A culminar a celebração dos 30 anos de existência e numa altura em que várias publicações anunciaram o fim da edição em papel, é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia o presidente da Associação de Imprensa de Inspiração Cristã (AIIC)
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Estamos perante uma tendência que pode levar ao fim da edição em papel. É resultado das dificuldades económicas, ou um misto de fatores?
Eu penso que o problema é complexo, mas as respostas são muito simples, e passo a explicar.
Há um colega meu, diretor de um jornal nosso associado, que diz que nos últimos anos estamos a viver a tempestade perfeita. A tempestade perfeita para tudo o que de mau que podia acontecer ao ecossistema da comunicação social, nomeadamente a imprensa, concretamente.
Porquê? Os ouvintes certamente perceberão aquilo que irei explicar.
O que suporta um jornal são os leitores, são as assinaturas, as vendas em banca e, fundamentalmente, a publicidade.
O que aconteceu? A publicidade caiu drasticamente. E caiu drasticamente porque houve, nas últimas duas décadas, mais com assertividade, nos últimos dez anos, um desvio do investimento publicitário para outros canais alternativos da comunicação social, nomeadamente ao nível do digital e dos grandes aglomerados de produção digital, como Google, Facebook, Instagram.
Houve, portanto, como estava a dizer, um grande desvio da publicidade. Houve, da parte do Estado, um desinvestimento na imprensa. Todos nós nos recordamos dos suplementos que os jornais tinham de publicidade obrigatória, que, com o advento da digitalização, deixou de existir. Ou seja, foi outro rombo financeiro. A par disso registou-se uma quebra nos hábitos de consumo de informação, que levou a que todos nós recorramos a um telemóvel, a um computador, para ler informação.
E muitas vezes sem pagar, e essa também é uma questão relevante?
E era aí que eu queria chegar. Antes tínhamos de ir à banca comprar o jornal para ter acesso, e agora temos uma forma diferente do acesso à informação. E os editores foram muito responsáveis também por colocarem gratuitamente a informação que tem custos, que são produzidas por pessoas. Portanto, é como um fabricante de sapatos meter os sapatos livremente numa montra e as pessoas entram e levam os sapatos consigo e não pagam nada. Portanto, isto pode parecer uma caricatura um pouco atrevida do que estou a dizer, mas, de facto, é o que acontece. As pessoas consomem a informação. Consomem a informação jornalística gratuitamente. Portanto, todo este ecossistema foi profundamente alterado e isto está estudado. Está estudado. E deixo uma palavra de reconhecimento à Academia Portuguesa que tem feito, fundamentalmente nos últimos anos, tem feito um trabalho consistente de estudo das causas que levaram a que este cenário que agora estamos a viver, e estamos a enfrentar, com o maior dramatismo natural com a crise na global média.
Já vamos falar disso, mas deixe-me perguntar-lhe, Paulo, se vai ser mesmo uma fatalidade o fim da edição em papel da maioria das publicações, ou de quase todas as publicações?
Poderá ser, se não se inverter esta situação. E esta situação ainda estamos a tempo de a inverter parcialmente, se houver – e é o que a AIIC (Associação da Imprensa de Inspiração Cristã) tem vindo a defender há vários anos – se houver uma política do ponto de vista do Estado do combate à iliteracia. Ou seja, se houver medidas que noutras democracias avançadas, nomeadamente na geografia europeia, que estão a implementar já há algum tempo com sucesso, e que é o incentivar ao consumo de informação jornalística, produzida, tanto em papel, como também através da via digital. Aí o Estado tem um papel importante. Porque, neste momento, penso que, como o senhor presidente da República disse, é necessário um pacto de regime, e ele já o defendia antes da pandemia e já teve iniciativas nesse sentido. O Estado português, os agentes políticos, devem decidir de uma vez por todas: Querem ou não querem uma comunicação social plural e generalista em todo o território nacional?
E qual é a sua sensação sobre essa pergunta?
A minha sensação é que há um querer envergonhado. Ou seja, não há ousadia, não há assertividade. Nós somos recebidos pelos grupos parlamentares na Assembleia da República, que é onde se legisla, é onde os eleitos que representam todos os portugueses estão, e ouvimos medidas, e ouvimos palavras com muita simpatia, com exceção de um partido que também é simpático, mas que confere ao mercado a regulação. Esse partido defende que deve ser o mercado a decidir se de facto deve haver ou não deve haver, se as empresas devem morrer, se os jornais devem morrer. E essa é uma visão, mas a grande maioria dos partidos concorda que deve haver uma democracia plural, com órgãos jornalísticos saudáveis, e que tenham jornalistas a trabalhar com independência em prol da verdade informativa. É isso que nós defendemos. Se é esse o caminho, vamos então para as medidas. Porque senão, continuamos aqui com um pescadinho no rabo da boca.
E quais são então essas medidas?
Para mim e a para nós, a AIIC é fundamental o combate à iliteracia. É fundamental que a população perceba, e já muitas pessoas percebem, a importância que um órgão jornalístico tem no seu território.
Nós estamos neste momento com 25% do país, e isto são dados reais, 25% do país, e já estamos a alertar para esta situação já há anos. Lançámos esta discussão, e ainda bem que a Universidade da Beira Interior pegou neste problema e fez um estudo sobre o deserto de notícias, a exemplo do que já foi feito, por exemplo, nos Estados Unidos e no Brasil, e verificou-se que 25% de Portugal não tem um órgão de informação jornalístico. Isto é grave.
Os poderes públicos locais não são escrutinados, as populações não têm acesso a um órgão jornalístico, a um meio de comunicação social jornalística onde possam recorrer para que as suas vozes sejam ouvidas, conforme os nossos associados, a grande maioria dos nossos associados faz no terreno. E tem de ser com medidas que prevaleçam, que defendam esta comunicação social também, exemplo da Nacional, para que haja uma coesão. No fim de contas, e nesse aspeto o novo conceito regulador está mais recetivo a esta preocupação, do que os anteriores, verdade seja dita, tivemos agora uma reunião com o novo conceito regulador. O acesso à informação está condicionado. Há muitos portugueses que não têm o acesso à informação.
Já falou ainda há pouco da Global Media. Estávamos a falar do setor da imprensa local e cristã, que vive momentos de dificuldade, mas no âmbito nacional neste momento temos um grande grupo, a Global Media, de que falou ainda há pouco, a atravessar uma profunda crise. A que é que se deve esta situação?
Esta crise acaba por ser aquilo que acabei de dizer, só que andou camuflada por, digamos, por novos acionistas a entrar e a sair, e a pôr dinheiro e a sair…. Toda esta situação é muito nebulosa relativamente ao fundo, à origem dos fundos, obviamente, que é importante saber a sua origem. Mas já se sabia há muito tempo, e as contas estão no portal da transparência da ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social), que o grupo Global Media, o Diário Notícias, já estava com dificuldades financeira há muito tempo e a TSF também.
Portanto, não é surpresa para os mais entendidos que acompanham este setor o que está a acontecer.
Nós temos dois grupos económicos, fundamentalmente, que assumem prejuízos no final do ano, mas como sendo algo pensado e algo em que os acionistas consideram que mesmo assim vale a pena. Nós temos o Público da Sonae, que nunca deu lucro, mas que o acionista mete dinheiro, mas para um projeto digno de jornalismo, em que o editor considera que é importante para o seu portfólio da empresa que tenha um título com credibilidade, mesmo que dê prejuízo e mete dinheiro até aquele montante. É uma forma de sustentar a comunicação social. É uma forma, mas nem todos os títulos podem ter essa garantia, porque é complicado.
Daí que nós defendamos que o legislador deva conceder – se considera que a comunicação social jornalística é importante para a salvaguarda da democracia portuguesa e para a integridade e coesão territorial – então que crie medidas que fomentem o surgimento de novos operadores no mercado, novos operadores, neste aspeto, que os editores tenham meios e incentivos.
Há uma concentração demasiada em determinados grupos ou em poucos grupos?
É o risco que corremos. Por exemplo, o ministro da Cultura, que não fez nada em prol da comunicação social, não fez nada, pura e simplesmente deixou que as coisas
rolassem. Porquê? E isto é uma interpretação minha, porque quando houve a questão da publicidade institucional, a compra da publicidade institucional antecipada na pandemia, aquilo foi mal gerido do ponto de vista político por outros partidos, que consideraram que a comunicação social foi comprada. Existe sempre este aproveitamento político e levanta-se sempre este fantasma que é profundamente falso. Nós participámos no processo e não houve nenhuma comunicação social que fosse comprada. Foi publicidade que foi alocada e as associações distribuíram pelos órgãos de comunicação social. Portanto, a publicidade da Covid, a publicidade dos fogos florestais….
Mas criou-se uma desconfiança em relação à intervenção do Estado?
Cria-se sempre uma desconfiança em Portugal e isso é um motivo para nada se fazer. Isso é um motivo por que eu questiono, a RTP, a Lusa, a Antena 1, são suportadas pelo dinheiro dos Contribuintes. Alguém, com seriedade, pode dizer que os jornalistas que trabalham nesses órgãos são condicionados pelo poder político hoje? Não estou a falar, a seguir ao 25 de Abril, não estou a falar nos anos 80, onde havia telefonemas dos secretários de Estado, ou dos Ministros para os diretores de Informação. Atualmente, alguém faz isso?
Eu conheço, nós conhecemos, camaradas nossas que trabalham nesses órgãos, que trabalham que fazem um trabalho e é audível e é visível o trabalho que fazem.
Portanto, há formas de o Estado poder, como acontece noutras democracias mais avançadas ou mais consolidadas que a nossa, na Europa, de o Estado poder inverter a situação sem ser o Estado a intervir diretamente.
Voltando à Global Media: além dos postos de trabalho que estão em risco, há importantes alertas a sublinhar sobre a necessidade de uma informação plural, já falámos aqui desse aspeto. Há riscos do ponto de vista da própria democracia, da manutenção da democracia, do escrutínio democrático, com este tipo de situação?
acho que o que nos mostra esta crise na Global Media é a ponta do icebergue, ou seja, se nós já estamos com 25% do território nacional sem escrutínio jornalístico. Passou-se de uma situação nos anos 90, 2000, em que todo o território nacional tinha mais jornalistas do que profissionais de comunicação nos municípios, por exemplo, para um paradigma totalmente oposto, neste momento. Temos municípios com uma máquina de propaganda nos seus territórios, com técnicos, com investimento pesado, a passar propaganda, legítima, não meto isso em causa, que é feita pelos respetivos poderes autárquicos, e em contraponto, não temos jornalistas naqueles territórios, para fazer uma avaliação do trabalho que é feito de uma forma isenta, parcial, de uma forma de acordo com o que está consagrado no código deontológico dos jornalistas e com o estatuto.
E agora há o risco de desaparecer o último grande diário do Norte?
Eu trabalhei para o Jornal de Notícias durante 17 anos e trabalhei nove anos para o Diário de Notícias, como colaborador, nos dois, na região onde vivo, e sempre tive uma relação de muita proximidade, de muito respeito e muita camaradagem com todos os que ali trabalharam. E sempre senti liberdade em reportar aquilo que se passava na minha região, mas até em termos nacionais e internacionais, quando se proporcionava, portanto tenho o maior respeito e não tenho dúvidas: se estes dois meios desaparecerem, Portugal fica muito mais pobre do ponto de vista do escrutínio democrático, não tenho a mínima dúvida.
Isto está a acontecer num ano que vai ter vários atos eleitorais…
Nos 50 anos do 25 de Abril.
E nos 50 anos do 25 de Abril. É preocupante este definhamento da imprensa e da comunicação social em geral?
É preocupante. Neste momento, tenho pena, porque há uma fatia da população que não considera que seja importante, porque como tem acesso a informação no seu telemóvel, julga que a informação que circula é informação credível. Muitas vezes nós sabemos que não é e estamos a cultivar um povo de uma forma cada vez mais… digamos que, com tanta informação as pessoas nunca souberam tão pouco. Esta é a minha análise. Não é por acaso que os populismos estão a surgir e só…
Mas também porque se perdeu esta ideia de mediação.
Exatamente.
O acesso é imediato, torna logo tudo verdade… Não há triagem, não é?
E esse é o papel fundamental de um jornalista, e é essa obrigação legal e ética que um jornalista tem. Desaparecendo esta função de mediador, temos o resultado que temos noutros países.
Voltando à realidade da imprensa cristã e da imprensa regional. Do ponto de vista do leitor, a internet democratizou o acesso. Para os responsáveis pelo setor, para além de um desafio, significa também novas dificuldades?
Grosso modo, os meios de comunicação social, a imprensa regional e os nossos associados têm procurado fazer a transição para o digital e temos produtos muito competitivos, com muita qualidade, que não ficamos atrás de nenhum outro país mais avançado, posso dizer, nessa área. A questão aqui é, de facto, a sustentabilidade. O digital ainda não representa uma fonte de receita como o produto em papel. Ou seja, nós costumamos dizer que ainda é o papel que, no fim do dia, paga as contas. Portanto, é esta a realidade. Nós queremos investir, queremos que haja mais publicidade no digital, mas ainda é a publicidade em papel que vai suportando, na medida das possibilidades, os projetos.
Numa reflexão mais teórica, o Papa este ano vai apresentar, para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, uma reflexão sobre a inteligência artificial. Quando falamos disso, falamos também em desafios, da possibilidade de se promover sistemas de desinformação, de aumentar ainda mais o isolamento da população. É um problema, tudo isto?
É um problema fundamental, porque a inteligência artificial vai ser uma ferramenta, e já está a ser uma ferramenta utilizada, aqui a questão são os critérios éticos, deontológicos, que estão subjacentes à utilização da inteligência artificial no jornalismo. Nada substitui o contacto pessoal, nada substitui o jornalista no terreno, junto da sua comunidade, junto do seu território. Não há inteligência artificial que substitua este trabalho de proximidade, que nós temos de ter, que a AIC tem defendido. Deve haver um conjunto de ferramentas que possam permitir que estes territórios, todo o território nacional, tenha jornalistas e jornalismo. Não se pode só pensar no jornalismo em Lisboa e no Porto, aliás, o jornalismo em Lisboa e no Porto já está ameaçado, estamos no fim da linha daquilo que estava já a passar desde há 10 anos a esta parte. Os responsáveis políticos, na verdade, olharam para o lado e assobiaram, sempre com o problema “não se mexe na comunicação social, porque depois podemos ser acusados disto”… Não tem havido ousadia, não tem havido responsabilidade, porque tem de haver responsabilidade de quem nos governa nesta área também. Tem de ouvir, saber o que é que se passa nos outros países – porque este não é um problema só de Portugal, e há outros países também com estes problemas, que é um problema à escala global – que procuraram soluções, soluções consensuais, o tal pacto de regime que o presidente da República tem vindo a defender.
Paulo, para fecharmos, deixe-me perguntar-lhe: que ideia tem o presidente da Associação de Inspiração Cristã da forma como a Igreja comunica?
A Igreja comunica a várias vozes. Por um lado, é bom, mas por outro lado não há, por vezes, aqui uma certa coerência comunicativa, se posso usar esta expressão, até porque a Associação de Imprensa de Inspiração Cristã reúne cerca de 180 meios de todo o país, e muitas vezes, tenho de o dizer, lamentavelmente, mas somos esquecidos quando se trata de analisar e dos contributos para o setor, de que forma é que podemos colaborar mais. Estamos dispostos a isto, colaborar mais com a Igreja, construir a Igreja, e muitas vezes -certamente não é por maldade, não é nesse sentido – somos esquecidos, mas cá estamos, temos esta resiliência e o caminho faz-se caminhando. Temos esperança de que as palavras do Papa Francisco se traduzam no terreno, com uma maior assertividade, que é isso que também defendemos.