Por uma «orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial»

Joana Rigato Quarenta e dois anos depois da Populorum Progressio, Bento XVI publica a encíclica Caritas in Veritate, mediante a qual pretende actualizar a mensagem de Paulo VI à luz da nova era da globalização e dos últimos dois anos de crise económica e financeira internacional. Assistimos hoje, portanto, a mais um passo na construção sempre nova da doutrina social da Igreja, na procura de respostas para os desafios históricos da sociedade à luz da Verdade do evangelho e da lei do Amor. Amor (caridade) e Verdade são, com efeito, o cerne da própria doutrinal social, começa por dizer Bento XVI: "tal doutrina é «caritas in veritate in re sociali», ou seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade". Essa verdade, que evitará os "estrangulamentos do emotivismo" e a arbitrariedade de um amor sem um norte que o oriente, é a "luz da razão e da fé". Luz esta que ilumina a gratuidade da caridade, portanto, para que esta realize (e simultaneamente ultrapasse) a Justiça na prossecução do Bem Comum, constituindo o caminho que a humanidade tem de retomar numa época que se apresenta plena de desafios, riscos e exigências.

É com base nesta premissa que o Papa analisa os tempos actuais e aborda, numa encíclica densa e rica, temas relativos à economia globalizada, ao ambiente, à pobreza e à fome, ao desemprego e aos direitos dos trabalhadores, ao fenómeno das migrações e à dignidade dos migrantes, à especulação financeira, à política nacional e transnacional, à ética empresarial, à técnica, ou à comunicação social.

A centralidade da pessoa humana e a sua inalienável dignidade, tanto à luz da fé cristã, como do quadro antropológico e ético que consagrou os direitos humanos como universais e "indisponíveis", é o denominador comum que serve de base à leitura de todos estes fenómenos contemporâneos.

"A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos", explica Bento XVI. Com efeito, o erro de dissociar a economia de um quadro ético assente na caridade ("a lógica do dom como expressão da fraternidade") tem conduzido a família humana a desequilíbrios que exigem uma mudança de paradigma.

 

O desenvolvimento das últimas décadas tem sido heterogéneo e contraditório, crescendo a riqueza à escala global ao mesmo tempo que aumentam as desigualdades entre ricos e pobres, e surgem inclusivamente novas bolsas de pobreza no seio dos países tradicionalmente mais desenvolvidos. Bento XVI relembra, pois, que "o aumento sistemático das desigualdades (…) tende não só a minar a coesão social – e, por este caminho, põe em risco a democracia -, mas tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do «capital social», isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil".

Bento XVI denuncia o erro da visão segundo a qual "a economia de mercado tem estruturalmente necessidade duma certa quota de pobreza e subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo". Pelo contrário, diz o Papa, "o mercado tem interesse em promover emancipação" e em garantir que todos os intervenientes possam ser considerados como um recurso (e não um "fardo"), participando no jogo dos intercâmbios comerciais e financeiros à escala mundial enquanto sujeitos activos, sob pena de o desenvolvimento global embater dramaticamente no obstáculo da pobreza. Para tal, o mercado, que não é negativo por natureza, precisa de ser regulado por um poder político com autoridade real, para que não seja o "lugar da prepotência do forte sobre o débil". A justiça, nas suas múltiplas formas, é o meio para garantir esta emancipação generalizada na prossecução do Bem Comum.

A tendência, portanto, a considerar que as sombras e falhas do quadro de desenvolvimento mundial são inevitáveis, tem de ser considerada incorrecta, já que as situações de subdesenvolvimento "não são fruto do acaso nem de uma necessidade histórica", mas de opções políticas e económicas, pelo que "dependem da responsabilidade humana".

A encíclica é marcada pelo repetido apelo a uma preocupação prioritária com o capital humano nas suas diferentes dimensões. Sublinha, em particular, a necessidade de defesa dos direitos dos trabalhadores num contexto de deslocalização da produção e de perda de direitos sociais, a favor do lucro como fim em si mesmo, graças ao crescente poder das grandes empresas transnacionais que influenciam até os governos nas suas políticas sociais. Bento XVI defende como prioritário o acesso ao trabalho para todos e a tutela dos direitos laborais, já que "o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem".

Também no âmbito da cooperação internacional o capital humano tem de voltar a estar no centro das políticas e do modo de proceder das instituições. Neste sentido, Bento XVI alerta para o risco de "assistencialismo paternalista" em que governos e organismos incorrem quando não dão a devida centralidade aos beneficiários e esquecem o princípio da subsidiariedade. Para além disto, o Papa exorta os países mais desenvolvidos a respeitarem os compromissos assumidos quanto às quotas do seu produto interno bruto a destinar às ajudas ao desenvolvimento (0,7% do PIB). Por outro lado, apela a que os organismos internacionais que se ocupam da cooperação repensem as suas prioridades, reconhecendo a incoerência que representam as máquinas burocráticas excessivamente pesadas e ineficazes que suportam: "às vezes sucede que o destinatário das ajudas seja utilizado em função de quem o ajuda e que os pobres sirvam para manter de pé dispendiosas organizações burocráticas que reservam para sua própria conservação percentagens demasiado elevadas dos recursos que, ao invés, deveriam ser aplicados no desenvolvimento".

 

Em suma, todas as questões mais prementes da economia e da política (como a gestão dos desafios da imigração, o uso dos recursos energéticos e a relação do homem com o meio ambiente, o papel dos Estados na regulação da economia, as actividades de natureza financeira ou a técnica como instrumento de poder) devem ser reanalisadas à luz de um quadro ético de direitos e deveres (sendo fundamental compreender que "a partilha dos deveres recíprocos mobiliza muito mais do que a mera reivindicação de direitos"), ao mesmo tempo que se torna imperioso que o desenvolvimento seja entendido não só na sua vertente material. Como recorda Bento XVI, Deus tem de encontrar "lugar na esfera pública", não só na medida em que a liberdade religiosa de professar a própria fé num mundo cada vez mais secularizado é um direito a reconquistar, como também porque a ausência de sentido da transcendência no coração do homem e na sociedade resulta numa falta de consciência ética cujas consequências estão à vista de todos. "Enquanto os pobres do mundo batem às portas da opulência, o mundo rico corre o risco de deixar de ouvir tais apelos à sua porta por causa de uma consciência já incapaz de reconhecer o humano".

A caridade (fruto directo de um Deus que é Amor) iluminada pela verdade (da razão e da fé), é portanto o requisito fundamental para mudar a arquitectura política, económica e financeira à escala nacional e transnacional, a par das próprias mentalidades e estilos de vida de cada um, reconhecendo o mundo globalizado como família humana, já que "sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja".

Joana Rigato, Vice-Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz

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Agência ECCLESIA

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