Portugal: «Não se leva a sério o mundo da prisão» – padre João Torres

Apresenta-se como um projeto de causas e de pessoas e é o maior presépio ao vivo da Europa. Este ano, o presépio ao vivo de Priscos, para além de prosseguir com o seu grande objetivo de integração da comunidade de reclusos, dá uma importância particular à questão da violência doméstica e em particular, a violência no namoro. O padre João Torres, coordenador da Pastoral Penitenciária da Arquidiocese de Braga e principal dinamizador deste projeto, que já vai na 16.ª edição, é o convidado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia

Foto: Agência ECCLESIA/OC

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Vamos começar pela visibilidade que quiseram dar este ano ao fenómeno da violência doméstica que, segundo muitos especialistas, aumentou em tempo de pandemia. A ideia é mesmo a de sublinhar esta marca do aumento substancial dos casos de violência?

Sim. Eu acredito que o Natal ajuda as pessoas a refletirem mais sobre o humano que existe nelas. E seria penoso alguém oferecer um presente à sua namorada ou ao seu namorado e depois virar uma espécie de inspetor. Quando é que utiliza esse presente?

Imaginemos um perfume. Em que circunstâncias o utiliza? Com quem utilizou? Em que ambiente o utiliza? No jantar dos colegas de trabalho? E porquê, se fui eu que teve esse perfume? Só o deve utilizar quando estás comigo, por exemplo. E eu acho que é importante que as pessoas, ao oferecerem presentes elas próprias, possam refletir se elas são como pessoas, um presente para aquela pessoa.

Aliás, todo o mistério do Natal ajuda a refletir sobre isso. Deus, quando se apresenta no nosso meio, Ele é um presente. E um presente que nós vamos descobrindo nos momentos da nossa vida, os melhores ou dos piores. Mas ele nunca impõe nada.

 

E este é um dos problemas que mais afeta a nossa juventude, a violência?

Eu acho que sim, porque as pessoas não têm muito tempo para refletir. As pessoas vivem muito no improviso e no impulso e pensam que isso é que é verdade delas próprias. Isso traz problemas sérios. Muitas das nossas escolhas, se elas não são constantemente avaliadas e se eu constantemente não me ponho numa linha de reflexão, avaliando como é que eu sou como pessoa, obviamente que isso traz estragos.

 

No caso dos casos de violência doméstica, temos um olhar muito atento e necessariamente compassivo sobre as vítimas. E eu queria fazer lhe uma pergunta sobre os agressores. Temos encontrado como sociedade a melhor forma de lidar com quem agride e qual é o lugar da reabilitação nestes casos?

Eu acho que é muito importante que nós, como sociedade civil, o próprio governo e todas as instâncias de governo que lidam com esta problemática, refletirmos sobre que tipo de encarceramento nós temos no nosso país. Como ele é que é avaliado? Como é que ele é projetado? Como é que estão a ser feitos os planos de readaptação pessoal de reclusos?

Este plano obedece a critérios de humanização? Faz com que a própria pessoa possa realmente construir um caminho, fazer um processo para que, quando chega o dia da sua liberdade, ele seja melhor pessoa do que aquilo que era quando entrou na prisão.

 

E não se torne uma ameaça ainda maior às vítimas, porque se sai com desejo de vingança, a situação pode piorar significativamente, não é?

Obviamente. Eu acredito que estes processos, até dentro dos seus momentos prisionais, são difíceis. Não são fáceis. E o Estado português não pode ele próprio fazer tudo. A sociedade civil, a própria Igreja Católica e os senhores bispos era bom que refletissem. Quantos assistentes rituais religiosos têm dentro das prisões? Já agora, a lei de 2009, está a ser cumprida nos estabelecimentos prisionais?

 

Não está?

Não está. E não vejo grande preocupação da nossa Conferência Episcopal em que a lei seja cumprida. É importante que tenhamos párocos em paróquias e em outras instituições ligadas à Igreja Católica, mas se não temos um assistente espiritual religioso dentro das prisões ou nos hospitais, não vale a pena estarmos a falar sobre defender a vida, a dignidade da vida, quando nestes sítios a vida tantas vezes anda tremida, e nós estamos fora. Isto não vai lá com palavras. Isto vai com pessoas.

 

Com relações…

E com relações. Uma Igreja que não esteja num processo de humanização da própria sociedade, nos sítios onde tantas vezes o ser humano sofre – seja de doença ou porque está privado de liberdade – serve para quê? Para fazer discursos? Isto devia-nos ajudar a refletir. Nós vamos todos fazer mensagens de Natal, de grande fraternidade, do amor de um Deus que nasce, só que depois isso tem de se ver na carne. Isto tem de fazer doer as entranhas. E faço aqui um apelo a todos os nossos bispos que acredito que alguns se interessam e se preocupam. Mas não vale a pena fazer mensagens de Natal, se nós depois, nestes locais de modo particular, não somos Natal, não ajudamos a nascer.

 

Falemos do espírito natalício que encarna no presépio de Priscos. Qual é a importância social para a comunidade deste projeto? Nós estamos a falar de um espaço com 30.000 metros quadrados, com mais de 90 cenários e 600 figurantes. Isto exige um esforço particular de ajuda da população local?

Sim, eu acho que as pessoas entram sempre na corrente da vida quando começam a verificar que a coisa é séria, que é coisa séria para elas, porque a ajuda a refletir também sobre este mistério do Natal. As ajuda a estarem juntas e a terem um sentido de pertença afinado. Quando nós pertencemos a alguma coisa, a uma comunidade e nos reunimos como pessoas, nós partilhamos palavras, nós comemos juntos. Nós sentimos que a nossa vida começa a estar unida. Não estamos sozinhos e isso evita depressões, evita a solidão e faz com que as pessoas, de uma certa forma, também se possam abrir a outros projetos. É por isso que nós, desde a primeira hora, sempre nos fomos preocupando com outras pessoas, nomeadamente com o norte de Moçambique, onde o presépio ao vivo de Priscos edificou lá um poço de água. Todos os anos vamos mandando algumas verbas também daquilo que angariamos no presépio para essa comunidade. E depois temos este processo de reinserção social dos próprios reclusos.

 

Essa é uma pergunta que eu quero fazer essa palavra de reinserção, de reabilitação. Imagino que para si seja muito querida como capelão prisional. Que balanço faz destes 16 anos desse trabalho com reclusos no Presépio Priscos?

Olhe, é um caminho. É um caminho e foi um caminho de moroso e penoso, porque é muito difícil às próprias pessoas da comunidade ver chegar uma carrinha prisional com um guarda prisional. E aí vêm eles. Isto agora vai ser aqui o fim do mundo, porque vêm os maus…E a própria comunidade foi se habituando a olhar para esta gente como gente. Gente que tem direito a ter uma oportunidade. Gente que tem direito a sonhar. E vejam só que neste processo que fomos fazendo com os reclusos, nós, neste momento temos reclusos a viajar em transportes públicos.

 

Essas oportunidades foram sendo aproveitadas?

Foram. Eu acredito que os índices de sucesso, se é essa palavra que poderíamos dizer, rondou os 92, 93%. Depois vamos acompanhando estes percursos. Estes mesmo reclusos comem num espaço público onde as pessoas vão e sabem que eles são reclusos. Mas já não há aqueles olhares, aquelas palavras. E depois, durante o dia eles estão ali a trabalhar. E os nossos ouvintes imaginem que há pessoas da comunidade que frequentam aquele espaço todos os dias e há reclusos que já chamam algumas pessoas o meu tio, o meu avô e a minha avó.

Ou seja, isto demora tempo, mas isto é importante porque estas pessoas depois também vão carregar nas costas o peso do amor que lhes foi dado e que não podem trair. Quando me encontro com alguns reclusos – ex-reclusos que depois seguiram a vida por outros caminhos -e agora estão muito bem, vêm a comunidade paroquial de Santiago de Priscos. Vêm batizar os seus filhos vêm pedir o sacramento do matrimónio.

Lembro-me até de um que há uns tempos me veio falar, ou confidenciar que tinha uma relação que era um bocado instável e que isso podia provocar alguns dissabores. E eu, conhecendo-o já há uns anos, disse: cuidado. Com o feitio tipo tempestade que tu tens, tu tens de decidir muito bem o que é que hás de fazer. Qualquer dia voltas a cometer outra asneira e voltas a ser preso. Nunca te esqueças daquilo que te levou antes à prisão.  E fez-lhe bem porque passado uns tempos voltou-me a encontrar e disse: eu estive a refletir e realmente eu parti para outra cena; disse-me Ele. Porque aquela cena ia-me levar novamente à prisão.

 

O Papa Francisco enviou uma carta aos chefes de Estado convidando os a gestos de clemência para com quem está privado de liberdade. Tendo em conta o recente histórico de indultos em Portugal, esta é uma mensagem para ser bem escutada no nosso país?

Eu acho que sim. É importante que o nosso Parlamento, o nosso Governo, não fique tão preso a quem faz o pedido, mas que olhe bem para o pedido, porque às vezes podemos pensar: “foi o Papa que o fez”, “estas questões da Igreja”… E deixamos andar.

 

Foto: Agência ECCLESIA/OC

No ano passado tivemos cinco indultos em Portugal. É pouco?

É muito pouco! Como não existe uma política séria de reabilitação social, ela reflete se depois nos indultos que são dados. Porque se nós conhecêssemos melhor a prisão, se os muros da prisão se fossem tornando pontes – porque eu acho que os muros da prisão não são para que aqueles que estão lá dentro não poderem sair, são para que os que estão cá fora não olharem lá para dentro – e se olhássemos mais lá para dentro, íamos perceber que há tanta gente que poderia estar num processo de liberdade, que podia ser condicionada, mas que podia estar numa situação diferente. E poderiam ser uma mais-valia para a sociedade.

 

Há números que podem ajudar à nossa reflexão: Portugal é o país da União Europeia com mais presos por 100 mil habitantes, é país onde se cumpre o maior tempo médio em relação ao cumprimento de pena. Isto é necessário uma mudança de mentalidade ou esta realidade é reflexo da sociedade pouco solidária de que estava a falar?

É importante percebermos que os organismos que temos do Estado para a política carcerária em Portugal terão de ser todos avaliados. E aqueles que estão nesses serviços têm condições para fazerem o seu trabalho? Um técnico de reinserção social não tem um carro para se deslocar a casa da família de um recluso para perceber se esta família tem condições para poder acolher o seu familiar que está detido e se os processos de paz na própria família estão corretos, no sentido de o aceitarem.

 

Não têm condições para executar o seu trabalho…

Obviamente! Os guardas prisionais, por exemplo: como é que eles estão a ser tratados no nosso país? Eles não podem ser agentes de segurança de segunda. Esta gente tem que ser tratada com a dignidade que merece. Um guarda prisional muitas vezes está dentro da prisão e está sobre uma pressão enorme, porque depois os reclusos reclamam aqueles que lá estão.

 

São o rosto do sistema…

Os guardas prisionais no nosso país são presos com os presos. É importante que estas pessoas também sejam tratadas com dignidade para que elas próprias se sintam bem e possam tratar bem quem lá está. Os próprios técnicos de educação que estão dentro estabelecimentos prisionais: que ferramentas eles têm para poderem verdadeiramente ajudar os reclusos a fazer este processo de reabilitação social? E os diretores, que liberdade têm? Se tudo o que tem de decidir tem de vir da central, a base é desvalorizada…

 

Os números avançados dão a ideia de que vivemos num país muito inseguro. Há aproveitamento político neste campo da ideia da punição dos criminosos, que coloca em segundo plano a sua reinserção?

Não se leva a sério este mundo da prisão. É um mundo segundo e nós ficamos longe. Sempre que alguém comete alguma coisa menos boa para a sociedade, para encantar a sociedade, nós colocamo-los lá dentro. Só que depois as pessoas esquecem-se que estas pessoas vão ter de sair um dia (nós em Portugal não temos prisão perpétua, ainda bem). E como é que elas vão sair? Isso já não interessa! Sai, comete outro crime… E arrisco-me a dizer: uma pessoa esteve detida por causa de um crime cometeu, volta outra vez à sociedade e volta a cometer o mesmo crime… Eu acho que no banco dos réus se deve sentar aquele que cometeu o crime, mas também aqueles que tiveram a responsabilidade do reabilitar e não o fizeram. Deviam também ser penalizados por isso. Mas no nosso país isso não existe.

Basta pensar que, por exemplo, todos os relatórios que são feitos relativamente aos reclusos, com que seriedade são feitos? Os atores que estão na elaboração destes relatórios só são atores dentro do próprio sistema prisional? Há outros atores? Onde é que estão as pessoas da sociedade civil? Imaginemos um patrão que acolhe durante uns tempos um recluso que está no regime aberto para o exterior: esta pessoa é consultada se ele deve ou não ser libertado? Como é que está a correr o trabalho dele? Ele respeita horários? Ele tem uma postura disciplinada no trabalho? É alguém afável com os outros colegas? Isto nem sempre existe…

 

A caminho do Natal, que mensagem gostaria de deixar a população prisional que porventura nos esteja a ouvir e que reflexão se exija as autoridades, neste tempo?

A todos os reclusos e reclusas digo: não percam a esperança. A prisão não é perpétua. Mais tarde ou mais cedo, vais ser em liberdade! E aproveitem esse tempo que estão detidos não para passar a vida a lamentar porque estão detidos, mas aproveitem o tempo para sonhar: “a minha vida pode ser melhor”.

Aproveitem bem as pessoas que gostam de vós, as pessoas que vos visitam, nomeadamente o marido, a esposa, os filhos ou os pais, os amigos… Aproveitem essa e essa força que eles vos dão.

A todos os que são intervenientes e protagonistas dentro do sistema, digo-lhes: não deixem de fazer força para que possam fazer um trabalho sério. Eu acredito que não é fácil para vocês estarem numa política de reivindicar isto ou aquilo, porque depois é-se mal visto. Mas era importante que quer os técnicos, os técnicos de educação, os guardas prisionais e quer os próprios diretores dos serviços prisionais façam força para que as coisas possam ser diferentes e olhem para as Igrejas, não só para a Católica, mas para as outras Igrejas, que queiram fazer um trabalho sério dentro das prisões.

Deixem-nos trabalhar. Deixem-nos estar dentro da prisão, não para vender a religião, mas para poder ajudar nos processos de humanização dos próprios estabelecimentos prisionais.

 

O Natal é uma oportunidade para ir ao encontro daqueles que são colocados em segundo plano e excluídos ao longo do ano. Sente alguma mudança concreta?

A Covid trouxe coisas terríveis: os portugueses sentiram na pele o que é estar preso. A COVID não trouxe melhoramentos à vida de reclusos, pelo contrário, privou-os de muitas liberdades que, dentro da prisão, ter de as ter para se sentirem pessoas, para se sentirem gente. E temos todos de refletir, não tanto a criticar uns aos outros – porque as pessoas quando me ouvem, podem pensar: ele está sempre a criticar tudo e todos! Creio que não. A minha missão enquanto sacerdote dentro de uma prisão é ajudar a refletir: aquilo que eu sou como pessoa, lá dentro, como é que eu os posso ajudar, mas também poder ajudar a outros a refletir sobre o trabalho que fazem. No fundo, todos devíamos estar preocupados com aquelas pessoas.

 

Os recursos vão se levar ao Natal e aqueles que não vão fazer, como é que a pastoral penitenciária pode chegar até eles?

Em Braga, já há uns anos, o senhor arcebispo primaz (antigamente, D. Jorge Ortiga, agora D. José Cordeiro) oferece todos os reclusos um presente.  É um kit que tem um chocolate, uma pasta para lavar os dentes, tem um sabonete, tem uma carta escrita por um jovem ou por uma família, às vezes até mais do que uma, e tem uma mensagem do próprio arcebispo para cada recluso, seja ele cristão ou não, agnóstico. É uma mensagem humana, sem qualquer preocupação de converter alguém. Eu acho o humano converte e oferecermos um presente a todos reclusos… Eles abrem o presente na noite de 24 para 25. E o mais interessante é que eles leem as cartas uns dos outros e alguém me dizia: como é bom saber que alguém nesta noite, estando em sua casa, também pensou em mim.

 

Portanto, haverá a celebração do Natal na Arquidiocese de Braga?

Sim, desta forma. O ideal é que houvesse uma grande celebração, com a Eucaristia para aqueles que são crentes, para os reclusos católicos. Mas temos caminho a fazer. Eu acredito que será diferente no futuro.

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Agência ECCLESIA

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