Porto: Homilia de D. António Augusto de Oliveira Azevedo no Domingo de Ramos

Foto: João Lopes Cardoso/Diocese do Porto

A celebração do Domingo de Ramos e da Paixão é o grande pórtico da Semana Santa. Conduzidos pelo Espírito e iluminados pela Palavra de Deus somos convidados a viver esta semana maior como a celebração dos mistérios essenciais do cristianismo e a redescobrir a centralidade de Jesus Cristo e da sua Páscoa para a nossa fé.

No primeiro dia desta semana tudo começa com a entrada de Jesus em Jerusalém. O acolhimento festivo que a multidão de homens, mulheres e crianças lhe presta é digno de um rei que entra na sua cidade, digno de um Messias aclamado por um povo ansioso pela sua chegada. Porém é ainda e só o primeiro andamento, o primeiro capítulo (não o último) da história decisiva para a nossa salvação. Na vida pessoal podemos iludir-nos com entusiasmos fáceis ou triunfos prematuros; em sociedade pode-se resvalar para exaltações precipitadas ou promoções de heróis fugazes e inconsistentes; na vida da igreja podemos tentar-nos por triunfalismos fáceis ou adesões epidérmicas. Mas como discípulos de Jesus que querem estar com Ele e viver com Ele esta Páscoa, entremos com alegria na cidade conscientes de que é preciso ir com Ele até ao fim, porque só então, no rosto do crucificado e no brilho do Ressuscitado se dá a plena revelação do autêntico Messias de Deus. Mais do que número de multidão vibrante, queremos fazer parte do grupo daqueles e daquelas que estão junto à cruz ou da comunidade em que o ressuscitado se faz presente.

Para estar com Cristo nesta Páscoa, para seguir os seus passos, importa ter presente o movimento de fundo da sua vida, traduzida por São Paulo no Hino da Carta aos Filipenses: «Cristo Jesus, que era de condição divina, aniquilou-se a si próprio, assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens». Este movimento de descida, esvaziamento, dom de si até ao fim e obediência até à morte na cruz credibiliza e autentica a sua humanidade. Chegado ao extremo do humano, este movimento inverte-se e torna-se, por obra do Pai, ascendente, feito de exaltação e glorificação. Ao discípulo que quer celebrar a Páscoa com o Mestre, é dirigido o apelo que S. Paulo faz no versículo precedente; «Tende os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus» (Fil.2,5). Estar com Cristo ao longo dos dias desta semana implica por isso sair de si mesmo e estar disponível para cumprir a vontade do Pai sendo fiel até ao fim, ousando amar e servir até ao limite das suas capacidades. Caminhar com Cristo nesta via sagrada supõe a coragem de uma fé livre e aberta à novidade de Deus.

A vivência da semana pascal mergulha-nos nas contradições mais profundas com que o homem se confronta: morte e vida; humilhação e exaltação; solidão e multidão. Experimentando-as na sua carne humana, Jesus ensina-nos a não nos resignarmos a uma lógica bipolar em que os termos se excluem, mas a enfrenta-los acreditando que superação é possível. De facto só pela acção de Deus, a morte pode dar lugar à vida, a humilhação à exaltação, o sofrimento à alegria e à glória. Desta forma, o mistério pascal deverá constituir a resposta a um paradoxo em que vive mergulhada a cultura na modernidade: a oposição entre Deus e o homem. Conceber que entre ambos existe uma concorrência ou contraposição é um equívoco. De facto quando uma sociedade esquece a Deus, o nega ou marginaliza, não se torna mais humana ou fraterna, pelo contrário, evidencia sinais de indiferença e de carência de valores.

Na liturgia de hoje ecoa o grito do salmista: «Meu Deus, meu Deus porque me abandonastes?», a última palavra que Jesus dirige ao Pai no alto da cruz. Esta oração, expressão suprema de dor, traduz o abandono sem reservas do Filho nas mãos do Pai e porventura como nenhuma outra na história, exprime a impotência e a fragilidade humana perante o mistério do sofrimento e o abismo da morte. Na celebração da Páscoa afirmamos a nossa convicção de que o Pai que escutou o grito do lilho é o mesmo Deus que não esquece o homem mas acredita nele; não desiste da criatura, obra das suas mãos, antes, pelo seu infinito amor, com ela se compromete até ao fim.

A Páscoa é a grande proclamação de que o homem pode aspirar à salvação. Porém não uma salvação como sobrevalorização das capacidades humanas, mas dom de Deus por Jesus Cristo. Como esclarecia uma recente carta da Congregação da Doutrina da Fé, a salvação não depende das forças do indivíduo ou das estruturas humanas nem se reduz apenas a uma interioridade extrínseca ao corpo e ao mundo. A autêntica vivência pascal ajuda-nos a aprofundar a consciência de que o homem não pode salvar-se a si mesmo sem reconhecer a necessidade de Deus e dos outros. «A salvação plena da pessoa não consiste nas coisas que o homem poderiatglítér por si mesmo (ter, bem-estar, ciência, técnica, poder influência, fama…)». A boa nova da salvação tem um nome e um rosto: Jesus Cristo, Filho de Deus e realiza-se na entrega da sua vida na cruz.

A celebração da Páscoa leva-nos a descobrir que, da salvação entendida como dom de Deus, ninguém está excluído. Todos são convidados para a Páscoa de Cristo; todos são desafiados a caminhar com Ele; todos são atraídos à sua contemplação na cruz. Nesse sentido verificamos, sintomaticamente, que o relato da paixão segundo S. Marcos começa com o gesto inusitado de uma mulher anónima e termina com a afirmação de fé de um improvável centurião. Ela, durante aquela refeição em Betânia, derrama o perfume de nardo puro sobre a cabeça de Jesus. Perante a censura dos presentes, Jesus esclarece que aquele gesto representava uma unção antecipada do seu corpo para a sepultura. De forma inconsciente mas profética aquela mulher reconheceu em Jesus o verdadeiro Messias, mostrando-nos como a adesão pessoal e de coração a Ele é um passo determinante. O centurião, proveniente de outra cultura, foi capaz de interpretar sabiamente aqueles acontecimentos e chegar à conclusão da fé: «Na verdade este homem era o Filho de Deus».

Para cada um de nós, para a Igreja e para o mundo, cada semana santa é sempre especial, experiência espiritual única porque nos permite celebrar e meditar no mistério infinito do amor de Deus por nós e por todos. Celebrar esse mistério atual e sempre novo confirma a nossa fé; meditar nesse mistério ajuda-nos a perceber como é esse amor divino que nos sustenta e só ele responde às nossas inquietações mais profundas.

No primeiro dia desta semana santa manifestemos a disposição de caminhar com Cristo nestes dias em que Ele se entrega ao Pai para nossa salvação. Na eucaristia, e como Ele nos mandou, façamos memória viva dessa entrega, afirmando a nossa fé de que comungando o seu corpo e o seu sangue, viveremos por Ele e com Ele passaremos da morte à vida.

Porto, 25 de março de 2018
D. António Augusto de Oliveira Azevedo

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