Manuel Castelo Branco, Diocese de Coimbra
A dessacralização iluminista do mundo esvaziou a leitura poética do real. A poesia, ao lado da música, da pintura, da escultura e da arquitetura, deixou de ser a gramática da realidade, o modo de comunicação com o transcendente, o instrumento de louvor ao divino.
A arte pós iluminista, em linha com o individualismo narcísico de aí em diante dominante, tornou-se auto-referencial e hipersubjetivizada. No lugar de Deus nas alturas, os abismos profundos do Ego.
Ruy Belo, poeta maior, espelha bem esse caminho. Não apenas o Deus com d maiúsculo de Aquele Grande Rio Eufrates breve se torna num deus com d minúsculo, como, sobretudo, breve se retira de cena, ocupado o seu lugar pela pessoalíssima vertigem de amar e por uma não menos pessoalíssima vontade mineral de terra.
Em contraciclo, pode, no entanto, invocar-se as poéticas de Sophia, de Adélia Prado e de Cecília Meireles. Nelas, o desejo amoroso, a tensão erótica e o sentimento religioso constituem matéria incindível na experiência de estar face a face com o mundo.
De algum modo, são as seguidoras coevas do modo de amar místico de Santa Teresa d’ Ávila e de S. João da Cruz.
Misticismo carnal que, em alguma medida, também encontramos na poesia de Vitorino Nemésio e de José Régio.
Num outro caminho vão dois poetas, religiosos de ofício, revelados nos anos 90 do século XX: Daniel Faria e José Tolentino Mendonça.
Daniel Faria, de vida breve e obra densa, conjuga uma vontade de terra, declinada de Ruy Belo, com uma ânsia de Amor, finito e infinito. Lá, onde o rosto e a presença corpórea do outro, do Amigo, é o rosto e a presença do divino.
Em Tolentino, o encontro entre o sagrado e o profano é mais difuso, mais melancólico, mais secreto.
Pois se, seguindo S. João, “Deus é Amor”, não existe amor mundano que não seja divino. Nem amor divino que não seja mundano.
E é aí, exatamente aí, que as poéticas de Amor de Tolentino se transladam em poéticas de Deus.
Manuel Castelo Branco (CDJP)