Jorge Pires Ferreira, Diocese de Aveiro
Acusação que se faz aos bispos católicos é que encobriram, durante anos e anos, abusos e abusadores. Até católicos têm pedido o afastamento de bispos que encobriram abusadores. Porque é que tal encobrimento aconteceu? Por encobrimento entende-se o afastamento de um padre de quem se suspeita ter cometido abusos sexuais da sua paróquia, ou das suas funções, para outro serviço, sem o entregar à justiça do Estado e sem o afastar do ministério presbiteral.
Os bispos têm dito que esse era o procedimento estabelecido, só mudado com as determinações de Bento XVI em 2011 e as de Francisco em 2019. E muita gente vê nesse procedimento uma conivência com o crime – o que é injusto para os bispos. Porque a Igreja sempre achou que era um crime o abuso sexual de crianças é que mudava os abusadores. Tal procedimento podia não ser eficaz, além de não dar a devida atenção às vítimas, mas tinha como fundo o reconhecimento da gravidade do crime (e pecado).
Mas porquê o afastamento (encobrimento) e não a entrega à justiça civil? Nas redes sociais, alguém adiantava que um bispo assim procedesse não tinha verdadeira fé em Deus, que vê tudo e tudo sabe, pelo que nada adianta encobrir.
Mas não foi por falta de fé que os bispos encobriram, foi por excesso. Foi por fé noutras aspetos da identidade e missão do padre. Por um lado, acreditam, como não pode deixar de ser, na regeneração dos pecadores. Mudar era dar uma oportunidade de vida nova ao padre (esquecendo, porém, as vítimas). Por outro lado, acreditam no bem maior da Igreja, que para muitas situações e para os seus membros tem regras próprias, o Direito Canónico, por estar no mundo sem ser do mundo. Mudavam, em vez de denunciar, para não causar escândalo (esquecendo, porém, as vítimas). Por último, mas razão mais relevante do que as anteriores, mudavam porque acreditam no sacerdócio do padre. Chamemos-lhe razão teológica. Este aspeto, consciente ou até inconsciente, é, quanto a mim, o mais determinante para este procedimento e o que causa mais desfasamentos entre a visão da Igreja e a do mundo. O padre pedófilo continua a ser padre. Tal como o padre bêbado, homicida ou ladrão. Como sabe qualquer estudante de teologia, a validade dos sacramentos depende de Jesus Cristo, “ex opere operato” (“por força do ato”), não da atitude ou santidade de quem os administra. Portanto, mudar e esperar a mudança do infrator é melhor do que banir um ministro de Cristo. Mas isto é hoje escandaloso aos olhos da sociedade. A lógica da Igreja é diferente da do mundo. E em alguns aspetos a do mundo parece mais evangélica.
Por outro lado, pela ordenação presbiteral, criam-se laços entre o padre e o bispo que são de autêntica filiação/paternidade. Como pode um pai denunciar o seu filho? Alguns dizem que o ambiente de ocultamento é fruto do clericalismo e da desigualdade prática de membros na Igreja. Acabar com o clericalismo fará com o bispo pense que tanto é seu filho o padre como o cristão abusado; ou que este ainda é mais por força do sofrimento em que está. Talvez vá neste sentido o pedido feito pela Santa Sé aos bispos na questão de pedofilia: serem os primeiros vigilantes e denunciadores, aliás, na linha do que significa “episcopos”, que é “inspetor” e “vigilante”. Mas parece-me ingrato para o bispo que é pai ser agora polícia de quem lhe é mais próximo.
Não sei se chega acabar com o clericalismo. Sem clericalismo podemos ter uma forma rápida de resolver as consequências do problema. Mas o pecado dos ministros ordenados será sempre um escândalo para crentes e não crentes. Temos que vive com isso. Porque vivemos de Quem tudo redime.
Jorge Pires Ferreira