Pesca: «Não temos pescadores portugueses para andar no mar»

No dia em que se celebra São Pedro, padroeiro dos pescadores, é entrevistado da Renascença e da Agência Ecclesia Carlos Cruz, o presidente da  Apropesca – Organização de Produtores de Pesca Artesanal

Foto: RR/Paulo Teixeira

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Como é que a comunidade piscatória vive esta data em que a Igreja assinala o Martírio dos Dois Apóstolos, Pedro e Paulo, e se celebra em muitos lugares do país a festa de São Pedro, o padroeiro dos pescadores?

Bem, antes de mais, queria agradecer o convite pela primeira vez estar aqui nas vossas instalações. É uma honra e só tenho de agradecer por isso. Nós vivemos muito os Santos Populares, nós vivemos, a pesca vive muito bem os Santos Populares.

O Santo António, não tanto, mas o São João e o São Pedro são festas marcante para o pescador. Nós aqui, em Vila do Conde, Caxinas, Póvoa de Varzim, nós vivemos intensamente as festas destes dois santos. É para nós é muito importante.

 

É conhecido à forma especial como os pescadores e as suas famílias vivem a fé, é algo que está sempre presente ou vem só nos momentos de aflição? 

Não, todo pescador que vai para o mar, vai sempre com fé, mesmo sabendo que não vai pescar, ou que pesca muito ou que pesca pouco, vai sempre com fé. Não há nenhum pescador que vá para o mar e diga assim, vou para o mar e vou sem fé. Não, vão sempre com fé.

E há pescadores que manifestam a sua fé, na forma como se comportam no barco. Toda a embarcação que largue a primeira arte ao mar, as palavras que saem sempre da boca de um pescador, é sempre: “vai na hora de Deus”. E quando é para recolher a rede, usa sempre essa palavra na primeira entrada do peixe, pode entrar a primeira rede, mas se não vê a peixe, não usa esta palavra, entrando primeiro o peixe, diz: “louvado seja nosso Senhor, Jesus Cristo. Obrigado, meu Deus”, sempre, estas palavras.

 

Essa é uma tradição bastante portuguesa e que me leva à segunda pergunta, que tem a ver com o envelhecimento da frota e das tripulações. Nós sabemos que há uma dramática falta de mão de obra, temos agora indonésios e guineenses que têm evitado que os barcos fiquem em terra, mas as condições não são as melhores, e aqui a pergunta é se a pesca sustentável, em particular a pesca artesanal, está em risco?

Eu não considero que esteja em risco, o peixe nunca vai acabar, o peixe temos nós no mar, o que temos problemas é com as cotas. Posso dar aqui exemplos de barcos do Espadarte, que são barcos que requerem uma certa despesa e algum cuidado nesta questão de irem para o mar. Por exemplo, começam o ano e depois da primeira viagem de um mês ou dois meses, o máximo três meses; a seguir não têm mais cota para trabalhar durante o ano todo. O maior problema na pesca é as cotas. A pesca artesanal, não considero que esteja em risco, só estará em risco, não é por causa do peixe, mas em risco de falta de mão de obra, e aí nós tivemos de recorrer aos estrangeiros, indonésios. Ainda bem que eles vieram, e são pessoas que sabem trabalhar, são pessoas que chegaram e não nos deixaram mal, ainda bem, porque se eles não tivessem chegado, se não fosse esta mão de obra indonésia, as nossas embarcações, a maioria das embarcações, estavam paradas, e isso não era bom para a pesca.

 

Então, não é exagerado afirmar-se que a pesca em Portugal depende da chegada de mão de obra estrangeira e de mão de obra emigrante?

E um dia que isto falhe, que haja alguém que trave isto, nós estamos mesmo condenados. Aí acaba a pesca, mas é por falta de mão de obra, não por falta de peixe. Falta de peixe não há, nunca vai existir a falta de peixe. Temos a falta da mão de obra e a falta de cotas.

 

Numa embarcação, qual é a percentagem de mão de obra nacional e de mão de obra estrangeira?

Nós, no anterior governo, tínhamos uma legislação que nos obrigava a ter 60% de trabalhadores portugueses e 40% de trabalhadores estrangeiros.

Os 60% de trabalhadores portugueses era para que se salvaguardasse que tivéssemos sempre trabalho para os portugueses. A verdade é que os portugueses que existiam, aqueles que ainda andavam no mar, desistiram da pesca e foram à procura de outras oportunidades, nos transportes, em particular como motoristas, e a verdade é que poucos restam. Muitos já foram para a reforma, e a verdade é que não se vê como antigamente os pescadores, aqueles jovens pescadores, virem à procura da arte.

 

Há uma desmotivação da pesca em Portugal?

Antigamente um jovem pescador gostava, quando se formasse, gostava logo de ir para o mar. Atualmente não temos, e não vemos essa procura. Há pessoas, mesmo pais, que não gostam que os filhos, mesmo tendo embarcações, não gostam que os filhos sigam a profissão dos seus pais, porque não encontram um futuro risonho. É a falta de cotas, restrições, mais restrições, mais restrições na pesca, isto desmotiva muito e não se vê um pai a incentivar um filho para ir para a pesca.

 

Então neste momento, Carlos, numa embarcação pode haver 50% de pescadores nacionais e 50% de trabalhadores estrangeiros, por exemplo?

Sim, este governo agora alterou a lei, mas não chega. Não chega, porque nós neste momento temos embarcações, e eu posso dizer, há à volta de 110 a 115 embarcações em que 80 a 90% têm mais indonésios do que os portugueses.

 

Está numa situação ilegal…

Estamos, estamos, mas eles sabem, eles sabem. Por isso mesmo é que não há motivo para que nós ficássemos contentes e satisfeitos, nós estamos mesmo saturados. Se houver uma inspeção rigorosa que queira mexer com o setor, que queira confrontar o setor, e que queira que a gente cumpra a lei, e não há forma de a cumprirmos, hoje vai haver a parte da fiscalização e amanhã está o setor todo parado, não há volta a dar.

 

Essa preocupação, nós temos falado muito dela por um motivo, me parece que é bastante simples de entender, o discurso político dos últimos meses tem ido muito no sentido das críticas e da resistência à chegada dos imigrantes. Ainda há pouco dizia que se alguém travar isto, relativamente à chegada de trabalhadores estrangeiros a situação torna-se muito complicada. Imagino que esteja preocupado com mudanças da legislação?

Sem dúvida alguma. Se isso acontecer, o setor está mesmo condenado. Não há outra volta a dar. Nós neste momento queremos mesmo que o nosso governo, que nos ajude, e que reconheça as cédulas dos trabalhadores estrangeiros indonésios, porque eles trazem as cédulas deles. Nós fazemos aqui o registo na Segurança Social e eles têm todas as condições, nós damos as melhores condições ao trabalhador da Indonésia que chega aqui.

Damos a estadia, damos a alimentação. É verdade que no início eles acabavam por dormir nos barcos, mas atenção neste momento isso não acontece.  Eu tenho 110 a 115 armadores, e não tem um a dormir em barco. Dormem no barco como dormem os portugueses, quando vão para o mar, aqueles 5, 6, 7, 8, 9, 10 horas, dormem. Mas quando regressam têm uma casa, têm um apartamento e eles têm as melhores condições. Neste momento o que é que nós queremos que o governo nos ajude? É precisamente certificar, dar o reconhecimento da cédula deles, a cédula da origem deles. São pessoas que se adaptam muito bem à pesca, eles chegam aqui, não ficam parados para aprender, eles sabem trabalhar. Eles vêm de pesca, eles têm pesca como nós, e sabem trabalhar. E nós queremos que o governo nos ajude a certificar, a reconhecer a cédula deles.

Porque se essa documentação, a cédula deles, que é da origem que eles trazem, se for reconhecida, nós teremos o nosso problema resolvido. Já o podemos matricular como marinheiros pescadores. Neste momento nós matriculamos, e fazemos tudo o que temos de fazer, e a verdade é que ao levá-los para o barco, eles só podem estar a ver os outros a trabalhar. Mas a ver quem a trabalhar? E se for lá às autoridades, dizem que eles não podem estar a trabalhar, só podem estar a ver. Mas isto cabe na cabeça de alguém? Nós não podemos andar aqui a atirar areia para os olhos de ninguém. Isto é a verdade. Nós temos um problema e temos de o resolver. Ponto final. Isto não é esconder ninguém. Eu sempre disse isso em várias reuniões que temos tido com o anterior governo, com este governo, temos debatido isto. A situação é esta. Nós não andamos legais no mar. E não andamos legais no mar porque uma embarcação, para poder ir para o mar, tem de ter o mínimo de segurança. E nós não temos.

 

A alteração de regras, o apertar de regras, vai ainda dificultar mais essa integração, dessa mão de obra que é fundamental para que o setor permaneça e sobreviva?

Quando você me faz a primeira pergunta, E eu disse qual era a percentagem dos portugueses e dos estrangeiros, eu disse que era 40% de estrangeiros e 60% de portugueses. Agora é metade de cada um.  Mas não chega. Não chega. Não chega.

Nós não temos pescadores. Não temos pescadores portugueses para andar no mar. E o problema é mesmo reconhecer, fazer o reconhecimento da cédula, deles que se fazem pescadores.

 

Para quem está a ouvir e não está tão familiarizado com o trabalho dos pescadores, acredito que para muitas pessoas a ideia das comunidades portuguesas ainda está muito associada, das comunidades piscatórias, ainda está muito associada à pobreza. Isto é uma ideia que persiste das bolsas de pobreza ligadas às comunidades piscatórias ou é um trabalho que pode efetivamente assegurar a qualidade de vida de quem lá está?

Não, eu não considero agora que, neste momento que estamos a viver, que a nossa comunidade que passe por pobreza. Não, nós estamos bem, estamos estáveis.

Vamos para o mar, ganhamos dinheiro. Não vamos dizer que estamos aqui a passar a fome. O nosso problema aqui é precisamente deixem-nos trabalhar, deem-nos cota para trabalhar porque o peixe tem no mar e o peixe nunca vai faltar. Não vai faltar peixe. É só isso que tenho a dizer.

 

Nós estamos a celebrar os 40 anos da integração de Portugal na União Europeia. Faz uma avaliação positiva da forma como a pesca teve acesso e foram usados, por exemplo, os fundos comunitários no setor? 

Há fundos comunitários que podem ser mais bem aproveitados e às vezes nós deixamos fugir essas oportunidades. Nós temos aqui assoreamentos nas Barras, aqui da Póvoa de Varzim e Vila do Conde, que são as que eu tenho mais acesso direto e já vai a caminho de dois anos que não temos uma intervenção. E esses portos precisam de manutenção, para as entradas e saídas. Como sabe nós temos aqui no Norte um mar mais agitado que não se compara com o Algarve. Mas a verdade é que nós, por vezes, temos de aproveitar estes fundos e às vezes estamos a deixar passar aquilo que podíamos aproveitar. Neste momento vai para caminho de dois anos que aqui ao Norte não há uma intervenção.

 

E essa manutenção devia ser anual?

Sim, todos os anos.

 

E há fundos comunitários para o efeito?

E há fundos comunitários, a verdade é que não são aproveitados. Na minha maneira de ver, não são bem aproveitados.

 

Na mensagem para o último Dia Mundial da Pesca, o Vaticano apelava à proteção dos pequenos negócios. Eu pergunto, também para encerrarmos esta conversa, se esse é um desafio, a proteção do pequeno negócio e desta pesca artesanal, num setor que é cada vez mais global?

Tudo isto depende de poder de compra, de fazer uma boa gestão na pesca, um poder de compra, e para que tudo corra bem também não esquecer que temos embarcações aqui obsoletas, temos embarcações muito obsoletas, temos algumas embarcações boas, mas temos a maioria obsoleta, todo o pescador que gosta do mar, também para andar ao mar tem de ter uma segurança, e para ter segurança a pessoa olha para a embarcação.

Temos embarcações aqui muito obsoletas, repito. Embarcações já com bastantes anos, embarcações que os pais querem deixar as embarcações para os filhos, e os filhos também dizem assim, é com isto que eu vou para o mar? É com isto que tenho a segurança? Isto serviu enquanto foi nova na mão dele! Agora, passar aquela embarcação, que já tem uns certos anos, para um filho, é preciso medir bem o perigo que pode acontecer aqui, porque a embarcação com 30 anos não é a mesma coisa como uma embarcação nova, quando o pai a adquiriu. É preciso bem medir isso agora. Tudo isto será um bom negócio para todos, se houver uma boa gestão e haver um poder de compra, porque toda a gente ganha nisto, mas para isto temos de ter as melhores condições, por isso eu penso que temos um futuro aqui, se o nosso governo quiser nos ajudar, temos um futuro que pode ser risonho para toda a gente.

 

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