Pobreza: «Apoios não resolvem a vida de ninguém, mas não podem ser desvalorizados» – Rita Valadas

As previsões apontam para uma inflação de 8 por cento com consequências absolutas no custo de vida. O Governo decidiu avançar com um pacote de medidas para apoiar as famílias.

Para falar das consequências da inflação e comentar as propostas de combate ao aumento de preços é convidada da Renascença e da Agência ECCLESIA, Rita Valadas, presidente da Cáritas Portuguesa.

Foto: Agência ECCLESIA/HM

Entrevista conduzida por Henrique Matos (Ecclesia) e Henrique Cunha (Renascença)

Há quem sugira que as medidas chegam tarde. Partilha desta crítica?

Para quem precisa, é sempre tarde. E claramente, neste caso, não podemos dizer que foi cedo porque eu acho que nós às vezes esquecemo-nos que a questão da inflação era uma questão que estava colocada antes da guerra, e, portanto, não é uma consequência da guerra. É claramente majorada pela situação da guerra e pelas suas consequências. Portanto, o que eu diria é que há um alerta, que é do fim do ano passado e que por isso o pensamento em relação às medidas teria sido interessante que se fosse fazendo de maneira que quando a situação se agravou, tivessem acontecido. Mas ao mesmo tempo que são sempre tardias, quando as pessoas precisam é sempre importante cheguem.

 

E olhando para o conjunto de medidas. Falámos dos 125 € para pessoas até um valor mensal de ordenado, bónus de pensões, descida de IVA. Parece-lhe que – vou utilizar a expressão – ninguém fica para trás?  

Isso adorava poder dizer, mas na verdade acho que ninguém dá um passo em frente. Todos nós vamos dar um passinho atrás e, portanto, dificilmente eu posso dizer que ninguém fica para trás. Eu acho que ficamos todos um bocadinho para trás nesta situação. É natural porque isto afeta transversalmente todas as pessoas. Nós fixamo-nos naturalmente, porque temos a preocupação com as pessoas mais vulneráveis, mas a vulnerabilidade aqui é transversal, porque as pessoas que têm um rendimento superior também têm encargos superiores. E se os encargos têm a ver com empréstimos, os riscos são equivalentes ou eventualmente, talvez mais danosos. Sem ter a ver com o pacote que agora foi apresentado, a verdade é que o risco de perder a casa, de uma pessoa que tem um empréstimo para pagar com as taxas de inflação que nós vamos vendo acontecer e que tememos para o futuro, também correm esse risco. E estas pessoas deste grupo são pessoas que têm vindo a ser sucessivamente atacadas por crises sucessivas. Já em 2008 foi a classe média que nessa altura perdeu. Houve muita gente a perder casa por baixa de rendimento, com aumento de custos ou com perda de emprego.

 

Já que fala dessa questão da classe média e olhando também para as medidas, parece-lhe que tiveram em conta precisamente esse fenómeno relacionado com a pobreza envergonhada e que está muito relacionada com essa classe média, tendo em consideração que falou da questão da habitação e também a ela está associada a questão das rendas que o Governo não congelou, mas decretou um teto máximo para os aumentos? 

Claramente que houve uma preocupação clara, embora um bocadinho cosmética, de dar um sinal à classe média. E é bom poder receber este apoio neste mês de outubro que é o mês de regresso às aulas, até porque, apesar dos manuais escolares serem gratuitos, os custos de voltar à escola não são de somenos. Portanto, poder receber este apoio neste mês faz a diferença. Não faz a diferença na vida das pessoas, nem vai resolver os seus problemas, porque é uma prestação única que pode fazer face a este fenómeno único que nós temos, que é o início do ano letivo, mas que não faz nenhuma diferença na vida das pessoas para o futuro.

 

Então estas medidas estão a ajudar as pessoas, ou a ajudar o Governo?  

Eu conheço muito pouco de economia para me poder pronunciar com verdade, e não gosto muito pouco de falar daquilo que não sei. Não sei se ajuda ao governo. Ajuda as pessoas, mas é uma ajuda pontual. Portanto, ninguém vai conseguir resolver a sua vida com este apoio, mas quando nós estamos numa situação de crise, não podemos desmerecer ou desvalorizar estes apoios.

Eu lembro-me sempre quando eu comecei a trabalhar num serviço de atendimento – ainda era no tempo do escudo – e havia muitos subsídios de 50 escudos na Santa Casa e era preciso rever os subsídios. E na altura, olhou-se para isso e pensou-se: 50 escudos servem para que? Nós temos que rever a situação destas pessoas, mas 50 escudos não fazem a diferença. E depois, os subsídios pequenos, quando são muitos é muito dinheiro. Nós ponderamos a hipótese de descontinuar os subsídios de 50 escudos, avaliando a situação das pessoas. E quando avaliamos a situação das pessoas, percebemos que aqueles 50 escudos eram guardados para comprar a botija de gás que as pessoas usavam mensalmente e que se perdessem esse subsídio, isso tinha um impacto brutal na vida delas.

 

Já o disse estas medidas de apoio imediato, não vão resolver a pobreza estrutural nem retirar as famílias da pobreza. Sendo esta uma situação extraordinária, pergunto não há o perigo de ofuscar outras intervenções de fundo que a prazo poderiam produzir mais resultados?  

Eu acho que não é os 125 euros, 50 euros ou até mesmo metade da pensão não vão ofuscar nada.

 

Falo no sentido do Governo desinvestir noutras medidas mais estruturais…

Sim, por isso dizia há pouco que são medidas um bocadinho cosméticas. Fica bonito durante um tempo, mas como em qualquer pintura facial, desaparecem rápido. Eu acho que a pressão, ou melhor, o apoio que deve ser dado ao governo, deve ser no sentido desse alerta. Eu não me sinto em condições de fazer avaliações macroeconómicas, mas sinto-me em condições de fazer alertas à situação da vida das pessoas no território. E aí há uma coisa na qual sempre insisto. Que ninguém julgue que conhece a realidade social por a ver sentado a partir de um gabinete. Vão ver e percebam a diferença, ou o impacto que pode ter alguma medida, que às vezes parece muito pequena e pode ser muito importante, ou que às vezes pode parecer muito importante e não ter um impacto desejado.

Mas eu não queria fugir à questão que o Henrique me colocou relativamente à habitação. A habitação das rendas, e a habitação dos empréstimos é completamente diferente.

E uma e outra não vão ter o mesmo o impacto. Primeiro porque quem paga renda tem um senhorio pelo meio e tem aqui, às vezes, uma almofada de proximidade. Quem paga empréstimos de imóveis com aumento da taxa de juro, se a taxa de juro não amenizar, e não houver uma inversão da curva, nós vamos ter muita gente que vai ter a sua casa em risco.

 

E há uma relação muito menos pessoal, não é?   

Sim, claro. Se não pagou sai.

 

No que diz respeito às rendas, a Cáritas também tem dado notícia de que cada vez mais pessoas pedem ajuda para fazer face essa responsabilidade de pagar no final do mês, não é?

É verdade. Quando a crise da pandemia se precipitou, e percebemos o que estava a acontecer, a direção que me antecedeu, a direção do professor Eugénio criou um programa que é “o vamos inverter a curva da pobreza”. É um programa que nós mantemos, com alguma variabilidade, de acordo com as crises que se foram somando. Este “o vamos inverter a curva da pobreza” foi exatamente para fazer face aos pedidos de famílias que normalmente não estavam no nosso radar, mas que estavam exatamente com receio de perder a casa, de ficar sem luz, de ficar sem água e de não ter internet para os miúdos estudarem.

 

Mergulhando na realidade e indo ao encontro dessa curva da pobreza; os pedidos de ajuda junto da Cáritas continuam a aumentar de forma consecutiva? 

Tem vindo a aumentar. Nós começamos a ter alguns sinais, mas uma vez digo, varia de acordo com os territórios. Por exemplo, a seguir à pandemia, os territórios que são muito suportados no turismo conseguiram fazer uma retoma que outros territórios não fizeram em Portugal. E isto apesar da situação crítica que o turismo tem vivido por não conseguir pessoas para trabalhar, que também é um fenómeno curioso.

Mas nós conseguimos ter a pressão em alguns territórios, e noutros não.  Mantivemos o programa e fomo-lo adaptando às crises que vieram e, portanto, quando se iniciou a guerra, abrimo-lo às famílias que vêm da Ucrânia, e que precisavam de apoio. Muito recentemente, com a Renascença, fizemos uma campanha que olhava sobretudo para os idosos isolados. E, portanto, a flexibilidade deste programa e a forma como a Rede o conhece e o usa para nós é muito útil para responder rapidamente. Porque essa é a diferença que nós podemos fazer.  O governo para lançar medidas tem um conjunto de burocracias e pesos que nós não temos. Nós temos essa flexibilidade não só de conhecer melhor, porque sabermos que aquela ação tem aquela consequência, mas também de tentar trazer quer doadores, quer pessoas que precisam a receber esse apoio de acordo com aquilo que necessitam e da forma mais digna possível que lhes garanta o bem-estar e serenidade.

 

A Cáritas tem também denunciado a chamada “pobreza envergonhada” de forma especial na classe media. É um fenómeno que persiste?

De facto, o que aconteceu foi que, por exemplo na pandemia, muitas pessoas que nós esperávamos que retomassem a sua vida não conseguiram fazê-lo e são exatamente as pessoas desta classe média, que não têm experiência de depender de apoios, nem os conhece, e vive naturalmente com grande pudor em pedir, reconhecendo como reconhece, a pior situação de muitos na proximidade.

Essas pessoas não aparecem no primeiro momento e também devemos estar conscientes de que as crises não irrompem todas ao mesmo tempo. Quando existe uma crise económica a crise social não aparece no primeiro minuto, aparece a seguir e também demora muito. Mais tempo a ir embora. E é o tempo de demora em desaparecer que faz neste momento em Portugal, colarem-se crises e as suas consequências. E por isso nós temos famílias a precisarem de apoio que a ele nunca tinham recorrido, e essas famílias também nos preocupam.

Tenho sempre muita dificuldade em dizer que são as pessoas da pobreza envergonhada. Porque a minha esperança é sempre que estas pessoas, que têm um conjunto de ferramentas pessoais, que as levou a ultrapassar tantas situações, vão conseguir utilizar essas ferramentas assim nós as possamos apoiar.

 

Dra. Rita, Portugal tem um número considerável de pobres com pleno emprego, a coesão europeia não devia ser mais interventiva nestas assimetrias?

As assimetrias que nós temos também existem na Europa, as pessoas não contam é a história da mesma maneira. Nós temos uma percentagem enorme, uma taxa elevadíssima de pessoas abaixo do limiar de pobreza e temos também um número muito preocupante de pessoas que estão nesse limiar, nessa situação, e que trabalham, o que é extraordinariamente agressivo para quem, sob o ponto de vista cultural, sempre entendeu que quando se tem um emprego não se é pobre. Assim diziam os meus avós, o que é preciso é ter um emprego e quem tem um emprego não é pobre.

E esta consciência que nos trouxe o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos tem que nos convocar, porque claramente nós não conseguimos evolução na situação das pessoas se não aumentarmos o rendimento e o rendimento não se aumenta com subsídios. É por isso que as medidas estruturantes são aquelas que acrescentam ao rendimento e que, portanto, nos permitem alterar a situação de vida de uma forma consistente. Quando temos apoios pontuais, temos um certo alívio, uma alegria, mas não mudamos nada. A responsabilidade de cada decisão de gasto deve ter isso em consideração, de que o nosso melhor desiderato deveria ser aumentar o rendimento de maneira que nos conseguíssemos de alguma forma alterar estes números da pobreza e, sobretudo, de manter em situações de pobreza pessoas que trabalham. E passa muito pelo aumento do rendimento, mas passa também pela dignificação e reconhecimento do papel de muitas profissões que são pouco procuradas porque não são reconhecidas.

 

Ainda regressando às medidas, e há pouco falávamos desta classe média, entende que estas medidas tiveram em conta este fenómeno relacionado com aquela “pobreza envergonhada” ou serão mais direcionadas para quem está num nível mais extremo de necessidade?

Eu acho que estas medidas abrangem muitas pessoas, mas desta forma pontual. Portanto eu acredito que muitas pessoas ficarão, e sobretudo porque é automática o que também poderá ser questionável, são automáticas ninguém tem que as pedir, se calhar se fosse pedido haveria algumas pessoas não iriam pedir, mas é automático e, portanto, vai atingir muitas pessoas, mas sem mudar.

Mais uma vez, para mim, aqui os números são perversos. Serem muitas pessoas não significa que isto vai fazer muito pela vida das pessoas. E há aqui algumas áreas que me preocupam, preocupa-me por exemplo a situação dos estudantes. Os estudantes são particularmente agredidos seja pela situação quer da habitação, quer dos custos. Quantos jovens não se verão na necessidade, se não houver medidas, de abandonar a universidade porque não conseguem suportar, já é difícil, as famílias não conseguem fazer mais, suportar estadias, alimentação, transportes e tudo isso a somar na vida destes jovens. Ou, por outro lado, a gestão das instituições. Nós falamos na alimentação em casa, mas aquilo que acontece numa família acontece num equipamento social.

O aumento da alimentação como é que se resolve? Diminui-se a qualidade alimentar? Porque pagar mais é difícil e as instituições já não têm gorduras que lhes permitam ir buscar para fazerem face aos custos da energia e da alimentação, como é que vai ser gestão do nosso parque de resposta social? Sobretudo quando envolve alimentação ou distribuição de géneros ao domicílio por exemplo.

E eu não vejo isso, admito que seja para um outro pacote que ainda não tenham falado nisso, mas vejo isso com muita preocupação. Porque realmente é fácil, e eu tenho assistido a algumas conversas sobre o tema, os equipamentos sociais que têm empresas a gerir as suas necessidades alimentares fizeram contratos, que até podem ser plurianuais, que garantem que vão ser fornecidas refeições a um preço x. Com o aumento dos bens alimentares e da energia, como é que vai acontecer? Estas empresas não vão conseguir praticar esse preço do contrato, as instituições não podem pagar mais…

 

Vão diminuir na qualidade…

Vão negociar produtos… Isto não que é caro, aquilo não… E depois quem é que garante a saúde, o bem-estar e a alimentação equilibrada?

São muitas coisas e eu admito que não há quem consiga chegar a tudo, temos aqui um pacote de medidas que é um pacote pontual, e é bom que se esclareçam todas as dúvidas porque somar a esta dificuldade as pessoas sentirem-se enganadas, não há dinheiro que pague isto. Portanto eu animaria todos a explicar todas estas medidas e as suas consequências no futuro.

 

Nós estamos a caminhar para o final da nossa entrevista e há ainda algumas questões que lhe gostaríamos de lhe colocar. Uma delas tem a ver com a necessidade de ajudar quem ajuda, ou seja, para além destas medidas que agora discutimos, como é que as instituições que apoiam quem mais necessita podem ser ajudadas para melhor poderem ajudar?

Pois eu acho que neste momento é mesmo uma questão de gestão, o custo das energias é muito importante para as instituições portanto medidas desse ponto de vista seriam interessantes e poderiam apoiar as instituições, mas tem que se olhar para a resposta efetiva das respostas sociais, analisar com toda a frontalidade se há coisas que estão a ser mal feitas e podem ser melhoradas e daí diminuir os custos, mas também perceber se é justa a medida do apoio que o Estado dá às instituições que substituem uma função que em muitos casos é do próprio Estado, há respostas sociais que deveriam ser financiadas a cem por cento, porque é total substituição da obrigação do Estado.

 

Não vemos filas de pessoas a pedir ajuda junto às sedes partidárias, encontramo-las sim junto à Cáritas e diante de outras instituições similares. Entende que a política deveria estar mais próxima da situação real dos portugueses?

Espero que muitos estejam a ouvir e que os necessitados acorram às portas das sedes partidárias… Como sabem para mim a palavra proximidade é indispensável à gestão das respostas sociais e do bem-estar. Quem não conhece, tem que conhecer. Quem quer pensar as medidas políticas, quem quer pensar as soluções não pode estar confortável só com relatórios porque não saberá o que eles descrevem e em que é que se baseiam. As situações são tão diferentes…

 

Os políticos decidem sem conhecer a realidade?

Eu acredito que os políticos não possam conhecer toda a realidade, porque não conhecem como é óbvio, mas os políticos não estão sozinhos têm supostamente pessoas que trabalham no conhecimento da realidade e que lhes devem dar a conhecer tudo o que é paradigmático. Diferente para bom e diferente para difícil. Não só as coisas bonitas de se ver nem só os erros que os outros cometem. Deviam tentar conhecer os estudos para fazer um justo equilíbrio. Nem os partidos… é mais fácil o padre conhecer bem a paróquia do que…

 

O deputado o seu círculo eleitoral…

Ah certamente. Porque ainda por cima, afastam-se cedo da sua zona mesmo que a representem e depois são engolidos pela máquina de discutir estratégias, políticas e leis.

 

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