José Luís Gonçalves
Os recentes atos de violência praticados por grupos de pessoas organizadas ou até por Estados deviam provocar em nós um sobressalto cívico e ético. Se o terror e a insegurança que a violência espalhou, por estes dias, quer em contexto desportivo quer em contexto político, já seriam suficientemente graves para nos fazer pensar enquanto comunidade, a desvalorização deste fenómeno e dos seus efeitos por parte de responsáveis devia obrigar-nos a uma reflexão profunda. Quando agressões a atletas são avaliadas com a frase “isto foi chato mas o crime faz parte do dia-a-dia”, ou a reação militar israelita na Faixa de Gaza que provocou 60 mortes é justificada pelo poder político com a argumentação/confissão de que os métodos não letais “não funcionam”, estamos a destruir os princípios que nos constituíram como nações civilizadas construídas a partir da defesa da vida e da dignidade humanas.
A desvalorização da violência ou mesmo/até a sua justificação devem merecer uma apertada censura social. A partir de dados obtidos em 2017, o Instituto Europeu para a Igualdade de Género apurou/consegue afirmar que quase uma em cada duas mulheres (47%) que sofreu violência nunca disse a ninguém “seja à polícia, serviços de saúde, um amigo, vizinho ou colega”. É uma delas? O que dizer aos idosos que são vítimas de maus-tratos, fenómeno que foi no passado silenciado ou desvalorizado, embora a sua incidência tenha duplicado nos últimos anos? Como responder às crianças vítimas de violência real ou virtual (cyberbullying) no interior das nossas escolas ou na solidão das redes sociais? A violência constitui, pois, uma problemática moral que emerge com maior ou menor pertinência no contexto da sua (des)valorização social, cultural e política.
Se a violência espontânea pode ser compreendida num quadro ontogenético – enquanto processo de formação da personalidade que influencia o comportamento e que resulta da interação de um conjunto de características pessoais, históricas, desenvolvimentais e contextuais –, a organização da violência representa sempre uma transgressão que importa assinalar, prevenir, julgar e, no limite, punir. E mesmo que se admita que a violência é inerente à socialização do homem, conforme constatam o direito, a psicanálise, a antropologia, a filosofia, a psicologia e a etologia, o alargamento contemporâneo da noção de violência ajuda a compreender a premência da sua tipificação quando exercida nos vários contextos domésticos, sociais, escolares, laborais…
Pior que a violência é a sua desvalorização. Uma vez instaurada uma cultura da violência, esta tende a fundamentar a intolerância e o desprezo pelos “diferentes”, desenhando, não raras vezes, geografias da violência que separam o “nós” dos “outros” (agressor-vítima). A instituição de uma “violência simbólica” (Bourdieu) no espaço público acontece por via da construção intencional de crenças e estereótipos no processo de socialização através de um discurso dominante que é tendencialmente aceite como “natural”, moldando uma visão de pessoa e de sociedade-mundo.