Portugal: «Pobreza não é uma condição periférica, está no centro da vida de milhares de famílias» – António Saraiva

Neste domingo de Páscoa, fixamo-nos na pergunta: quantos vizinhos conhece pelo seu nome? A iniciativa é da Cruz Vermelha Portuguesa, que através das suas delegações está a distribuir um milhão de mensagens nas caixas de correio com essa pergunta, apelando à consciência social e à proximidade comunitária. António Saraiva, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, é o convidado da Renascença e da Agência ECCLESIA

Foto: RR/Beatriz Pereira

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 

Num país com a população mais idosa da União Europeia, sem retaguarda familiar em muitos casos, ganha mais importância a proximidade dos vizinhos?

Tem, diria eu, cada vez mais importância, porque, como referiu, nós temos cerca de 500 mil idosos que vivem sozinhos em Portugal, um número que, lamentavelmente, vemos crescer 2% ao ano. Temos em Portugal a maior percentagem da população idosa da União Europeia e a quarta maior do mundo. Isto deve inquietar-nos e, para além de nos inquietarmos, devemos encontrar respostas adequadas.

 

São esses dados que levam a avançar com a iniciativa?

São estes dados e a realidade que vamos constatando diariamente, através das nossas delegações e do acompanhamento que fazemos destas situações, que nos levam a este movimento da ‘Porta ao Lado’, precisamente para sensibilizarmos, porque cada vez mais a pobreza não é uma condição periférica, está no centro da vida de milhares de famílias. E, o que pedimos hoje à sociedade é que não finja não ver, não olhe para o lado, porque o lado muitas vezes é já a porta ao lado, efetivamente. E daí o nome do movimento o ‘Porta ao Lado’, porque muitas vezes nem o nome do vizinho conhecemos…

 

Para além desta ideia, que outras iniciativas tem a Cruz Vermelha para mitigar o isolamento social?

Temos uma grande proximidade, porque a Cruz Vermelha é composta por 147 delegações, de norte a sul do país, incluindo os arquipélagos da Madeira e dos Açores. Através destas 147 delegações temos um conhecimento de proximidade, trabalhamos junto das câmaras municipais, que sinalizam também estas situações. Posso destacar outros programas que temos, o ‘Cartão Dá”, da Cruz Vermelha, que substitui cabazes por cartões pré-pagos, promovendo assim a autonomia das famílias, e desde 2021 já beneficiou cerca de 10 mil pessoas. O programa ‘Mais Feliz’, que combate a pobreza com uma metodologia estruturada, e em 2024 apoiamos 950 famílias, sendo que destas 67% eram mulheres. E esta agora, de um milhão de mensagens distribuídas em caixas de correio, como referiu, precisamente para apelar à consciência social e à proximidade comunitária.

 

Que recetividade está a ter esta iniciativa? 

Está a ter uma recetividade por dois ângulos de abordagem. Uma enorme colaboração dos nossos voluntários, daqueles que fazem acontecer a Cruz Vermelha diariamente, e são cerca de 5 mil voluntários, 4700 em rigor, juntamente com os nossos 2800 colaboradores. Esta rede, a adesão que houve à entreajuda, à entrega das mensagens, à distribuição pelas caixas de correio, e depois a própria população que, sendo desperta, ganhando consciência para esta problemática, tem vindo a dar uma resposta, porque ao fim e ao cabo aquilo que pretendemos é captar receita para podermos acudir a um crescente número de pedidos que a Cruz Vermelha vem sentindo. E daí apelarmos a esta consignação do IRS, para que possamos mais eficazmente cumprir a nossa missão de ajuda.

 

No Domingo Páscoa, como vemos, há grandes manifestações comunitárias, particularmente no Norte do país. Muitas pessoas até vão de casa em casa, no chamado Compasso, e depois temos o contraste de pessoas a viver este dia sozinhas, ou quase. Esta data em particular é também uma oportunidade para sublinhar a importância das relações de proximidade e até de portas abertas, da porta ao lado, num mundo que está cada vez mais individualizado? 

Nós sentimos que sim, porque, como diz, num mundo cada vez mais individualizado, num mundo em que cada vez mais o ser humano está virado para si próprio, porque está fechado nas redes sociais, na internet, muitas vezes não vê as realidades que lhe estão próximas. Isto é um fenómeno que acontece cada vez mais, pelo menos nos grandes centros urbanos, os guetos em que se entra, lamentavelmente. Coisa que a nível do Interior não se perceciona tanto, não é uma prática que aconteça, porque as pessoas têm mais partilha, têm mais proximidade, têm mais entreajuda, e é este humanismo, é esta partilha, é este conhecer o vizinho… a Páscoa, como também o Natal, são alturas em que despertamos, e o ser humano fica mais desperto, mais disponível para estas realidades. E sim, é aproveitando estes tempos e estes momentos, como agora é a Páscoa, que fazemos este apelo precisamente para ir ao encontro da sensibilização, porque ganhar a perceção para os problemas é meio caminho andado para resolver.

 

Refletimos aqui sobre o isolamento, uma realidade com grande dimensão nos centros urbanos, contudo, o problema também já se verifica em meio rural, embora aí, na maior parte das vezes, ainda se possa contar com a chamada solidariedade do vizinho – ou isso também se vai perdendo?

Uma população mais velha, diria, mais sénior, ainda pratica essa solidariedade, essa partilha. Aquilo que se sente nas camadas mais jovens, com as honrosas exceções que sempre existem, é que se vai perdendo essa solidariedade, esse espírito de entreajuda, mas ele ainda está muito presente, principalmente nas camadas mais seniores, como lhe digo. Mas há uma realidade que vem alterando e daí estas campanhas, estes movimentos que a Cruz Vermelha vai desenvolvendo, para que as pessoas ganhem a perceção, porque muitas vezes gerar perceções, como eu costumo dizer, gerar e gerir perceções é aquilo que se deve atingir, seja na política, no dia a dia, na família, e criar esta perceção das necessidades que muitas vezes estão ao nosso lado é fundamental.

 

As boas perceções?

As boas perceções…

 

Além das iniciativas da sociedade que visam promover a coesão social, faltam políticas ao nível do Estado para combater o flagelo do isolamento, da pobreza, daquilo que temos vindo aqui identificar?

Na nossa perspetiva, sim, faltam políticas públicas, porque independentemente daquelas que existem, muitas vezes falha a sua aplicação no terreno. E, sendo a função social uma das funções do Estado, o Estado recorrendo como recorre, invariavelmente, protocolando com a sociedade, neste caso com o setor social, acaba o setor social por desenvolver esta função do Estado. E muitas vezes de uma forma que o Estado, delegando essa responsabilidade, nem sempre vai ao encontro da correta resposta – porque nessa proximidade que temos com as populações através dos nossos meios, das nossas delegações, e da proximidade da partilha com as câmaras, temos essa realidade mais percecionada. O Estado não só não paga o suficiente, porque se o Estado tivesse de cumprir a sua missão e fosse ele o único a desenvolver esta função social, teria um custo orçamental muito maior do que aquele que tem, e por isso socorre-se do setor social, não pagando o justo valor – a inflação vai-se encargando de aumentar anualmente estes valores, e o Estado nem sempre, acompanha, para não dizer, invariavelmente. E depois o pagamento tardio destas metodologias que as políticas definem, mas que depois tardam em ser cumpridas, como lhe digo, quer na adaptação aos tempos e às novas necessidades, quer no pagamento adequado e pontual destas situações.

 

Ou seja, o Estado não pode delegar e lavar as mãos, digamos assim.

Não o deveria fazer… Não o deveria fazer.

 

Da sua experiência, o que é que é necessário fazer, para além dessa delegação de competências com a necessária mochila financeira e atempada? 

Uma maior ligação ao setor social e os municípios, também, que não podem ser retirados da equação. O Estado, recentemente, delegou nas autarquias um conjunto de competências a este nível. É uma maior proximidade, uma maior participação, uma maior colaboração com o setor social, e depois uma revisão das metodologias e dos programas, porque alguns deles estão desadequados. A realidade, o mundo hoje muda muito velozmente, como sabemos. Temos desafios completamente diferentes hoje do que tínhamos há 10, 15 anos. Há valências, como é o caso da violência doméstica, como é o caso do sem-abrigo, com um crescimento exponencial e é necessário adequar as políticas públicas às novas realidades e participar, colaborar com o setor social de uma forma mais correta do que aquela que por muitas vezes existe.

 

Voltamos agora a uma questão que falamos no início, porque está aí a campanha eleitoral à porta, e até ao momento não se tem ouvido falar muito em envelhecimento da população. Somos o país da União Europeia com maior percentagem de idosos, com meio milhão de idosos a viver sós. É preciso convocar os partidos para a perceção, como dizia, deste problema? 

É, é preciso convocar os partidos, porque aproveitando, como diz, este momento eleitoral, mais do que debater aquilo que é pueril, aquilo que não tem conteúdo, muitas vezes em guerras político-partidárias, que a população pouco interesse tem para elas. E estes assuntos, como é definir um objetivo de crescimento económico para o país, com esse crescimento económico darmos melhores condições de vida às populações, termos mais capacidade para programas que são necessários. Sim, há que chamar a atenção dos partidos políticos para esta realidade, porque sendo importante discutir o crescimento económico, a defesa, a educação, há também que olhar para a saúde e, dentro da saúde, para situações daqueles que estando isolados, que estando sozinhos.

É necessário, como nós fazemos na Cruz Vermelha, chegar-lhes de alguma maneira. E há que despertar consciências para que os partidos políticos, atingindo o poder, como obviamente é aquilo que os partidos tentam é chegar à governação, sejam sensibilizados para esta realidade. E depois o governo, ou mesmo o parlamento, num conjunto de iniciativas parlamentares, porque é o parlamento que faz a legislação, encontrem respostas adequadas a estas realidades, porque esta população idosa tem necessidades específicas, há que monitorizá-los, há que ver em que condições se encontram. Nós, Cruz Vermelha, temos essa preocupação e temos medidas de chegar a eles através da nossa teleassistência, que estamos a desenvolver com novas metodologias, atendendo ao nível de equipamentos que hoje há para essa monitorização. E sim, há que despertar os partidos políticos para esta realidade e exigir que o parlamento produza a legislação adequada a estas novas necessidades.

 

E há também necessário rejuvenescer o país. Não há uma verdadeira aposta em políticas de incentivo à natalidade? 

É um tema a que também não se quer olhar devidamente, mas a natalidade é um dos problemas que o país tem. Ainda na altura em que era presidente da CIP (Confederação Empresarial de Portugal), em concertação social, entregamos um estudo  – salvo erro ao primeiro governo de António Costa – onde sinalizávamos um conjunto de medidas para promover a natalidade. Porque a natalidade é um dos problemas, como disse e repito, que a sociedade portuguesa tem e para o qual temos de encontrar políticas corretas, porque este envelhecimento da população, esta perda de cidadãos que vamos sentindo pelos poucos nascimentos, trazem problemas de dimensões de várias naturezas, não só a nível da população ativa, do crescimento económico – isso é um problema que não é apenas português, é um problema da Europa, a União Europeia tem de olhar também para isto, porque comparativamente com outros povos, com outras geografias, nós caminhamos para um número de população que compara mal com outras regiões…

 

No atual contexto, se não fosse a imigração, provavelmente o país já teria muita dificuldade ao nível da mão de obra…

É um tema que está na agenda, como sabemos, a questão da imigração e as notícias que vão saindo, nem sempre adequadas à realidade, nem sempre interpretando corretamente a realidade. Como é comum dizer-se, e penso que todos percebemos, Portugal hoje não viveria sem imigração. Nós temos um conjunto de atividades económicas que necessitam de imigração, porque os portugueses deixaram, abandonaram, estão pouco recetivos a determinados postos de trabalho, a determinadas profissões, e setores como a construção, a restauração, a agricultura, não viveriam hoje sem a imigração, sem o acolhimento correto de imigrantes, e isso é que tem de ser tratado. Temos de encarar a necessidade de que temos, para realizar determinadas tarefas, temos de ter uma política de imigração adequada, correta, não acolher sem método, saber acolher. Saber acolher exige um trabalho adequado, trabalho digno, habitação, enfim, há um conjunto de questões que uma correta política de imigração deve atender.

 

Foto: RR/Beatriz Pereira

Um dos indicadores mais reveladores da falta de retaguarda de que vimos falando é o do número dos chamados internamentos sociais. Esta semana ficamos a saber, através do barómetro da Associação dos Administradores Hospitalares, que se bateu o recorde desse tipo de internamentos inapropriados com mais de 2300 casos. Como responder a esta questão? 

Diria, que o Hospital da Cruz Vermelha, felizmente, não tem essa situação. Mas, infelizmente, é uma situação que vem aumentando, como disse bem, e que deve envergonhar, deve envergonhar a nossa sociedade, devemo-nos inquietar com esse fenómeno. Hoje as famílias numa situação cada vez mais débil, em termos de receita, tendo cada vez maiores dificuldades, e própria sociedade, com vencimentos que não fazem face aos seus compromissos, tem hoje dificuldades acrescidas num vasto conjunto de matérias. E por isso temos o aumento dos sem-abrigo, temos o abandono de pessoas em hospitais, entregando moradas falsas, e depois não indo buscar os seus familiares, é uma questão que nos deve envergonhar, mas para a qual temos de saber encontrar respostas. Não há balas de prata, não há varinhas mágicas. Há toda uma preocupação social, toda uma interação entre o Governo e a sociedade civil, e muito com o setor social, para encontrarmos as melhores soluções, porque, isto é, de facto uma vergonha nacional que temos de combater.

 

Esta conversa identificou várias dificuldades sociais, económicas, humanas. Estamos a celebrar a Páscoa, que traz sempre consigo uma mensagem de esperança. O que é que nos faz ainda acreditar no futuro? 

O humanismo de que o ser humano é dotado, a nossa condição humana, e, de um modo geral, o facto de ainda estarmos num tempo, apesar dos enormes desafios que todos vamos sentindo, com estas tensões geopolíticas, com estas questões de conflitos internacionais, em que o humanismo ainda desperta, em determinadas ocasiões, e esta é uma delas. Felizmente, podemos olhar o futuro, porque o bem ainda se sobrepõe ao mal, e esse é o apelo que deveremos fazer à nossa consciência humana, é que não deixemos que o mal se sobreponha ao bem. E isso leva-nos a uma inquietude cívica, a uma participação, a uma ação coletiva que não nos pode abandonar, porque é da participação de todos nós, daquilo que cada um de nós pode dar ao outro, ao seu vizinho, ao seu amigo. É esta partilha, este humanismo, que a mim pessoalmente me faz acreditar que o bem se continuará a sobrepor ao mal.

Partilhar:
Scroll to Top