Portugal: «Não podemos ir para respostas que alimentam lucros privados, sem criar as casas para quem precisa delas»

Num momento em que cresce o descontentamento sobre a crise da habitação, é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia o arquiteto Daniel Lobo, membro da Comissão Justiça e Paz e Ecologia, dos Institutos Religiosos de Portugal, uma das entidades promotoras da Carta da Habitação

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Vamos começar por dar a conhecer melhor esta iniciativa da Carta da Habitação. Quais são os seus objetivos?

Os objetivos da Carta da Habitação são, essencialmente, retomar aquilo que era também uma prática antiga dos religiosos e religiosas que estão inseridos em comunidades nas periferias humanas e geográficas, criando encontros alargados para ativistas, académicos, etc., que se interessam neste tema, e criar uma reflexão, perceber o que está a acontecer. Temos assistido a alguma retirada destas comunidades inseridas e, portanto, o retomar destes encontros vinha nesse sentido; daí chegou-se à conclusão de que o tema da habitação seria o prioritário e decidiu-se redigir uma carta aberta para também nos fazermos ouvir e, no fundo, abrir a reflexão que estávamos a fazer a todos.

 

Queria lembrar que o Papa Francisco falou várias vezes naquilo que ele chamava os três ‘T’, terra, teto e trabalho. Intervenções que nem sempre foram bem acolhidas… o direito à habitação, especificamente, deveria estar mais no centro das preocupações dos responsáveis católicos?

Gostaria de ter essa noção, se estão ou se não estão, se deveria estar ou não estar…

 

No caso, chegou-se à ideia de que era preciso debater o tema…

Exatamente, sim. É mais essa a questão, ao estarmos em contacto com outros que têm estas preocupações, que gostariam de trabalhar sobre o tema e que talvez se estivessem a sentir mais sozinhos, ou um bocado, digamos, sem saber o que fazer, etc. Unir as mãos pareceu-nos bastante importante, precisamente no momento em que estávamos a viver e que continuamos a viver.

 

Mas já estão a despertar consciências, não é?

Sim, uma das funções era essa, despertar consciências, trazer a questão das falhas estruturais do modelo económico e social, que nos parece mais importante também refletir, perceber que a crise da habitação é só um sintoma desse modelo maior. Se os religiosos pudessem estar mais atentos, pudessem intervir mais, se nós pudéssemos estar mais juntos em relação a este aspeto estrutural, certamente poderíamos também dar o nosso contributo. Isso podia vir a ter resultados na crise da habitação, como noutros aspetos.

 

Provavelmente não seria necessário, mas a própria Comissão Europeia diz que os governos portugueses não estão a ser eficazes na resposta à crise no setor da habitação e recomenda medidas concretas, nomeadamente o controlo de rendas ou a imposição de limites ao alojamento local. As vossas preocupações também passam por aqui?

Sem dúvida, aliás, o que a Comissão Europeia vem dizer não é nada de novo, já os movimentos ativistas, académicos, a própria Igreja tem vindo a refletir sobre isso. A nossa preocupação e a nossa posição também passa por aí, reflete esses aspetos:  através da nossa experiência mais concreta, percebemos que há muito que as políticas públicas da habitação falham e isso, obviamente, tem repercussões graves, tem vindo a ter repercussões cada vez mais graves. É impossível não ver o que está a acontecer, não sentir o que está a acontecer nas nossas comunidades, em todo o lado.

 

Um dos problemas que podemos identificar é que não há concertação política sobre o tema: há propostas, como falávamos ainda pouco, no sentido do controlo de rendas, e há quem afirme o contrário; um governo avança com o plano da habitação, quando vem o governo seguinte muda. O Grupo Habitação e Habitat pode ajudar também a trazer luz para este debate, apontar caminhos?

Penso que sim, já temos tido algumas ideias também, o objetivo deste grupo é colaborar também na superação da crise habitacional, sem substituir o Estado. É sempre a nossa preocupação, não há que substituir, há que reforçar, há que colaborar, ser uma força positiva. Neste grupo, a missão, obviamente, para além de reforçar essa entreajuda, essa responsabilidade, é também, através de gestos concretos, fazer o nosso trabalho de casa, fazer o trabalho a partir do interior da Igreja. A nossa prioridade, a primeira ação foi um questionário para mapear a oferta de alojamento social na Igreja, algo a ser elaborado, pensou-se que seria um levantamento nacional, mas percebemos que não haveria essa capacidade ainda…

 

Não vai ser possível fazer esse levantamento?

Eu penso que será possível.

 

Tem prazos para o apresentar?

O nosso prazo é o mais breve possível. Fazem parte deste grupo técnicos de ação social, diretores de serviços de apoio a migrantes, académicos, é gente que já está muito envolvida em dar a resposta diariamente às necessidades mais prementes do país, ligados à habitação e não só. Há pouco tempo para o que for, mas é gente que está comprometida, que quer fazer alguma coisa, que quer levar para a frente esta iniciativa, portanto, apesar de não termos a capacidade para fazermos nós o levantamento a nível nacional, um levantamento, que seria algo muito mais exaustivo, achamos melhor começar com um questionário para saber se há interesse e há capacidade também da parte dos Institutos. Nesse questionário já fazemos alguma recolha de dados, já acabamos por fazer um primeiro levantamento e não só nessa área, também na pastoral social e nos serviços de apoio a migrantes.

 

E há muitas soluções de alojamento social que os Institutos religiosos possam oferecer?

Sim, há várias soluções. Eles já as oferecem, isso acontece há muitos anos em várias comunidades religiosas, em situações de emergência ou mesmo situações de longa duração, alojamento de longa duração, há essa capacidade. Nós conhecemos situação de uma boa parte das comunidades religiosas e sabemos que há um decréscimo de vocações, há um envelhecimento, há toda uma série de constrangimentos que podem ser também vistos como uma oportunidade, porque os espaços também ficam vazios. Há necessidade de revitalizar as comunidades, há necessidade até de apoio.

 

É viável pensar fazer de mosteiros, conventos que estejam agora menos ocupados, espaços de habitação?

Sim, sim, nós acreditamos que é viável.

 

Mediante uma grande transformação…

Teria de se ver caso a caso, não é? Do ponto de vista da adaptação física dos espaços, eu acho que até a maior dificuldade poderá ser a adaptação institucional. Uma decisão pastoral e institucional que se adapte a esse novo uso dos edifícios, mas de todos os pontos de vista é possível serem adaptados esses espaços. Temos exemplos disso, por exemplo, no Convento de Balsamão, emMacedo de Cavaleiros, já acolheu mais de 140 refugiados. Temos projetos de comodato com a JRS e dois Institutos religiosos em Vila Nova Gaia e em Vendas Novas. Temos o tal alojamento de longa duração de Institutos em várias cidades do país, Braga, Lisboa, Louros, Odivelas. Portanto, de facto, já há exemplos e há boas práticas.

 

E há boa recetividade?

A recetividade ainda não foi testada, digamos assim. Os resultados t do questionário estão a ser analisados e, a partir daí, o próprio questionário já coloca essas questões, se estão interessados em boas práticas, em conhecer boas práticas ou se têm património devoluto ou desocupado que possam utilizar para combater esta crise. Por aí já vamos obter alguns resultados, mas penso que sim, em geral. Eu fiz alguns telefonemas, algumas pessoas, alguns Institutos tinham dificuldade em aceder ao formulário, que era online, portanto, acabei por falar com algumas provinciais e percebi que, claro que há lições a aprender do passado, pode haver más experiências também que possam estar a influenciar, mas, em geral, acho que há espaço para esperança e abertura.

 

Alargando o olhar para a sociedade também no seu todo, pergunto-me se há preocupação com os despejos e as ameaças de despejo?

Sim, sem qualquer dúvida, aqueles de nós que acompanham mais de perto situações de despejo estão profundamente preocupados, principalmente aqueles despejos que vemos que são forçados e sem alternativa.

 

E isso está a aumentar?

Nós vemos aumentar, obviamente, não conseguimos, se calhar, nem chegar a 10% de tudo o que está a acontecer, daí o trabalho que a Comunicação Social faz ser tão importante em trazer estes casos a público, mas sabemos que há muitos casos que não têm voz.

 

Como é que olha, por exemplo, para uma situação em que uma entidade pública, uma Câmara Municipal, como é o caso de Loures, se prepara para promover despejos?

Ficamos um pouco ou bastante perplexos no meio destas situações. Sabemos que há razões políticas por trás desta questão, não vemos que haja tanto questões de justiça, apesar disso ser apresentado como o justificativo desses despejos. Se olharmos para todo este contexto que estamos a viver, se olharmos para o que tem sido feito também pelos anteriores executivos, é de facto injusto colocar ónus todo, neste caso, especificamente no caso dos arrendatários da Câmara Municipal, que têm dívidas. Acho que é demasiado, digamos, abusivo, colocar todo o ónus sobre estas pessoas quando não são os únicos responsáveis pelo que lhe está a acontecer.

 

Receia que haja aqui uma cedência a um determinado tipo de política, de populismo?

Essa poderá ser uma explicação do que está a acontecer. Claro que os políticos querem mostrar resultados, isso também lhes dá chão, dá-lhes substância e valor, mas esses resultados não podem ser resultados forçados e imediatistas, pouco sensíveis às necessidades das pessoas, acabam por ser resultados negativos. O que nós temos vindo a assistir aqui é, digamos, em vez de olharem para o contexto e procurar medidas mais preventivas, encontrarem programas sociais como o ‘Housing First’, que possam dirimir as consequências, ou em vez de procurarem chegar mais próximo das pessoas… porque a questão que o presidente da Câmara Municipal de Loures referiu que não têm tido respostas de cerca de 400 famílias. Ora, isso é uma falha de comunicação grave, não haver uma resposta, quando há a possibilidade de um despejo, quem é que está interessado em ser despejado?

 

O autarca alega que já foram feitas três notificações e que nunca responderam…

Quem está próximo destas pessoas, quem as acompanha, sabe que a realidade destas pessoas é muito diferente do cidadão comum: há pessoas que estão em situação de doença tão acamados, há pessoas que têm problemas de aprendizagem, até não conseguem ler. A maior parte das pessoas que eu acompanhei não conseguia ler uma carta, não percebiam o conteúdo das cartas, por muito simples que fossem, portanto, veem-se numa situação em que podem ter alguma dívida avultada, num contexto de crise em que há fome, de facto, podem ser mães sozinhas, há uma série de vulnerabilidades que têm de ser acauteladas, não pode ser uma medida igual para todos. Não havendo comunicação, se não há essa comunicação, se a justificação é não haver resposta, perante todas estas evidências, eu penso que não é justificação plausível, nem aceitável. O primeiro passo devia ser aproximarem-se, conhecer caso a caso, e então vir até, de preferência, explicar a público as razões pelas quais o despejo aconteceu, se é assim tão justificável.

 

Falava há pouco das pessoas que são despejadas sem alternativa. Está aqui em causa o conceito do direito à habitação?

A Constituição, a Lei de Bases da Habitação, os acordos internacionais que Portugal estabeleceu nesta matéria, estão a ser desrespeitados. Quer dizer, se estas leis fundamentais estão a ser desrespeitadas, o que será das outras? Nós temos, por exemplo, o caso de famílias que são beneficiárias do RSI e que lhes é cortado esse rendimento de subsistência, por incumprimento no pagamento das rendas. Estão a ver no que é que isto pode dar? Então uma família que sobrevive – não digo que sejam todas, e pode haver casos de incumprimento, obviamente -, mas pessoas para as quais o RSI nem sequer é suficiente para medicamentos, para alimentação, eu acompanho pessoas assim. Uma situação de incumprimento no pagamento de uma renda camarária, neste caso, implica um incumprimento em sede de RSI: isso é justo, é legítimo, isso vai levar a um maior cumprimento? Há outras regras ligadas ao RSI que levam, de facto, as famílias ao desespero, isto afeta-nos a todos, as pessoas podem não saber, mas há que dar a conhecer isto. Os técnicos que acompanham estas famílias depois são colocados em causa, a sua própria segurança, face a injustiças deste nível. Há técnicos, claro, que se resignam, é um trabalho, eles têm de manter o seu trabalho, a sua família, etc., resignam-se a estas decisões políticas, mas outros que não conseguem, justificadamente, porque a sua vida também fica em risco.

Portanto, isto é bastante preocupante.

 

Continuamos a não dar a atenção devida à pressão que os fluxos migratórios causam na habitação? Acha que a proliferação do alojamento local, as facilidades relacionadas, por exemplo, com os vistos gold, entre outras, também prejudicam a construção de boas soluções?

Acho que estamos todos de acordo: somos um país pobre, um país que precisa de aumentar a sua riqueza económica, etc., mas também sabemos que essas medidas são nefastas para o aumento dos preços da habitação, principalmente em zonas de maior pressão urbanística, de maior valorização. O problema não está nos migrantes, mas isso vai aumentar as barreiras ao acesso, a oferta já é pouca, ou está quase estagnada. O facto de darmos incentivos, incentivos públicos, incentivos até com o erário público, que vai para as mãos das pessoas que têm mais dinheiro, não faz sentido. Um Estado social não devia ter este tipo de medidas, tem de ter muita cautela com o impacto das medidas que promove, e isto aplica-se também à turistificação, a todas as alterações que fazem acontecer nas cidades.

 

Corremos o risco de ver uma crise anunciada há muito tempo, mas sem solução à vista?

A solução não está à vista, porque exige fé, e tudo bem. Não quer dizer que quem tem a fé agora consiga ver a solução, mas a fé é um aspeto importante, a coragem é um aspeto importante, a mudança estrutural e o tempo. Nós sabemos que as respostas têm de ser imediatas, algumas respostas têm de ser rápidas, mas não podemos ir para respostas que alimentam lucros privados, sem criar as casas para quem precisa delas para viver. Sabemos que é um processo que terá de ser gradual, focado na justiça social e no bem comum, não podemos esperar agora que se apaguem décadas de políticas erradas, com especulação e desregulação, demora o seu tempo. Focando nas medidas imediatas: controlo de rendas, impedir os despejos, mobilizar os devolutos ou vazios, mas também alojamento de emergência. Queria focar bastante neste aspeto, alojamento de emergência: as pessoas estão a ficar na rua, estão a ficar desesperadas, entram em situação de loucura, e este alojamento de emergência existe noutros países, existe até em países menos desenvolvidos, junto de refugiados. Não precisamos de ir tão longe, olhar para esse tipo de solução, há soluções bem melhores que somos capazes de implementar, que podem ser evolutivas, podem ser já o começo de uma solução, ou de transição, pode ser participada, pode ser, se possível, autoconstruída ou socialmente produzida. Podemos estar, assim, a resolver o problema humanitário e a investir nas pessoas, na sua formação, na sua capacitação, no seu envolvimento cívico, em vez de focar o investimento no aumento dos lucros de quem faz especulação. Uma solução de emergência evitaria que as pessoas ficassem na rua, mas aqui o importante é que se crie um bom processo. Podem dizer, “mas como é que vamos criar de repente um processo de seleção?”, há pessoas que veem isto como um oportunismo, “vão-se aproveitar”. Se não há tempo, não se consegue criar um bom processo, tudo bem, utilizem o processo de seleção que já existe, que já está a ser utilizado para o arrendamento apoiado. Há pessoas que já têm a sua candidatura aprovada, que estão numa situação de maior vulnerabilidade, em situação de maior urgência: que comecem por essas, enquanto não encontram um processo mais eficaz, mais justo.

É claro que há questões de longo prazo, do planeamento urbano, da conversão do edificado, da questão ambiental também, nós estamos a ver as alterações climáticas. Sabemos que enquanto este tipo de solução não for uma realidade, a ferida social da habitação continuará, e continuará a abrir as tais fendas que nós vemos de exclusão, de injustiça, de desumanização, e isto tira força às pessoas, para o dia-a-dia, tira-nos força a todos. O risco é recusar iniciar um bom processo, não há falta de soluções, há falta de vontade política, há falta de vontade cívica, até vontade pastoral, se calhar. É essencial ouvir as comunidades afetadas, obviamente evitar estes realojamentos, muitas vezes desumanos, e políticas mais tecnocráticas. Como diz o Papa Francisco, não basta pintar a casa, é preciso mudar a estrutura, nós temos de ter coragem, temos de ter essa consciência, que é preciso mudar a estrutura, isso exige valores, exige a preservação, exige uma espiritualidade comprometida por quem olha nessa perspetiva.

Como nós dizemos na ‘Carta da Habitação’, a habitação é muito mais do que um produto, pode ser um bom processo, todos nós somos chamados a participar nesse processo. Queremos obviamente sonhar juntos, e é muitas vezes nestes momentos de maior tensão, de maior dificuldade que nós desligamos das dificuldades e pensamos numa dimensão mais livre e mais alta, e a partir daí eu penso que podemos, de facto, fazer a diferença, podemos fazer renascer a esperança. Aproveito para dizer que o próprio Jesus nos lembra, ‘Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância’, e por isso, ‘felizes os que acreditam sem terem visto’. É com essa fé e com esse compromisso que se vão construir, nós acreditamos, os caminhos de justiça, de esperança e de vida.

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