Na véspera do Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia Fátima Pinto, presidente da CNASTI
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Há cerca de um ano, em entrevista à Renascença, alertava para a prostituição e para a mendicidade como as piores formas de trabalho infantil e motivos de maior preocupação das autoridades em Portugal. Este cenário não mudou, entretanto…
A prostituição infantil e a mendicidade são, reconhecidamente, uma realidade que é necessário combater em Portugal, uma realidade que, por ser tão escondida e ser crime, exige uma maior atenção, no sentido de se conseguir combater o possível. A reeducação é realmente difícil, mas precisamos de dar toda a nossa atenção, nós, as autoridades e a sociedade civil.
É um problema difícil de detetar…
Exatamente, às vezes a sociedade até desconfia, as pessoas percebem que há ali qualquer coisa de estranho, mas não denunciam. E mais vale prevenir que remediar. É necessário que todas as pessoas que tenham qualquer desconfiança, digam, comuniquem à Polícia Judiciária porque eles têm especialistas e pessoas preparadas para, de facto, atuar se se confirmarem as suspeitas. As pessoas não devem ter medo de fazer a denúncia, pensar que vão ser injustos, que vão prejudicar…
Esta é uma situação delicada, porque muitas vezes o fenómeno é, escondido como diz. Mas sente que falta mais fiscalização e o controlo necessário?
Não digo isso. Eu acho que o possível está a ser feito, só que, por ser tão escondido e tão delicado, as pessoas poderiam colaborar mais, assim que que se desconfiasse desta situação.
É um dever cívico?
É um dever de todos denunciar e alertar, porque se há uma desconfiança, o melhor a fazer é alertar as pessoas competentes para analisar o que se está a passar. Não quer dizer que seja verdade, nem que não seja verdade, mas é preciso analisar.
Para além dessa necessidade de reforço, de fiscalização, de policiamento, não faltará também uma maior atenção por parte dos pais, dos encarregados de educação?
isso também, os pais e os encarregados de educação têm obrigação de dar atenção aos seus educandos, mas, às vezes as coisas escapam. Às vezes quem está mais perto é aquele que menos vê… para educar uma criança é preciso uma aldeia, portanto, vamos ser solidários uns com os outros e ajudar a salvaguardar todas as crianças a que fazem parte da nossa aldeia.
Falamos já de duas situações que são delicadas, neste âmbito do trabalho infantil. Que outras formas são precisas relevar, chamar a atenção da sociedade?
Em Portugal, o trabalho tradicional quase é considerado erradicado…
Também no sentido em que a população é cada vez mais urbana, não é?
Exatamente. E se as crianças estão na escola, não podem estar a trabalhar, essa é uma realidade. A verdade é que, depois, há outras situações que são bem aceites, não temos só a prostituição e a mendicidade: há situações de trabalho infantil que as pessoas aceitam bem, que, de modo geral, não considera sequer uma exploração de trabalho infantil. No entanto, é, nomeadamente o trabalho infantil artístico, o trabalho infantil na moda, o trabalho infantil e a exploração infantil no desporto.
Há crianças que são trazidas para Portugal, sobretudo das nossas ex-colónias, e chegam cá. Por motivos alheios, naturalmente, à sua vontade, deixam de ser consideradas bons jogadores, bons atletas, são arrumados e as famílias – que muitas vezes vêm com eles – ficam completamente abandonadas. Não é só uma criança que fica sem o seu sustento, é toda uma família.
Há muitas situações dessas, conhece casos?
Há situações dessas em praticamente todos os clubes, nos principais clubes, aqueles que têm capacidade de ir buscar crianças ao estrangeiro, portanto, são situações que devem ser trabalhadas, devem ser investigadas. Vemos famílias que estão em situação ilegal e, muitas vezes, tem a ver com situações dessas, porque ficam completamente abandonadas, ninguém se preocupa com elas.
Sabemos que menores de idade, em clubes de futebol, por vezes começam a receber salários que são superiores até aos dos pais, portanto, isso também cria uma situação complexa…
Naturalmente, mas nós não podemos trazer uma família para Portugal e depois fazer de conta que ela não existe. Quem os traz para Portugal também tem de assumir algumas responsabilidades, não é só a trazê-los e se as coisas correrem bem, muito bem; se correrem mal, não é nada connosco. Nós não podemos trazer famílias inteiras e depois abandonar tudo, porque os nossos planos saíram gorados.
Teme que a situação em que nos encontramos, com níveis de inflação elevados e com muitos trabalhadores a viver em situação de pobreza, possa despertar outras formas de trabalho infantil?
Nós sabemos que a pobreza anda sempre de mão dada com a exploração de trabalho das crianças. O trabalho infantil não é uma realidade estática, a todo o momento, as coisas podem mudar. Naturalmente, numa altura em que o salário mínimo é cada vez mais abrangente e atinge até categorias profissionais que antes tinham um salário muito mais razoável, sabendo nós que o salário mínimo não é suficiente para que uma família tenha uma vida digna, isso preocupa-nos. Temos consciência de que há famílias que vivem na pobreza, apesar de trabalharem, e que o salário não chega mesmo ao fim do mês, portanto, isto é uma preocupação constante, para a CNASTI e tem de ser para toda a gente.
Não é justo que uma família, pai e mãe, trabalhem e não ganhem o suficiente para alimentar os seus filhos, proporcionar-lhes uma vida digna. É uma realidade que tem de preocupar todos, a começar pelas nossas autoridades competentes.
Há cada vez mais menores, incluindo crianças até aos 13 anos, que começam a jogar a dinheiro online. Isso é uma preocupação?
Claro. Eu conheci uma criança que me disse que não trabalhava, mas que ganhava muito dinheiro, e eu perguntei-lhe como. Ele disse: “eu jogo todas as noites na internet, aqui sou um desconhecido, mas na Internet sou famoso, porque eu sou um grande jogador”. E fazia-o à revelia dos pais? Provavelmente.
Eu disse: não tens idade, como é que tu consegues? “Tenho o nickname da minha irmã”.
E perguntei-lhe se os pais sabiam, se ele tinha consciência de que, assim como ganha, também pode perder e depois ele ficou a pensar. “Acho que não vou perder”, mas ele não sabe, pode haver um que seja melhor do que ele… “Ah, depois logo vejo, porque eu já ganhei muito dinheiro”.
A verdade é que isto alerta. Nós estávamos numa assembleia de crianças quando esta realidade apareceu, a criança contou… Sem grandes alaridos, comunicamos às professoras, que era preciso avisar os pais, porque isto poderia vir a dar resultados maus. De facto, uma criança jogar na Internet é perigoso.
É um alvo fácil de exploração?
Claro. Podem deixá-lo ganhar e depois, de um momento para outro, começar a perder, e ele vai achar que que vai recuperar. Ele não tinha idade para jogar nem para estar na Internet, durante a noite, porque era uma criança de 12, 13 anos, isto não lembra ao diabo, mas a verdade é que ele jogava e dizia que tinha muito dinheiro, porque ganhava.
Eu perguntei o que fazia ao dinheiro, ele comprou um computador novo, topo de gama, para poder jogar, para poder ganhar, para poder competir com os outros. E aí os pais não se apercebiam, porque jogava no quarto durante a noite, de madrugada, todos os dias, para estar em horários compatíveis com os do estrangeiro.
Isto é uma realidade. Nós sabemos que, quando aparecem estes jogos que põem em risco a vida dos das crianças e que as incentivam a fazer coisas que não devem, falamos com os adolescentes e todos eles conhecem os jogos. Nós, às vezes, só conhecemos quando ouvimos falar deles, até na televisão, mas eles já os conhecem, portanto, estão sempre atentos a todas as novidades. É necessário que os pais estejam atentos, que os pais controlem a Internet, que os pais se preocupem e procurem perceber mais do que o que percebem de internet, porque e eles normalmente percebem muito mais do que nós, é quase intuitivo.
Estava a retratar uma realidade descoberta em meio escolar. A CNASTI quer refletir sobre a carga horária das crianças?
Nós queremos refletir sobre a carga horária, curricular e extracurricular. Porque as crianças hoje estão em ambiente escolar e extracurricular – mas sempre controlado por adultos- demasiadas horas, consideramos nós. Porque algumas tem um horário de trabalho, uma vez que o trabalho a escola e os ambientes da formação para elas são considerados o seu trabalho, e têm um horário de trabalho superior ao dos pais. E isto traz certamente implicações; algumas serão positivas, outras serão negativas e precisamos de fazer uma avaliação sobre o impacto que isto tem, de facto depois, na sua formação integral, sobre suas capacidades intelectuais, sobre as suas capacidades de socialização, sobre o seu isolamento, muitas vezes.
Haverá falta de tempo, inclusive para brincar?
Não há tempo para brincar. Uma criança que sai de casa às 08h30 para entrar as 09h00 e que sai do Centro de estudos às 7 da tarde, quando chega a casa janta e depois está na hora do banhinho e ir para a cama. Portanto, o que que eles vão brincar? Qual é o espaço que eles têm para inventar, para jogar, para até desenvolver a sua capacidade de motricidade. Não têm. Passam a vida em ambiente escolar ou ambiente de formação. Alguns fazem desporto e Isso não tem um especto tão negativo, mas muitas vezes aquela capacidade de fazer experiências, de inventar, de construir coisas como nós fazíamos quando éramos miúdos que construímos os nossos carrinhos, construímos os nossos brinquedos que inventávamos que estávamos a cozinhar, que inventávamos isto e inventávamos aquilo; eles não têm tempo para isso.
Nós sabemos que no mundo há muitas crianças que não podem ser crianças por outros motivos. O Papa Francisco tem chamado atenção, sobretudo para exploração que deriva da pobreza, para a falta de proteção dos mais desprotegidos, dos mais necessitados. A nível global, tem se perdido a consciência de que o fenómeno do trabalho infantil ainda é uma realidade grave?
Acho que não se tem perdido essa consciência. Acho que a nível mundial há uma consciência muito clara de que existe muita exploração do trabalho infantil a todos os níveis. Se em Portugal há alguma redução, tem havido alguma preocupação; a verdade é que com a pandemia e com o despoletar da guerra o trabalho infantil, tem aumentado a nível global. E tem havido consciência disso. E há uma preocupação muito grande da OIT (Organização Internacional do Trabalho) em alertar as entidades nacionais dos vários países onde o trabalho infantil recrudesceu no sentido de se combater e de alertar todas as entidades competentes no sentido de se combater o fenómeno.
A verdade é que nalguns sítios tem sido possível. África é sempre um Continente onde isso é mais difícil de combater pelas situações que nós sabemos de grande pobreza, de guerra, por causa das situações de doença. E também pelo facto de haver muitos órfãos. Crianças que estão de facto completamente sós e que têm de sobreviver. Mas, acho que há uma consciência clara de que todos temos obrigação de ajudar a combater o trabalho infantil é nós Portugal, que temos uma experiência de combate e até bem-sucedida; temos obrigação de partilhar esta experiência e de ajudar os outros países a combater a sua realidade.
O que é que devemos exigir ao Estado, neste caso a qualquer Estado para proteger as crianças?
Depende do Estado onde nós estamos. Se fosse em Portugal, eu diria que tínhamos direito de exigir tudo. Se formos a Moçambique, se formos a um Mali, se formos a um Sudão não sei se podemos exigir alguma coisa. Temos é que exigir a nós mesmos, pelo menos que tentemos ajudar aqueles países a ultrapassar a situação de crise e pobreza que estão a viver. O que é muito complicado, porque nós sabemos que a solidariedade Internacional praticamente não existe.
Nós ajudamos a resolver coisas pontuais, mas depois uma solidariedade entre os povos, isso é diferente porque não é consistente aquilo que fazemos. As ajudas que damos não são consistentes de forma a transformar aquela realidade, nem de guerra, nem de pobreza, nem de nada. Não ajudamos a transformar nada.
A União Europeia tem discutido a diretiva relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade. É importante que a dimensão dos direitos humanos, e particularmente aquilo que temos estado a falar da luta contra o trabalho infantil, seja uma prioridade alargada a toda a cadeia de produção, independentemente do país?
Eu acho que sim, mas a União Europeia não é autoridade nenhuma, porque a União Europeia é o pior exemplo que existe em relação à forma como trata os imigrantes, quando os deixa ficar às suas portas e até morrer dentro dos barcos. Isto é do maior egoísmo e da maior desumanidade que se possa considerar. Porque não haver o sentido de que temos de ser solidários, de que temos de salvar uma vida que está em perigo… quem faz isto não é humano, não tem autoridade moral para dizer nada a respeito de ninguém. É inconcebível que se deixem morrer tantas vidas que se ponham pessoas em campos de concentração sem as mínimas condições e que se permita que tantas crianças sejam traficadas, como aquelas que entram na Europa a sem retaguarda familiar.
Portanto, eu não reconheço à União Europeia autoridade moral para nada.
Essa solidariedade de que falava há pouco passa também, se calhar do ponto de vista individual, pelo momento em que por, por exemplo, podemos adquirir produtos a que se pode associar a prática do trabalho infantil. Falta ainda essa consciência de percebermos que um determinado produto veio de um determinado país e que foi fabricado, na sua maioria, por crianças?
Eu acho que falta, mas preocupa-me também que haja um grande boicote a produtos que são fabricados por crianças e depois não haja a transformação nos seus países, no sentido de que os pais ganham o suficiente para que as crianças vivam bem. Por exemplo vamos à China e não compramos produtos chineses fabricados por crianças. E os pais ganham o suficiente para que essas crianças vivam bem? O que é que fazemos para que os pais delas ganhem bem?
Tem de haver de facto, a solidariedade Internacional. Tem de haver uma luta e aí passa também pelos sindicatos, pela regulamentação do trabalho empresarial, pela deslocação das empresas que vão para o estrangeiro, para explorar o trabalho e a mão-de-obra mais barata. Tem de haver, de facto uma homogeneidade em termos de direitos e em termos de salários no sentido de que quem trabalha de facto usufrua o suficiente para viver bem naqueles países.