humano em sofrimento agudo, atroz, final; deve ser colocada exatamente nesta linha de que como é que nós devemos ajudar as pessoas a viver este tempo de finalidade. Não como a resposta direta à questão da eutanásia, mas como aquilo que pode colocado em tempos – digamos – a montante da situação pode ajudar a encontrar respostas. Não a definir aquilo que é a dignidade do viver humano, como dizia há bocadinho, mas no encontrar respostas para. E aí sim, aí era necessário fazer o desenvolvimento desta especialidade para poder ajudar a perceber o tipo de respostas que deve ser encontrado para o sofrimento atroz, difícil, marcante de tantas vidas no seu tempo de finalidade. Portanto, em termos da resposta sim; em termos da concessão e da decisão sobre aquilo que é legitimo ou não fazer perante pedidos de morrer de forma ativa deve-se ter aqui alguma dissociação entre a forma de refletir, olhar e agir.
O pensamento ético da Igreja Católica rejeita que um doente tenha de viver uma situação de sofrimento sem controlo e defende o acompanhamento digno da pessoa. Mas nem sempre é essa a perceção por parte da sociedade, quando se debatem estes temas…
Não repare, estamos a falar de uma matéria na verdade muito, muito complexa. Nós vivemos um tempo em que viver o sofrimento é quase uma enormidade do ponto de vista daquilo que é hoje o que se propõe hoje ao viver. Viver perante o tempo e perante o mundo de forma feliz, sem amarguras, sem apertos, sem constrições e tudo quanto pode violentar este paradigma de felicidade absoluta emerge cada vez mais possante, mais poderoso e que deve ser contraditado a todo o custo. A todo o custo, podendo o preço ser tão elevado quanto este pedir a própria morte. A perspetiva que temos hoje de uma sociedade hedonista que se quer de facto colocar apenas na perspetiva do bem-estar ou da felicidade, da ausência da dor e do sofrimento, que é irreal, que é absolutamente irreal, deve ser repensada exatamente na sua própria formulação. Naquilo que é por exemplo a educação dos nossos jovens hoje para entenderem o que vai ser o seu viver no seu tempo de adulto. Eu penso que esta questão deve ser colocada aqui também. Quando estamos a preparar os jovens nesta linha de uma dependência enorme de uma tecnologia que tudo faz para se desenvolver para que nós possamos ser felizes não sendo capazes de encontrar formas de entender, acolher, justificar e responder ao sofrimento que sendo de sempre vai continuar a existir. Enquanto não percebermos que temos de encontrar respostas humanas para esta questão que é humana, isto vai-se tornar naturalmente difícil. E as respostas mais fáceis são de facto esconder esta situação anulando-as. Este é de facto o grande problema da eutanásia: é tentar a resposta a situações graves escondendo-as, anulando-as de forma definitiva. É o mais fácil, mas certamente o mais agressivo e o mais horrendo que se pode imaginar para a nossa consciência de humanos.
Na carta ‘Samaritanus Bonus’ (O Bom Samaritano), a Congregação para a Doutrina da Fé (Santa Sé) realça o “valor permanente da dignidade humana”, lamentando que muitos doentes sejam “considerados um peso para a sociedade”. Há esse risco de “pressão social” para quem vive uma fase terminal e se sente um peso familiar e até económico?
Esta questão é fundamental. A sensação que temos muitas vezes é que o avançar da idade, o envelhecimento e as questões que naturalmente decorrem deste envelhecimento como que reduzem a dignidade e o valor da vida quando a sua capacidade de intervenção e de expressão e de experiência daquilo que é a felicidade e o bem-estar se diminuem também. Uma diminuição não acarreta a outra diminuição. O envelhecimento, a aproximação da debilidade física e corporal não diminui nada o valor, pelo contrário acrescenta; acrescenta ao valor da vida algo que vai por exemplo atrás daquilo que é a necessidade de respeitarmos e atendermos a vulnerabilidade que naturalmente caracteriza este viver no final da vida. E isto é naturalmente muito exigente para as instituições, muito mais exigente para o agir individual de cada profissional. E num tempo em que, com poucos recursos, com tantas solicitações a outro nível, aquilo que é mais exigente neste patamar de uma assistência de proximidade, de um cuidar absoluto, de um exercício da compaixão que é muito mais demorado, que é muito mais exigente do que a ministração simples de um comprimido ou de uma injeção. Esta resposta é aparentemente uma resposta mais eficaz e é efetivamente mais eficaz, mas menos adequada. Porque não exige à sociedade e a uma estrutura assistencial que deve ser implementada como por exemplo é a proposta dos cuidados paliativos no sentido de, ainda que mais exigente, responder aquilo que é de facto a grande motivação dos pedidos de eutanásia. Nós olhamos muitas vezes para um pedido de eutanásia como algo de fechado em si mesmo e nesta palavra de quero morrer. De facto, os pedidos de eutanásia são, não o resultado de uma sedução pela morte, mas fundamentalmente por uma incapacidade de aguentar a amargura de um viver dorido e sofrido. E a resposta está em sabermos como é que devemos responder efetivamente a esta amargura da vida e de um sofrimento da dor e do sofrimentos, cujas respostas do ponto de vista social, do ponto científico, do ponto de vista médico, do ponto de vista de uma cultura de aproximação ao ser vulnerável tem de ser muito mais desenvolvidas e robustas…
O mesmo texto alerta para a perda da relação confiança entre médico e paciente, com a legalização da eutanásia…
Sim, quando nós endeusamos a autonomia, justificando aí a legitimidade destes pedidos de eutanásia, alocando a cada um a possibilidade de, por si, para si – e independentemente de quaisquer outros fatores -, decidir em função do seu querer e da sua vontade, autonomizando-a de forma absoluta e errada – errada do ponto de vista do que é a conceção da vida e da dignidade humana. A própria lei condiciona esta noção de autonomia: quando procura reconhecer em cada pessoa o exercício, sem limites nem restrições, da sua autonomia, a lei impõe a esse indivíduo uma limitação fundamental, porque quem vai decidir, enfim, é o médico…
O médico que não o quer fazer… O parecer da Ordem dos Médicos enviado à Assembleia da República é negativo, em relação aos vários projetos que foram apreciados.
A deontologia médica é muito clara, a própria reafirmação da Associação Médica Mundial, recentemente, sobre esta incoerência entre o que é o agir médico, o seu múnus, a sua missão, de ajudar as pessoas no seu nascer, no seu viver e nos morrer, e o encontrar respostas médicas, para o morrer que contrariam aquilo que é hoje o desígnio da atividade médica.
O Vaticano defende a objeção de consciência por parte dos profissionais da saúde e das instituições sanitárias católicas perante leis que permitam a eutanásia ou o suicídio assistido. Prevê que isso venha a acontecer em Portugal?
Prevejo que sim, até porque é uma resposta diplomática, politicamente correta, para uma questão que seria crucial. Portanto, tentando pintar com cores mais suaves esta questão da eutanásia, diria, já que se pede aos médicos que sejam os seus agentes – é aos médicos que está acometida a responsabilidade de matar, não lhes é pedida uma responsabilidade acrescida no sentido de fazer o que é necessário fazer perante estas situações de grande sofrimento -, sem ter assegurado que isso vá ser possível numa sociedade médica que, no limite, poderia não o aceitar. Ainda assim, a questão é anterior: reconhecer a consciência médica não só naquilo que deve ser projetado na sua responsabilidade deontológica, mas também daquilo que decorre da sua consciência individual. Isto é o mínimo dos mínimos, estou convencido que a objeção vai ser colocada na lei, até para dar uma feição aparentemente mais justa… Escondendo, escondendo outra questão de base, mais profunda.
Alguns países legislaram sobre a eutanásia de uma forma muito restrita e foram ao longo do tempo alargando exceções. O diploma agora aprovado em Portugal é desse ponto de vista mais restritivo, ou propicia o alavancar da chamada rampa deslizante?
Essa é a história que tem acontecido nos países que legislaram favoravelmente à eutanásia. Portugal quis seguir o percurso desses países, na sua fundamentação, e vai naturalmente, por um quadro de copy-paste, seguir os passos que ali aconteceram. Quando retiramos um balizamento estruturante da defesa da integridade e da dignidade da vida humana, a partir do primeiro descondicionamento tornam-se fáceis as justificações para um alargamento destas exceções. E isto redundará, certamente, como tem acontecido nos outros países, num acrescento de portas que se abrem para justificar estes pedidos de eutanásia.
Prevê que, como aconteceu noutros países, o debate sobre a legalização seja alargado aos menores de idade?
É o que temos aí, nalguns países. Não vejo porque é que em Portugal não se irá também nesse sentido, ao abrirmos a primeira das portas para a legitimação da eutanásia… Para os menores, as portas parecem, às vezes, ter uma dimensão menor, como se tivessem menor dignidade. É mais fácil abrir portas mais pequenas do que portas maiores. Portanto, por uma natural evolução destas questões e até pelo paralelo que se tem feito noutras áreas, para os menores vai ser, estou convencido, ainda mais fácil abrir esta porta…
Até porque se procura responsabilizar os adultos perante os menores, sempre no intuito daquilo que é a perspetiva que os adultos têm sobre os menores, não os responsabilizando, para perceberem que esta decisão sobre menores tem de visar o bem desses menores e não o bem dos próprios. Este sofrimento é, às vezes, muito difícil para nós de suportar, mas quando ele é objetivado nos menores, parece ainda mais difícil.
Eu durante mais de 20 anos trabalhei em cuidados intensivos. Registo hoje, quando faço uma revisão desse trabalho longo que fiz, que perante tantas e tantas situações de doenças incuráveis e terminais, muito próximas de morrer e que terminaram efetivamente na morte das crianças, nunca vi nenhum pai pedir a morte dos seus filhos.
O que pode partilhar connosco da sua experiência de trabalho no último ano, num hospital que está na linha da frente na luta contra a Covid-19?
Depois de uma primeira onda, na qual fomos todos sacudidos com esta dimensão tremenda da pandemia, a resposta foi: para crises agudas, responder de forma aguda. Respondemos de forma eficaz à pandemia, mas à margem dela ficaram – e hoje percebe-se que de forma compreensível – algumas questões.
Os doentes não-Covid?
Os não-Covid. Mas isso percebeu-se ao fim de muito pouco tempo. Temos de compreender que, numa situação em que fomos todos apanhados desprevenidamente, alguns erros seriam cometidos. E foram. O importante é que o Hospital foi capaz de compreender alguns dos seus erros e, na medida do possível, preparou-se para, numa segunda onda, numa terceira onda, acautelar minimamente todos os outros que continuavam a existir, ao lado desta pandemia, a necessitar de assistência. Conseguimos, numa segunda onda brutal, do ponto de vista do impacto dos números e da força do sofrimento, manter uma atividade para os doentes não-Covid, sendo capazes de respeitar a emergência das suas necessidades.
Esse esforço é, de facto, notável e estou à vontade para o dizer, porque não trabalho, neste momento, na linha da frente. É um Hospital que se abre a esta dimensão global da sua responsabilidade com tantos outros doentes não-Covid e que acolhe as propostas que lhe vão sendo feitas no sentido de manter esta visão, de responsabilidade por todos, de que não pode declinar nesta fase.