Jorge Pires Ferreira, Diocese de Aveiro
Diz-se que Bento XVI dessacralizou o papado ao renunciar. Alguns avançam mesmo que é esse o meu maior legado. Não me parece, há mais em Bento XVI. Mas foi sem dúvida um gesto que abre novas possibilidades para o papado, depois das dores de João Paulo II ao tentar falar à multidão e do “à paternidade não se renuncia”, de Paulo VI, com que tantos justificavam os esforços de João Paulo II. O papado é um serviço. Pode-se renunciar a ele, sim. Obrigado, cardeal Ratzinger, bispo emérito de Roma de 2013 a 2022.
O facto de o cardeal Ratzinger ter vivido quase mais uma década depois da renúncia permite algumas leituras para o futuro. No futuro, há de ser comum haver uma ou duas, quem sabe três pessoas que foram bispos de Roma e que depois já não o são no ativo. Acontece nas dioceses, porque não em Roma? A longevidade aumenta. Cada vez mais pessoas chegam aos cem anos. O mesmo com os bispos.
Ao contrário do que algumas fações de católicos fazem crer, o bispo emérito de Roma foi comedido nos pronunciamentos. Numa ou noutra ocasião, foi usado pelos seus indefetíveis, como se estivesse contra Francisco, ou como bandeira contra Francisco. Mas a questão é: porque não haveria de dizer claramente o que pensa, mesmo que pensasse diferente de Francisco? Francisco está a preparar a Igreja para a sinodalidade. Ora, a sinodalidade não é precisa para nada se houver uniformidade. A sinodalidade só faz sentido quando as sensibilidades são diferentes, quando “temos que conversar”, quando as tensões são reconhecidas a par do compromisso de querer chegar à melhor solução para todos, a que há de ser inspirada pelo Espírito Santo. Não sei se a sinodalidade se filia na linha do conciliarismo, que foi derrotado pela infalibilidade papal no primeiro Concílio do Vaticano. Às vezes parece-me que sim, que é uma reabilitação do conciliarismo, que por sua vez, ainda que exercido apenas por bispos, era um sucedâneo daquilo que a Igreja verdadeiramente é, uma assembleia. Mas tenho mais certezas quanto à improbabilidade do uso da infalibilidade papal. Bem desejava William George Ward, matemático e teólogo (católico vindo do anglicanismo), receber todas as manhãs, juntamente com o pequeno-almoço e o “Times”, uma “encíclica papal infalível”. Isto no século XIX. Hoje seria um email ou um tuíte infalível de Roma. Não. O Papa também se contradiz. Ou pelo menos precisa de esclarecer o que disse e que não foi a) bem dito b) não bem entendido c) o contexto não era claro. Com os anteriores, havia um ritual imenso para defender o que o papa tinha dito. Com Francisco, basta um comunicado. Bento dessacralizou o papado. Francisco normalizou-o.
Bento XVI foi o Papa que defendeu a procura da verdade contra a pandemia do relativismo e o cansaço e a desistência da razão. Francisco vem dizer-nos que o pluralismo é algo diferente do relativismo e tem manifestações da verdade; é condição de caminho conjunto. Disse-o logo no seu programa, na “Evangelli Gaudium”: “O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a sua cultura, os seus projetos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos”. A sinodalidade opõe-se à autoridade unidirecional, quase sempre de cima para baixo. É poliédrica. Dá mais trabalho do que receber a encíclica infalível ao pequeno-almoço. Mas tem mais a ver com todos.
Jorge Pires Ferreira
Diretor do Correio do Vouga – Aveiro