Daniel Serrão É legítima a pergunta. De facto, o tratamento médico da infertilidade, como qualquer outro tratamento do âmbito dos cuidados de saúde, não justificaria, por si só, a intervenção do legislador, fosse ele o Governo ou a Assembleia da República. E outros processos de tratamento da infertilidade, que não a PMA, como é o caso da desobstrução cirúrgica das trompas, não são objecto de preocupação dos legisladores. Basta a regra básica da actividade médica que é a de o médico agir sempre segundo as regras da boa prática científica e técnica, as leges artis dos juristas. Assim sendo, algo deve acontecer na PMA que ultrapassa a intervenção médico-técnica e que impôs a intervenção do legislador. E acontece: a PMA é um acto médico que extravasa da simples intenção terapêutica de curar a infertilidade, para campos não médicos e claramente sociais. E é a repercussão na sociedade e suas estruturas básicas, como a família, que impôs, e bem, a intervenção da Assembleia da República. Se o fez da melhor maneira, isso é matéria controversa. Do meu ponto de vista, não o fez da melhor maneira e perdeu a oportunidade de preparar uma lei voltada para o futuro e para os novos problemas que já se perfilam no horizonte. A questão essencial é a de saber se deve permitir-se que embriões humanos, constituídos para tentar resolver um problema clínico de infertilidade de um casal com vontade procriativa, podem ser usados para outras finalidades que nada têm a ver com procriação. Para mim é evidente que não podem. Este desvio só aconteceu porque a imperfeição da técnica e o descontrole das fases críticas do processo biológico de fertilização de ovócitos no laboratório fez que aparecessem embriões que, tendo sido constituídos para serem implantados na mulher não vão mais ser usados para essa finalidade e são chamados embriões sobran-tes. Já que sobraram e ninguém os quer vamos usá-los para investigação – como a lei aprovada permite. É impossível evitar a formação de embriões em excesso? Não é. Há muitos anos que na Alemanha, na Áustria e, pelo menos num Centro, em Portugal, se pratica PMA sem embriões excedentários. A lei, nestes dois países, para maior segurança, criminaliza a constituição de embriões em número superior aos que vão ser usados para tentar resolver o problema médico da infertilidade. Actualmente, nos países mais avançados, a boa prática é transferir apenas um embrião em cada tentativa de procriação, na maior parte dos casos. E o prolongamento da cultura dos embriões até aos 5-6 dias faz com que o aparecimento de embriões sobrantes seja hoje uma muito rara eventualidade. Uma legislação moderna que desejasse, de facto, proteger a eminente dignidade de um ser humano em fase embrionária, não deveria prever nenhuma possibilidade de usar embriões humanos fora da sua digna utilização na tentativa de curar a infertilidade humana. Tudo o que a lei prescreve quanto a investigação em embriões, a diagnóstico antes da implantação, a uso de espermatozóides ou ovócitos alheios ao casal infértil é desajustado numa lei sobre procriação medicamente assistida. Tendo a lei optado por criar um Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, melhor seria que as questões marginais à intervenção terapêutica dos médicos fossem deixadas à ponderação deste Conselho, caso a caso, como convém. Desde que este Conselho desse à Sociedade Civil a garantia de “independência, multidisciplinaridade e plura-lismo” e da “transparência dos seus procedimentos”. Como refere o Presidente da República na sua mensagem à Assembleia. Ora, não é fácil que um Conselho com a constituição prevista na lei, venha a ter a necessária independência do poder político e dos lóbis de interesses que se constituíram para o uso de embriões humanos como matéria prima para a obtenção de células estaminais embrionárias para investigação pela Indústria farmacêutica. Sem esta independência e com as disposições constantes da lei, dificilmente ela poderá ser o veículo da opinião dos cidadãos. A estes deveria ter sido dada a possibilidade de se pronunciarem sobre aspectos essencialmente sociais e altamente controversos da PMA, como foi solicitado, até agora sem sucesso, por oitenta mil portugueses no pleno uso dos seus direitos de cidadania. Legislação? Certamente, mas que fosse moderna, justa e respeitadora da opinião pública, devidamente averiguada. Daniel Serrão